A «Pax Americana» de Pacheco Pereira

(Manuel Augusto Araújo, In AbrilAbril, 27/06/2022)

(Ó Pacheco, que porradão que levas nesses costados por navegares nos mares das “meias-tintas”. Sempre, sempre ao lado do povo, não é Pacheco? Mas, na hora da verdade, o Tio Sam é quem mais ordena, não é verdade?

Estátua de Sal, 27/06/2022)


O texto de José Pacheco Pereira intitulado «A “paz” para uma guerra abstracta, sem invasores e invadidos», publicado no sábado, dia 25, no jornal Público é must de sofismas para de forma encapotada e cavilosa se colocar fratalmente, nada como lá estar sem ser visto, na primeira linha dos defensores da ordem unipolar imposta pelos EUA e o seu braço armado NATO, que desde há dezenas de anos tripudia o direito internacional, impondo as suas regras assumidas como os valores ocidentais, os do Ocidente que desde o séc. XVII exploram as matérias-primas e humanas do resto do mundo em seu proveito.

Pacheco Pereira tem o desplante de a dado passo escrever: «Confesso que não entendo, ou entendo bem demais, a começar pela fórmula de abertura “Independentemente de opiniões diversas sobre os desenvolvimentos no plano internacional”. O que é que isto significa a não ser tornar a guerra, que se pretende condenar em termos genéricos, uma completa abstracção?»

Quem o lê é que percebe bem demais que quem considera a guerra, que na Ucrânia se iniciou em 2014, uma completa abstracção e que, contra todas as brutalidades daí decorrentes e outras actividades com ela correlacionadas, como a Ucrânia se ter tornado campo de treino das milícias nazi-fascistas da Europa, EUA e Canadá, é o Pacheco Pereira que esteve oito anos em cerrado silêncio completamente surdo, cego e mudo contra todas as evidências que o Conselho Português para a Paz e Cooperação, e já agora o PCP, iam denunciando, a par de outras guerras e outros atentados contra a Paz que sucediam no mundo. 

Não é um acaso, como não é um acaso o autor escrever «ou se se quiser, do “imperialismo americano”», entre aspas evidentemente, porque para ele esse imperialismo é justificável e irrefutável, deve ser aceite como guardião dos chamados valores ocidentais recorrendo a sanções, golpes de estado, sabotagens para subverter o direito soberano dos povos se libertarem das suas garras e, sempre que esse arsenal se mostrar insuficiente, impô-lo à mão armada fomentando guerras de forma directa ou indirecta, como é o caso actual da Ucrânia.

Isso para Pacheco Pereira é justificável porque o essencial é que o «se se quiser “imperialismo americano”» continue a ser o grande defensor da cidadela que ele habita com a janela escancarada para os poderes da burguesia que bem sabem que ele lá estará sempre para os defender e justificar mesmo quando os critica, nos vários órgãos de comunicação social em que abundantemente debita. 

Pacheco Pereira é, nesse seu Portugal, três sílabas de plástico, que é mais barato, como escreveu O’Neill, o mais acabado exemplo de intelectual orgânico. Nessa função tem escrito ultimamente até coisas inesperadas e interessantes, a par de textos como este último, um contínuo de escritos paradoxalmente em contradição com uma ideia que importou de França e que em certa altura andou a propalar, a da morte dos intelectuais universais, que desmente com contumácia quando continua com as suas copiosas teorizações a desempenhar um papel que dizia estar extinto, com pontos de vista sobre a história em que se assume como um gestor de existências, uma forma de enganar o público bem denunciada por Pierre Bourdieu, mas também por Derrida.

    1. São as contradições das teias de aranha em que estão presos os intelectuais orgânicos. Como Gramsci extensamente teorizou e demonstrou, numa sociedade de classes não existem intelectuais completamente autónomos em relação à estrutura social. Nas relações de produção hegemónica das diferentes etapas do desenvolvimento histórico, as sociedades criam para si uma ou mais camadas de intelectuais que lhes proporcionam homogeneidade e consciência da sua própria função no campo político, social e económico. Esses intelectuais têm uma ligação vital com a classe que lhes deu origem. Para esse teórico marxista, a formação de uma massa de intelectuais não se justifica, apenas, pelas necessidades da produção económica, por meio de formação de técnicos, mas pelas necessidades políticas do grupo dominante. A relação dos intelectuais com o mundo da produção não é, como a dos grupos fundamentais, imediata. É mediatizada pelo conjunto das superestruturas das quais o intelectual é funcionário. Gramsci observa que em nenhum momento do desenvolvimento histórico real foi elaborada uma quantidade tão grande de intelectuais como na moderna sociedade burguesa. Um facto que se tornou mais óbvio nos nossos tempos com a proliferação de think tanks, gabinetes estratégicos, laboratórios de ideias, etc., etc., que se multiplicam mais que espécies invasoras. 

«Como Gramsci extensamente teorizou e demonstrou, numa sociedade de classes não existem  intelectuais completamente autónomos em relação à estrutura social. Nas relações de produção hegemónica das diferentes etapas do desenvolvimento histórico, as sociedades criam para si uma ou mais camadas de intelectuais que lhes proporcionam homogeneidade e consciência da sua própria função no campo político, social e económico.»

Mais que muitos outros e melhor que muitos outros, Pacheco Pereira enquadra-se nesta definição gramsciana. Os seus textos surpreendentes e mesmo surpreendentemente relevantes devem ser lidos com essa lupa. Mas há sempre um momento em que tem a necessidade de ocupar lugar de destaque na defesa dos valores da sociedade de que faz parte e o sustenta. Nunca a trairá. Empenhado na defesa da ordem unipolar, «se se quiser, do “imperialismo americano”», como se isso não fosse o que tem comandado o mundo nos últimos decénios, não seja a mão visível e invisível dos conflitos armados, das «guerras na Ucrânia, no Iémen, na Síria, na Líbia ou no Iraque, entre outros conflitos que flagelam o mundo» e «da situação na Palestina ou no Sara Ocidental», como refere o comunicado que apelava à manifestação pela Paz que tanto incomoda Pacheco Pereira.

Para ele só há uma guerra, a que sucede no território da Ucrânia, que é de facto uma guerra entre os EUA/NATO e a Rússia, por interposta Ucrânia, uma guerra que se iniciou em 2014 e culminou com a invasão da Rússia ao território ucraniano, o que ele oculta para justificar a arenga. Não deixa de ser curioso, embora seja bastante revelador, que um historiador abdique de contextualizações para alinhar no mais rasca e barato argumento de haver um país invasor e um país invadido, como se isso fosse um jogo de matraquilhos. Igualmente revelador é o facto de Pacheco Pereira denunciar que «o nome “Ucrânia” está lá no apelo, numa lista que mistura Palestina, Saara Ocidental, Iémen, Síria, Líbia e Iraque, onde a actual guerra é nomeada de passagem e sem relevo, como se fosse uma entre muitas comparáveis fortes e soberanos.» 

As outras guerras referidas no comunicado, no Iémen, na Síria, na Líbia ou no Iraque, com mortes, devastações, refugiados, crises humanitárias incomparavelmente maiores que as que se registam na Ucrânia, para ele são cousas menores. Em relação à Palestina e ao Saara, nunca falou abertamente de uma das maiores injustiças da história moderna, pelo que faz uma miserável desvalorização do direito à auto-determinação desses povos e da importância da sua luta no contexto da paz. 

Percebe-se, encara essas guerras e o direito à auto-determinação desses povos com a lógica do homem branco que Aimée Cesaire tinha denunciado: «sim, valeria a pena estudar, clinicamente, no detalhe, as trajectórias de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês do século XX, muito distinto, muito humanista, muito cristão, que ele carrega um Hitler que se ignora, que Hitler mora nele, que Hitler é seu demónio, que se ele o vitupera é por falta de lógica, e que, no fundo, o que ele não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, e de ter aplicado à Europa procedimentos colonialistas que até agora eram exclusividade dos árabes da Argélia, dos collies da Índia e dos negros da África.» 

«Não deixa de ser curioso, embora seja bastante revelador, que um historiador abdique de contextualizações para alinhar no mais rasca e barato argumento de haver um país invasor e um país invadido, como se isso fosse um jogo de matraquilhos.»

Pacheco Pereira de forma subliminar, sem ter a coragem de o assumir frontalmente, considera que a Europa detém uma cultura única que lhe dá o direito e até a missão, comandada pelos cruzados dos EUA/NATO, de dirigir o mundo conforme a sua vontade.

A tralha do seu texto são encadernados sofismas em que a Paz, desde que não seja a Pax Americana, não interessa, pelo que mistura alhos com bugalhos com grande à vontade, num texto minado de tretas, em que a memória histórica é bombardeada com napalm, em que a questão central é combatida como se o autor do texto fosse ideologicamente detergentado para que se fique pela superfície das coisas e o alvo imediato, a luta pela Paz, se esvazie de significado.

Acaba o texto com o desafio de uma coboiada, propondo um duelo ao sol nos ecrãs televisivos, um dos aquários onde deposita regularmente os seus pensamentos. Arma-se em Shane, mas como não passa do excêntrico Lee Clayton, se, ao contrário do filme de Arthur Penn conseguir sobreviver, pode esperar solitariamente sentado por seriedade intelectual, ninguém irá responder ao desafio.


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O estranho caso do historiador sem história

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 03/08/2021)

Pacheco Pereira irritou-se muito por no Twitter lhe lembrarem que foi contra a amnistia de Otelo e o disse “sem caráter”. Vai daí, publicou um texto furibundo contra o Twitter. É normal: nas TV onde perora ninguém costuma confrontar este historiador com um certo passado – o seu.


(Ó Pacheco, desta vez meteste o pé. Bastava teres respondido com o Evangelho de São Lucas: mais vale um pecador que se arrepende do que 99 justos… 🙂 – Comentário da Estátua de Sal)


Não há qualquer dúvida – eu não tenho – de que Pacheco Pereira é um dos mais interessantes comentadores portugueses. Inteligente, cáustico, lido, muitas vezes o que escreve demonstra capacidade de análise que vai para além da superfície e nos suscita reflexão, sendo até possível achar (já achei) um certo encanto no tom de enfado, quase neurasténico, com que se apresta a explicar o mundo aos menos afortunados no campo cerebral – nós todos, naturalmente.

O que escreve deve porém ser lido com precaução: é bem possível que tenha já defendido o absoluto contrário, com o mesmíssimo tom de impaciente superioridade. E sem jamais explicar a, digamos, evolução. Porque, claro, mudar de opinião é normal e até desejável em determinados assuntos, mas convém explicar porquê – sob pena de se poder concluir que tais mudanças são fruto de estratégias e oportunismos (ser conveniente num determinado contexto ter outros aliados e alvos, tendo mudado de inimigo) e não de uma reflexão honesta, fruto de amadurecimento e/ou alterações de circunstâncias.

Vejamos o caso de Otelo. Pacheco Pereira, numa intervenção televisiva e num texto na Sábado, alertou para a “tribalização” que a sua morte iria suscitar (“Nos dias que atravessamos, de reducionismo da política à arregimentação tribal, Otelo terá o panegírico do herói e o vilipêndio do criminoso, e não vai haver capacidade para olhar para ele com distanciação”); na Circulatura do Quadrado, comparou Spínola e o estratega do 25 de Abril, vincando que o primeiro (também dirigente de um movimento terrorista, o MDLP, e ligado a uma tentativa de golpe de Estado que o levou a fugir do país) tivera direito a luto nacional e o segundo não. Não o vi defender preto no branco que Otelo, cujo papel de dirigente das FP25 reconhece, deveria ter essa honra, mas a ideia que fica é essa – as suas palavras “com Spínola não haveria 25 de Abril, sem Otelo não haveria 25 de Abril” foram amplamente citadas por quem o preconizou.

Nada de problemático haveria nisso – podemos concordar ou discordar; podemos por exemplo achar que Spínola não deveria ter tido essa honra apesar de ter sido PR e que ter-se errado no seu caso não justifica repetir o erro (é o que penso) – se o mesmíssimo Pacheco Pereira não se tivesse oposto à amnistia aprovada pelo parlamento em 1996 (curiosamente, no ano da morte de Spínola) de que Otelo, condenado pelo Supremo, em decisão nunca transitada em julgado, a 17 anos de prisão por terrorismo dos quais cumpriu cinco em preventiva, foi beneficiário.

Vale a pena revisitar a intervenção de Pacheco Pereira como deputado na discussão da amnistia. Nesta, vincava que a proposta dividia “profundamente os portugueses” e não tinha “qualquer papel de pacificação da sociedade portuguesa”; que justificá-la com a “dualidade fascismo/antifascismo” era “legitimar a atuação das FP-25 de Abril”, porque correspondia a “interpretá-la como um ato que pode ser hoje, em 1996, visto como politicamente legítimo, como um ato que pode ser inserido num comportamento antifascista e que, pelo reverso, pode ser comparado ao comportamento da PIDE.” A Otelo, elegia-o entre os responsáveis das o bebé de quatro meses morto em 1984 por uma bomba enquanto dormia no berçoFP como o mais imperdoável: “Há, pelo menos, uma pessoa que não merece a amnistia. Essa pessoa é a que, depois do que aconteceu, dando uma entrevista ao semanário Expresso e falando da morte de uma criança [o bebé de quatro meses morto em 1984 por uma bomba enquanto dormia no berço], disse que se tratava de um erro técnico! E este cinismo, este sim, não pode ser amnistiado!”

Cinco anos depois, em 2001, aquando do chamado “julgamento dos crimes de sangue” das FP25, no qual Otelo era mais uma vez arguido e no qual foi, como previsível no pós-amnistia, absolvido, o nosso político/comentador/historiador voltava à carga num brutal artigo no Público, intitulado A bofetada, verberando a “injustiça praticada pela justiça e pelo poder político no caso das FP-25 de Abril”, cuja ação definiu como “puro terrorismo político, crimes contra tudo o que são os fundamentos da democracia e dos direitos humanos”.

O “ar impante de Otelo e dos seus companheiros, os abraços esfuziantes à saída do tribunal, são uma bofetada para a esmagadora maioria dos portugueses”, afiançava, redobrando a sua fúria contra “o sorriso de Otelo (…), na ‘aisance‘ criminosa dos que não se arrependeram, mas que fazem hoje a sua vidinha de antigos combatentes, como se nada fosse (…), sem uma palavra de distância, sem entregarem uma arma ou explosivo, sem pagarem um tostão às vítimas, prontos para o ‘talk show‘, com esta arrogância que nos fere a todos”. Para concluir: “Também aqui os homens de caráter perderam e os que não o têm ganharam.”

É possível, aos 52 anos, Pacheco Pereira achar isto tudo de Otelo – que não tinha caráter, que era um criminoso impenitente e desalmado, que a sua amnistia e absolvição não deviam ter acontecido, ou seja, que deveria ter passado 20 ou mais anos na prisão, que o resultado dos dois processos das FP25 era uma “violência” introduzida no “tecido psicológico coletivo”, um “rio de ressentimento” que havia de “vir ao de cima” – e aos 72 pedir “distanciação” e até dar a entender que ele devia ser celebrado como grande da pátria?

É possível, porque aconteceu. Convinha era assumir. Justificar o facto de, quando teve o poder de decidir com o seu voto, ter votado Otelo ao opróbrio. Ou admitir que “estava enganado”, “enraivecido”, “era a posição do meu partido/tribo”, “foi a minha fase caceteira”, “via o mundo a preto e branco”, “era parvo” – qualquer coisa assim.

O que não faz sentido é arrogar-se a postura do filósofo historiador que sopesa contextos e despreza aquilo a que chama “tribos”, atribuindo aos outros aquilo que ele próprio fez, e de forma muitíssimo violenta – apor o “vilipêndio do criminoso” a Otelo. O que é patético, evidenciando um determinado tipo de caráter, é reagir, perante quem confronta o recoletor da Ephemera com recortes da sua história, como se o caluniassem.

Furibundo com o facto de no Twitter – ao contrário do que se passou no universo das TV, no qual comentou a morte de Otelo sem ninguém lhe ter feito uma perguntinha que fosse sobre o seu historial no que a Otelo respeita (não sabiam ou, como ele, acham que isso agora não interessa nada?) – se ter recordado o seu passado, o historiador não teve a humildade de se colocar na história como peão que cada um de nós é, examinar-se como produto do seu tempo e contexto, fazer errata do seu percurso. Entrou, ele que foi dos primeiros a entusiasmar-se com os blogues e o mundo da internet, na imprecação contra “as redes”, queixando-se de “ódios pessoais e políticos”, “ajustes de contas” e “disseminações de calúnias” – isto sem nada concretizar, que apresentar factos só se exige aos outros e dizer o que tanto o irritou não dava jeito nenhum.

Num texto ironicamente intitulado A máquina do preto e branco, Pacheco, que um dia, há muitos muitos anos, quando eu ainda o cria pessoa séria e lhe dirigia a palavra, me disse “eu leio tudo”, retrata-se na demonstração de que passeia clandestino nesse universo que relata tanto desprezar, anotando elogios e críticas e acalentando os ódios pessoais – baixinhos, baixinhos – que imputa aos outros. O “monocolorismo” que descreve ser o Twitter serve-lhe afinal para descrever o Twitter – como se o Twitter, como o mundo, porque como o mundo, os jornais, as TV, os blogues, é feito de pessoas, não tivesse de tudo.

“Olhem para mim e vejam como estou indignado”, é o resumo do Twitter por Pacheco Pereira num texto que se resume a isso mesmo: a sua indignação por haver – como se atrevem, como me atrevo? – quem lhe denuncie o bluff.

Jornalista

NOTA: texto alterado às 19.41 de 3 de agosto, para colocar o título correto do texto de opinião de Pacheco Pereira: A máquina do preto e branco em vez de, como estava escrito, O mundo a preto e branco.


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Costa nas muralhas da cidade

(Valupi in Blog Aspirina B, 01/08/2019)

(Anda Pacheco! Mas que grande sova que aqui levas. De truz, como dizia o Eça. Essa Circulatura fez-me lembrar uma canção popular: “Juntaram-se os três à esquina a tocar a concertina e a dançar o sol e dó”. E dizia o Pacheco que o PSD teve o Duarte Lima, como se fosse coisa pouca. Então e o BPN e o Oliveira e Costa e companhia? E o próprio Cavaco, genro e animais de estimação? A memória dos homens é curta e a do Pacheco, para certos dossiers, é curtíssima…

P.S – Artigo dedicado ao comentador habitual deste blog, José Neves – para seu gáudio -, e também dedicado ao comentador de serviço, RFC, para sua exasperação… 🙂

Comentário da Estátua, 01/08/2019)


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António Costa regressou ao convívio com os seus grandes amigos da política-espectáculo, Lobo Xavier e Pacheco Pereira: Circulatura do Quadrado – 11 de Julho. O evento não teve qualquer repercussão no comentariado que a minha distracção tenha apanhado. No entanto, e a vários níveis, é mais uma peça notável deste trio onde se pode ver o invisível da política nacional.

A chegar ao minuto 40, o Pacheco avança para a grande paixão da sua vida, entretanto amainada dado estar satisfeito com o auto-de-fé em curso mas ainda viva dado o investimento emocional e afectivo. Eis como ele apresenta a acusação:

«O PS permitiu, durante muito anos, o ascenso político no seu interior de pessoas... e aqui não é um problema de saber se foram julgadas ou não foram julgadas, isso é um problema da lei; é um problema de comportamentos. Quando o antigo primeiro-ministro diz que não usa dinheiro, que não usa cheques e que pretende pagar tudo com dinheiro vivo, quando coloca bens em sítios terceiros, quando vive de rendimentos não conhecidos por favores de amigos, há uma enorme obrigação, há muito tempo, de haver um corte, muito sério, no Partido Socialista em relação ao antigo primeiro-ministro José Sócrates. O antigo primeiro-ministro José Sócrates teve casos durante todo o tempo em que esteve dentro no PS. Como tinha poder, ninguém ligou nenhuma. Ou então remete para uma falsa ideia de que a ética republicana tem a ver apenas com os julgamentos e com o comportamento da Justiça. Não. Uma das razões porque o populismo cresce em Portugal é porque os dirigentes partidários mostram uma considerável indiferença em relação à corrupção no interior dos seus partidos, e permitem que pessoas façam carreiras quando toda a gente sabe que aquilo não é certo; e toda a gente sabe. [...] A gente dava um pontapé numa pedra e saía o Engenheiro Sócrates debaixo da pedra, em praticamente todas as coisas. Eu só estou a falar de coisas que ele admitiu fazer, nem sequer estou a falar das coisas que têm a ver com a "Operação Marquês" e com as conclusões. Portanto, se há um aumento do populismo em Portugal isso tem muito a ver com o facto de os partidos não serem muito duros com a corrupção no seu interior. E Isso significa que não podem permitir no seu interior carreiras de pessoas que se percebe que eram pobres e passam a ricos. E isso não depende apenas da investigação do Ministério Público ou dos julgamentos, depende também da nossa obrigação de saber o que se está a passar. Porque nós sabemos o que se está a passar. Dentro dos partidos, um dirigente sabe o que se está a passar, conhece o que se está a passar. Sabe que há práticas admitidas que são inaceitáveis. E, por isso, se há responsabilidade no crescimento do populismo em Portugal, passa muito pelo Partido Socialista, porque o caso do Partido Socialista é muito mais grave do que é no PSD. No PSD há o caso do Duarte Lima. [...] No PS, há um conjunto de pessoas que puderam fazer carreira no partido sem que nunca tivessem sido prejudicados pela circunstância de haver comportamentos que são absolutamente inaceitáveis

Trata-se de uma juliana de porcarias. O Pacheco não preparou a intervenção, ficou evidente. Entrou no estúdio para literalmente falar de cor, para virar mais um frango no seu ganha-pão, a indústria da calúnia. Saiu-lhe o discurso atabalhoado e repetitivo mas cumpriu o objectivo de se fantasiar de paladino da moral e da virtude enquanto continuava a perseguir Sócrates. Por saber que não seria contraditado, que nada teria de justificar, a displicência do seu argumentário espelha a obesa impunidade em que enche os bolsos. Mas olhemos para o subtexto, de que está a falar o Pacheco?

A ideia principal, de manual de retórica, consiste em apelar à identificação da audiência. O que marmeleiro está a dizer é tão-só o que “toda a gente sabe”. Logo, o seu lugar de partida institui-se como indiscutível na economia do seu discurso, é aquilo a que os ingleses (os cultos, os que tinham aprendido latim) chamaram “vox populi”.

Ora, o bom povo está farto de saber que os políticos são corruptos, que os partidos são escolas e antros de corrupção, que isto acontece assim desde que a água dos rios corre para o mar. O bom povo já julgou, condenou e transitou em linchado Sócrates. Apesar da falta de novidade, este número em que aparece alguém a tocar a mesma cassete populista pela enojéssima vez funciona e permite viver à pala disso calhando ter-se um descaramento debochado. É o caso do Pacheco.

Ir buscar informações vindas a público em 2014 e 2015 – as quais, nesta altura pelo menos, apenas são factuais para a esfera privada e pessoal de Sócrates e que não permitem estabelecer uma culpabilidade de corrupção por si só – para castigar um partido de poder e seus dirigentes e responsáveis é sofística, é demagogia, é pulhice. Antes da investigação do Ministério Público era impossível ter ostracizado politicamente Sócrates dentro do PS pela simples e evidente razão de não haver razões para tal. A esta falácia junta-se a outra de se apelar ao critério do boato para abater políticos. O Pacheco jamais aceitaria tal se estivesse activamente em funções no PSD, de imediato denunciando a baixa política indecente do intento, mas eis que, como profissional da calúnia, o está a reclamar para os outros, os alvos da sua retórica. Uma campanha de insinuações, ter órgãos de comunicação social engajados, está aqui a fórmula para decapitar a liderança de um partido e de um Governo, aparece em 2019 a defender para epater les burgessos.

Acima e antes de tudo, no fundo do fundo, a principal mensagem que a vedeta do comentariado nacional espalhou foi esta: “Eu sei que nos partidos andam todos a roubar, por actos e omissões, e que a elite governante medra neste meio.” Dito de outra forma, para este ilustre membro da Ordem da Liberdade o Estado de direito não se aplica dentro dos partidos e, por inerência, aos seus dirigentes, mais os actuais e futuros membros da Assembleia da República, Governo e Tribunais. “E toda a gente sabe”. Toda a gente sabe e concorda, pois a eficácia deste número de revista depende de não haver qualquer consequência na plateia e nos camarotes. A indústria da calúnia precisa de “moralistas” como o Pacheco, alguém que passou pelo Cavaquismo só para desenvolver teorias acerca da corrupção dos socialistas. Daí nunca ter partilhado connosco a logística do Cavaquistão de que foi cúmplice nesse tempo em que o Estado era 100 vezes mais fraco para sequer detectar a alta corrupção, quanto mais combatê-la e puni-la, do que ficou após as mudanças legislativas precisamente protagonizadas pelo PS e por Sócrates.

Nas duas últimas intervenções de Costa, das melhores de sempre da sua parte, vemos um Lobo Xavier exposto como cavalheiro de indústria e um Pacheco Pereira estatelado ao comprido com um golpe de judo. Imperdível o espectáculo em que a política rechaça nas muralhas da cidade quem vive de assaltar a democracia.


Fonte aqui