Não posso dizer que sempre quis ser médico. Talvez tenha sido pelos meus 15 anos, depois de uma doença grave da minha avó. Marcou-me muito a relação com o colega que a tratava e que falava comigo como se eu fosse um adulto. Explicava-me todos os procedimentos e, quando ela já estava melhor, fez-me uma visita guiada à enfermaria. Pude então ver de relance um quarto em que estava um doente cheio de tubos e fios. Mal eu sabia que viria a ser intensivista.
Fiz o curso sem sobressaltos, concorri ao Internato de Medicina Interna e fiquei. Durante esta fase estagiei nos CI e aí tive a certeza absoluta que a minha vida iria ser ali. Além daquela muito divulgada ideia que salvamos vidas no limite, sempre tive alguma atração pela passagem para o outro lado, para o nada absoluto. Conheci-a nesses meses. Transpirava segurança e a calma de quem já tinha tratado centenas de doentes, muito graves. Tinha uma máxima que nunca mais esqueci, “aqui não se fala da morte, nunca se sabe se os doentes nos ouvem”.
Passaram dois anos até ficar efetivo no hospital. E voltei para a unidade onde tinha aprendido. Mal sabia eu o que me esperava… Ela já era a chefe. Nos primeiros meses, os doentes eram os habituais, politraumatizados graves, com multifalência de órgãos, sépsis, cardiovasculares, complicações pós-cirurgia. Trabalho de rotina, duro, mas satisfatório, uma urgência interna semanal, com a responsabilidade de todos os doentes. E veio a pandemia. Os primeiros doentes muito graves, a tristeza de perdermos alguns e a alegria, quase euforia, de tirarmos muitos do fundo.
A pouco e pouco o ambiente foi mudando. Tornámo-nos mais próximos, por vezes quase confidentes. Os pequenos intervalos para um café ficavam, por vezes, parecidos com festas de finalistas. Claramente o stresse tinha de sair por algum lado. Uns cantavam, outros contavam anedotas, cada vez mais arrojadas. Depois voltávamos a vestir os fatos de proteção individual e ficávamos ultrafuncionais, com gestos seguros, a cumprir os protocolos há muito estabelecidos.
Tínhamos instituído equipas de dois, para alguns procedimentos. Um pouco como trabalham dois pilotos num cockpit de avião. Um faz e o outro verifica.
Foi ao puncionar uma artéria mais difícil que senti a mão dela a guiar a minha. Mesmo com luvas, não me foi indiferente. Fez um sorriso aberto, que só vi nos olhos, por trás da viseira.
— Vês como é fácil, já fizeste tantas, estás cansado, a mão tremia-te.
Seguimos para a doente seguinte. Uma senhora com 90 anos, sedada há duas semanas e ainda com um prognóstico muito fechado. Antes de ser entubada pediu-nos para, sempre que possível, lhe deixarmos junto ao ouvido o telefone. Tinha muitas playlists, se pudéssemos ir mudando, agradecia. Na dúvida, tentámos respeitar. De Bach a Mozart, passando pelos Beatles e Rolling Stones, ouviu tudo. Enquanto a observávamos trauteámos a ‘Michele’.
Parecia estar a ser um dia, não direi leve, mas sem nenhuma tragédia, quando os alarmes dispararam. Um jovem internado há dois dias, em paragem cardíaca. Os gestos foram automáticos, na sucessão protocolada das intervenções. Ainda conseguimos reanimá-lo, mas, depois, perdemo-lo para sempre. Foi o único jovem que não resistiu, na nossa unidade. Disse-me que, ao fim de tantos anos, não conseguia habituar-se àquilo. Que um velho morra é a lei da vida, agora um miúdo, com a vida toda à frente, é muito injusto. Preciso de ir beber um copo, vens comigo?
Hesitei, mas fui. Levou-me para um local com uma vista deslumbrante sobre a foz do Tejo.
— É aqui que venho quando preciso de pensar em mim. Nunca deixes de pensar em ti, se o fizeres as coisas correm mal.
Encostou a cabeça no meu ombro e pegou na minha mão. O que aconteceu depois apaguei.
Segui, quase à risca, uma das orientações das UCI.
O que acontece aqui dentro, não passa lá para fora.
É certo que todos os dias morrem várias pessoas, algumas das quais da mesma idade, ou até mais novas; em condições tão ou mais trágicas do que estas. Porém, Sara Carreira é uma figura pública, filha de uma celebridade que Portugal conhece, seja porque adora, seja porque odeia. Obviamente que isto não quer dizer que por ser uma cara conhecida seja mais importante do que qualquer cidadão anónimo, sobretudo para os respetivos entes queridos.
O que este enquadramento mediático nos dá, como facilmente se percebe pelos milhares de comentários que surgiram nas redes socias, é uma noção de proximidade da pessoa que partiu, daquela família enlutada, que gera sentimentos de compaixão, de comoção. É o que em Psicologia se tem chamado relações parassociais, enquanto relações de proximidade emocional potenciadas pela exposição repetida à vida da figura pública mediante as facilidades criadas pelos media, especialmente as redes sociais como o Instagram, e que quebra a barreira entre espectador e celebridade.
Esta espécie de conexão emocional gera inevitavelmente um abalo, que pode resultar, inclusive, no que tem sido denominado luto coletivo (collective grief), também designado por “luto público” (public grief) e que diz respeito ao processo de luto que é originado pela morte de uma figura pública. Para além deste luto, existe um processo de luto a realizar pelos pais, pelos irmãos, pelos amigos mais próximos.
A este propósito, uma pesquisa sobre luto, em particular pais em luto, mostra-nos que a perda contranatura de um filho, enquanto experiência traumática, tende a ser descrita como a perda mais dolorosa que qualquer ser humano pode vivenciar. Os pais em luto descrevem o sofrimento gerado por esta perda como “a maior dor do mundo”.
É sabido que a morte de um filho envolve inúmeras outras perdas consideradas secundárias, como a perda das expectativas para o futuro, a perda do papel parental na sua forma tradicional e a perda da própria identidade. Dada a importância da parentalidade para a identidade, os pais sentem-se destruídos, enquanto figuras parentais e pessoas. Por isso, veem-se invadidos por questões várias, como “quem sou eu agora?”, ou se continuam a ser reconhecidos como pais pela sociedade, na eventualidade de se tratar de um filho único.
As principais emoções presentes neste processo de luto são a culpa e a zanga, destacando-se o vazio como a principal sensação referenciada pelos pais em luto. A crença errónea de que os pais têm a capacidade de proteger incondicionalmente os filhos potencia que sejam vivenciados sentimentos de culpa e de falha, enquanto figuras parentais. Ainda que irracionais, estes pensamentos de autorresponsabilização são comuns e geram um sofrimento atroz.
Por sua vez, a zanga é facilitada, exatamente pela sensação de impotência e de injustiça pela perda da pessoa mais importante para a vida dos pais.
As investigações acerca do luto parental referem que a complexidade desta perda é também resultado das tarefas que são exigidas aos pais, tais como a necessidade de reorganizar as dinâmicas familiares e maritais, a inevitabilidade de comunicar a perda e com todo o sofrimento associado, num contexto em que o suporte social é reduzido, ainda para mais nesta fase pandémica em que somos recordados diariamente da necessidade de distanciamento.
No contexto das relações humanas, a perda de um filho tem vindo a ser reconhecida como a perda mais severa, duradoura e debilitante. Quanto ao casal, as investigações apresentam resultados distintos relativamente às mudanças originadas pela perda nas dinâmicas familiares. Enquanto algumas relações terminam, outras são fortalecidas pelo sofrimento, dada a necessidade de apoio mútuo constante.
Segundo uma investigação publicada em 2017 e intitulada “Parental bereavement: looking beyond grief”, esta coesão tende a ser resultado de um maior entendimento do casal acerca da discrepância das suas respostas, ou necessidades individuais. Isto é, quando os membros do casal reconhecem que têm reações e necessidades diferentes no seu processo de luto, é facilitada a compreensão das atitudes do outro e proporcionado o apoio recíproco.
Pelo contrário, na ausência destas pontes de comunicação e compreensão, as tendenciais dificuldades associadas à gestão das diferenças na reação à perda dificultam a coesão entre o casal e potenciam o risco de divórcio dos pais. Na maioria das vezes, os homens optam por evitar o diálogo e mostram-se emocionalmente menos expressivos, atitude que pode ser percecionada pelas mulheres em luto como um sinal de desvalorização da perda ou esquecimento do filho perdido. Todavia, a investigação mostra que esta atitude visa, comummente, na ótica do pai em luto, passar uma imagem de força e proteger a mulher do sofrimento. Daqui se percebe um benefício claro, entre os vários possíveis, da intervenção psicológica especializada no luto.
Por acréscimo, destaca-se o relato dos irmãos em luto, os quais acentuam que não só perderam um irmão ou irmã, mas também os próprios pais, que “nunca mais voltaram a ser os mesmos”. É assim vivenciada uma dupla perda.
Perante o partilhado, percebe-se o facto de este processo de luto apresentar um maior risco de complicações e obstáculos à integração da perda na identidade. Os fatores de risco para complicações são, exatamente, a idade reduzida do descendente aquando da sua morte, a natureza repentina e consequente ausência de preparação para gerir a dor e a existência de uma relação de dependência.
No que diz respeito à variável idade, sabe-se, por exemplo, que uma das principais causas de morte na infância é a Síndrome de Morte Súbita Infantil, morte inesperada, que é frequentemente associada a sentimentos de impotência e falha no papel parental. Numa outra fase, se a perda de um filho acontece numa fase tardia da vida, pode ser sentida como mais dolorosa, pois acontece num contexto de múltiplas perdas sociais e interpessoais.
Para além do risco de complicações no luto, destaca-se o risco de perturbações mentais, como depressão, perturbação do stress pós-traumático e ideação suicida; e, inclusive, de patologia física, como o cancro e patologias cardíacas.
O processo de reconstrução da identidade é inegavelmente doloroso, mas, quando conseguido, permite alcançar maior estabilidade do que aquela que existiria na ausência de qualquer intervenção especializada, ainda que seja impossível regressar integralmente ao funcionamento anterior à perda. Numa relevante investigação de Paige Toller, da Univerisdade do Nebraska-Omaha, em 2008, denominada “Bereaved Parents’ Negotiation of Identity Following the Death of a Child”, foi evidenciado que a nova identidade é reconstruída em função do sofrimento da perda, com novos objetivos, princípios e crenças baseados na experiência traumática. No fundo, a irreversibilidade destas mudanças é resultado do abrupto surgimento do evento traumático na identidade.
Sabe-se que as memórias traumáticas são rapidamente evocadas e, por isso, estabelecem relações imediatas com a autobiografia da pessoa em luto, levando a que o trauma seja transformado num inevitável ponto de referência da história de vida da pessoa. Perante uma fase de marcada desorganização e luto intenso causado pela morte de um filho, o psicólogo detém um papel preponderante para facilitar o envolvimento em rituais funcionais e promover o trabalho terapêutico das emoções, pensamentos e comportamentos.
Este não é, e jamais poderia ser, um texto sobre o luto da família Carreira; é um texto sobre aspetos gerais que a ciência psicológica nos disponibiliza nos dias de hoje sobre o luto, em concreto sobre pais em luto; é a insignificante oportunidade de manifestar os meus sinceros sentimentos aos pais, aos irmãos e amigos mais próximos da Sara Carreira; é também a insignificante oportunidade de expressar os meus sinceros sentimentos a qualquer pai e mãe em luto.
“Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias”
1 O que nos propõem é simples e convém que todos estejam cientes da proposta, para que cada um carregue consigo o fardo da escolha: os que não morreram da doença não querem agora morrer da cura. E morrer da cura é continuar a deixar a economia em coma induzido, sem a trazer de volta à vida. Devagar, por sectores, com vários cuidados recomendados e diversas precauções. E, ao mesmo tempo, libertando a população da prisão domiciliária onde estamos todos encerrados, mas por fases e segundo critérios etários: primeiro, adultos saudáveis, na força da idade laboral; depois, jovens; e, a seguir, crianças. Porém, há uma excepção, e disso depende o êxito — ou a ousadia — de todo o plano: os velhos devem continuar encerrados, porque representam um perigo sanitário público e uma ameaça à sustentabilidade dos serviços de saúde. Devem, então, ser mantidos longe da vista, afastados de qualquer contacto com os outros, até que haja uma vacina e a sua distribuição seja universal — talvez no Verão do próximo ano, na melhor das hipóteses. Encerrados em casa sozinhos e entregues a si mesmos ou fechados em lares, em hotéis, em pavilhões, onde for. Confiados à cura de profissionais, de voluntários ou, se necessário, das Forças Armadas.
Muita coisa vai mudar depois disto passar, dizem alguns. Vamos ter de olhar para a vida de maneira diferente, juram. Uma das coisas que talvez mude é a ideia de que vale a pena viver tanto tempo.
2 Muitos deles, aliás, já cumpriram a sua função, deixando-se abater ao activo, vítimas do vírus ou de outras doenças que, por força do vírus, não foram tratadas ou eles próprios não quiseram tratar. Aqui, como em Espanha, um terço dos mortos da covid ocorreram em lares onde os velhos estavam acantonados e foram apanhados sem defesa, a coberto de uma ilusão de segurança que, de tão frágil, chega a parecer indiferença. Quando um utente infectado num lar é retirado dele, consegue recuperar cá fora e depois é devolvido ao lar onde permanece o foco de infecção, que outra palavra podemos usar que não indiferença?
3 Tal qual como os 90 trabalhadores cingaleses das estufas de Odemira, ou os 70 nepaleses do Algarve, ou os 130 ciganos de Moura — quando aparece ali algum infectado, a solução é simples: fecham-se todos juntos onde puder ser, mesmo que, no limite, isso signifique a infecção de todos. Em Moura, rodeou-se o acampamento cigano de arame farpado e colocou-se a GNR a vigiar todas as passagens, para que ninguém pudesse entrar ou sair. Chamem a isto o que quiserem, eu chamo-lhe um campo de concentração, por provisório que seja. Há dias, a ministra da Agricultura dizia que talvez se pudesse pegar nos novos desempregados e enviá-los para trabalhar no campo. Julgo que a ministra, que já percebi ser uma entusiasta do olival intensivo do Alqueva e desse tipo de agricultura “industrial” predadora, se estava a referir a essa mão-de-obra que agora vai escassear. Que vive em contentores, que trabalha sem horários e que nenhum sindicato protege. E que, acha ela, os desempregados talvez quisessem substituir. Não sabe do que fala.
4 Olho para as previsões internacionais económicas e a primeira conclusão que tiro é de que todos estão à espera que nada de essencial mude depois de tudo isto passar — e se tudo isto passar, o que também têm por adquirido. Aparentemente, a nata dos economistas do mundo acredita que vamos todos produzir o mesmo, consumir o mesmo, viajar o mesmo, trabalhar da mesma maneira, investir igual. E, por isso, assim como prevêem quedas a pique no PIB de todos os países em 2020, logo prevêem substanciais recuperações em 2021. Oxalá, por uma vez, estejam certos!
Para Portugal, o FMI prevê uma queda do PIB de 8% este ano e uma recuperação de 5,5% já em 2021, com a dívida pública — que tanto custou a fazer baixar até aos 120% do PIB — a disparar de novo até aos 135%. Parece-me, apesar de tudo, demasiado optimista, assim como me parece optimista esperar que os 13 mil milhões que o Governo espera despejar nas empresas e nas famílias chegue para segurar as coisas até passar o grosso da tormenta. Porque, mesmo depois disso, vai haver mais subsídios de desemprego para pagar, mais apoios às empresas para manter, menos receitas na Segurança Social e no Fisco, e tudo isso vai entrar por 2021 adentro. Mas há muita gente que ainda não percebeu que, quando tudo isto assentar, a conta terá de ser paga. Como? Conhecem outra maneira que não seja a de aumentar mais os impostos a quem ainda estiver vivo? Como disse o ministro Siza Vieira, “a despesa do Estado hoje são impostos amanhã”. Só não o percebe quem não paga impostos.
5 É evidente que há muitas coisas que a China ainda terá de explicar ao mundo e muitas coisas que a China terá de garantir ao mundo que não voltam a acontecer por lá. E talvez a OMS tenha também de explicar a forma como tratou inicialmente os dados vindos da China, mas isso, como disse António Guterres, é uma conversa para ter depois. Agora, a meio de uma crise de saúde planetária de uma dimensão jamais vista, cortar o grosso do financiamento da OMS, quando ele é mais necessário do que nunca, é coisa que só podia ser levada a cabo por um tipo tresloucado, cruel e obcecado com a sua reeleição, antes de tudo o mais. Numa longa e terrível reportagem em dois hospitais do Bronx, esta semana, “The New York Times” recolheu o depoimento de médicos dizendo o que toda a gente teve ocasião de perceber por si mesma: que as semanas que Donald Trump levou a não querer aceitar a gravidade do coronavírus custaram milhares de mortos americanos. E é por isso, e também por não conseguir explicar como é que o país mais rico do mundo foi apanhado completamente desarmado em termos clínicos para esta crise, que ele procura todos os dias um novo culpado que possa desviar as atenções de si próprio. Este é o homem mais perigoso do planeta e está à frente da nação mais poderosa do planeta. E pensar que Marcelo o convidou para visitar Portugal! E que, para cúmulo da humilhação, ele desdenhou e recusou o convite!
6 “António José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o dentista abastecia-o de leitura. — São tristes? — perguntava o velho. — De chorar rios de lágrimas — garantia o dentista. — Com pessoas que se amam mesmo? — Como ninguém nunca amou. — Sofrem muito? — Eu quase não consegui suportar — respondia o dentista. Mas o doutor Rubicundo Loachamin não lia os romances.”
E você, leitor, já leu isto em algum lado? Se não leu, leia agora, porque “o velho que lia romances de amor” já não os escreverá mais. Luis Sepúlveda perdeu para o inimigo sem rosto chamado covid uma vida em que nunca perdera para os inimigos com rosto, chamassem-se eles Pinochet ou outros cujo apelido também era morte. Uma vida que foi em si mesma o maior dos romances que escreveu e que, por isso, só lendo-os se percebe que valeu mesmo a pena ter sido vivida. Faz-me raiva pensar que um tão grande sobrevivente, um tão imenso vivente, tenha sucumbido a uma tão traiçoeira emboscada.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia