O Partido Popular subiu em deputados em relação às eleições que decorreram há seis meses e, mesmo com enorme aumento da abstenção, de votos. Continua a ser trambolhão em relação às eleições que o levaram ao governo mas, perante os escândalos em que o partido tem estado envolvido, que numa situação normal levariam à sua implosão, não deixa de ser assinalável.
O PSOE afunda-se mais um pouco, afastando-se do PP e deixando que o Podemos se aproxime dele em representação parlamentar. O Podemos não rentabiliza a aliança com a Esquerda Unida e perde muitos votos. Mas no parlamento fica melhor do que estava, aproxima-se do PSOE e deixa o Ciudadanos para trás. Mesmo que hoje este resultado seja apresentado como uma derrota, muito por causa das expectativas criadas pelas sondagens, não deixa de ser extraordinário que uma força acabada de chegar se tenha imposto de tal forma que resiste à pressão causada por seis meses de ingovernabilidade em que o próprio Podemos surgiu como o principal problema. O Ciudadanos saiu do grupo da frente e não pode ambicionar a ser mais do uma espécie de CDS do PP.
Do ponto de vista aritmético, pouco ou nada mudou. O PP e os Ciudadanos continuam a não conseguir formar governo sem ajuda do PSOE, PSOE e Podemos continuam a não conseguir formar governo sem ajuda do Ciudadanos. A diferença principal é política: Pedro Sanchez não teria hoje condições para liderar um governo. E o Podemos não teria a mesma força para fazer exigências. À esquerda o bloqueio ficou maior do que à direita.
A situação estava fadada para ser difícil. O PSOE, já se sabia, não iria disparar. Só à custa de uma subida do Unidos Podemos é que a esquerda conquistaria a maioria. O que, tal como indicavam as sondagens à boca de urna, só seria possível se o Podemos ultrapassasse o PSOE. E aí a aliança seria também difícil.
O PSOE disse duas coisas e, se não quisesse criar um bloqueio, iria ter de rever uma delas: que não apoiaria um governo Rajoy e que Pablo Iglesias não lideraria um governo com um PSOE. Para não haver novas eleições alguma das duas teria de acontecer. E as duas representariam um suicídio para os socialistas. A questão seria saber qual era pior. Neste momento, a pressão para escolher a segunda é enorme. Bons amigos de ocasião, sobretudo de direita, apelam à abstenção sistemática, tornando o PSOE numa inexistência política. Depois de anos a pedir aos socialistas que não o fossem, agora pede-se que não existam. Para acabarem por desaparecer, como aconteceu ao PASOK e poderá vir a acontecer ao SPD.
A situação espanhola retira razão àqueles que consideraram que Costa estava a cometer uma loucura em Portugal. Percebeu que começávamos a assistir aqui a uma transformação eleitoral semelhante à que está a acontecer em vários países do sul, onde felizmente a extrema-direita não consegue captar voto de protesto e são os partidos mais à esquerda que captam eleitores descontentes.
Antecipou-se, apanhando o Bloco e o PCP com força suficiente para ter alguma coisa a perder mas sem força para fazer o que Iglesias fez em Espanha. Entendeu-se com a esquerda a tempo de a liderar. Porque a alternativa seria vir a ser obrigado a fazer o papel que o SPD faz hoje na Alemanha ou que o PSOE pode vir a ser obrigado a fazer em Espanha.
A inteligência de António Costa foi a de mudar a estratégia do PS antes que mudasse o sistema partidário e o PS ficasse numa situação muitíssimo mais frágil. Tomou a iniciativa antes que o contexto o passasse a ser um beco sem saída em que ficou Sanchez. Quem acusa Costa de estar refém do resto da esquerda devia olhar para Espanha e para a situação do PSOE.
(Baptista Bastos, in Correio da Manhã, 15/06/2016)
Baptista Bastos
Esta nova etapa do PS, por ser nova, dispõe de inimigos internos e externos.
As boas relações entre Marcelo e Costa desanuviaram, substancialmente, a atmosfera de confronto esquizofrénico mantida e estimulada pelos dois anteriores donos do poder. Não será precipitado determo-nos um pouco acerca das reservas que o futuro consigo trará. Esta “associação” das Esquerdas vai manter-se para as próximas legislativas? E Passos Coelho, com quem se conubiará?, posta de parte, ao que parece, uma nova relação com o CDS. Aliás, as debilidades de Assunção Cristas são evidentes, sobretudo em confronto (queiramos ou não) com o “génio” político de Paulo Portas e a mascarada em que, com ele, a política se transformou.
É muito difícil que o PS, só ele, ganhe folgadamente as eleições. Assim como parece pouco viável que o PSD saia vencedor da pugna. Por outro lado, ante este vazio quase sem saída, uma solução seria, acaso, o reforço do Bloco e a imposição do seu método e dos seus processos a um novo acordo com os socialistas, que, no Congresso recente, sustentaram, com entusiasmo, a estratégia de Costa. E será que os “sociais-democratas” aceitarão um Passos Coelho desprovido de projecto, e envolvido em fatal melancolia.
O PCP possibilitou que o PS fosse governo, e a angústia de muitos dos seus militantes apaziguou-se com os resultados até agora obtidos. Mas os comunistas possuem um ideário, um desígnio e um programa que não abandonam. E desconfiam, historicamente, de um partido que sempre se aliou à Direita. “Isso foi na Guerra Fria”, objectar-se-á. Porém, as coisas não são bem assim. E os traços de uma guerra ideológica deixaram feridas que não curaram. Esta nova etapa do PS, por ser nova e nunca experimentada, dispõe de inimigos internos e externos. Também se aguarda o que vai acontecer em Espanha, com um Partido Popular, ninho de todas as corrupções, estranhamente inamovível.
“Acho que o partido aprecia coragem e quem, de forma desassombrada, frontal, em campo aberto, diz o que tem a dizer sobre as suas divergências, porque esta é a única maneira de as pessoas verdadeiramente servirem o partido, com essa frontalidade e com essa verticalidade.” Não posso deixar de subscrever estas palavras de Sérgio Sousa Pinto sobre a intervenção de Francisco Assis. Quem vai à luta por aquilo em que acredita merece ser respeitado por isso. Só acho estranho que Sérgio Sousa Pinto não se tenha apercebido da contradição desta declaração com a sua própria recusa em falar ao congresso depois de tantas criticas públicas. Mas nestas coisas cada um sabe das suas razões e cálculos.
Francisco Assis tem quatro argumentos contra a geringonça e foi isso que foi reafirmar no congresso do Partido Socialista. Que este entendimento é contranatura e que são os consensos ao centro que correspondem à história do PS. Que a posição de comunistas e bloquistas em relação à Europa torna este entendimento impossível. Que com estes partidos não se podem fazer reformas estruturais – isto não disse na sua intervenção, mas disse-o em várias entrevistas. E que o PS está agora refém do Bloco e do PCP.
Quanto à primeira, já desenvolvi aquilo que considero ser um equívoco de Assis no texto que escrevi no semanário. Os entendimentos ao centro, por essa Europa fora, faziam-se em torno da construção do Estado Social numa economia de mercado, da concertação social, de um projeto europeu com o objetivo da convergência económica e social entre os estados e na oposição ao bloco soviético. Todos estes elementos, que afastavam a social-democracia da esquerda revolucionária e a aproximavam do centro-direita, desapareceram. Hoje, a tentativa de criar um mercado privado de serviços públicos, a desregulação laboral e a tomada da União por uma agenda ultraliberal afastam aqueles que queiram manter-se fiéis ao ideal social-democrata dos que, à direita, propõem a destruição deste património.
Quanto à Europa, ela é hoje o oposto do que se propôs ser. O “europeísmo” não faz qualquer sentido se for despido de conteúdo político. Não se é pela Europa se a Europa não for mais do que uma identidade regional ou institucional. O projeto europeu que juntava a social-democracia, a democracia-cristã e, ao contrário do que é costume dizer-se, parte da esquerda marxista (Altiero Spinelli é um dos pais fundadores do federalismo europeu e era do Partido Comunista Italiano) é o oposto da União Europeia que hoje conhecemos. Ou para Assis é indiferente se encontramos o paraíso ou o inferno em Bruxelas desde que caminhemos para Bruxelas?
Também as reformas estruturais de que fala Francisco Assis são apenas palavras. Não por acaso, nunca lhes dá corpo. Porque se desse teria de explicar aos socialistas que raio de reformas pode o PS fazer com o PSD de Pedro Passos Coelho. Defende que se deve caminhar para uma solução como o cheque-ensino? Acha que é necessária uma maior desregulação das relações laborais, como Bruxelas propõe e a França está a tentar fazer? Pensa que o país será mais competitivo por via de uma contração salarial permanente? Acha que se devem privatizar mais sectores em que o Estado ainda tem presença? Os transportes? A Caixa Geral de Depósitos? É que a expressão “reformas estruturais” tem servido, na realidade, para definir um tipo de reformas que correspondem, no essencial, ao desmantelamento de grande parte das conquistas da social-democracia europeia no século XX. As de sentido inverso, para as quais o PS nunca contaria com a colaboração do PSD, são uma coisa sem nome ou sempre com nomes pouco agradáveis. Na realidade, se o PS for fiel ao seu programa e ao seu ideário político, não são o PCP ou o Bloco os principais obstáculos a estas “reformas estruturais”. É o próprio PS.
Por fim, a parte menos séria: que o PS está refém do Bloco e do PCP. Claro que está. Assim como o Bloco e o PCP estão reféns do PS, sabendo que, por vezes, ao serem coerentes com alguns pontos de vista seus, podem ser responsabilizados por uma crise política que pagarão nas urnas. E o PSD esteve refém do CDS (apesar do CDS só ter usado essa posição para exigir lugares). Qualquer partido que não tenha maioria absoluta e procure aliados fica refém desses aliados. Por isso mesmo se assinaram acordos: para estabelecer os limites dessa relação. Ainda assim, é bem menor a dependência do PS em relação a estes dois partidos do que seria se estivesse obrigado a viabilizar um Governo de Pedro Passos Coelho. É isso que Assis defende? Imagina que preço pagaria o PS se o fizesse? Ou defende que o PS deveria deixar o país ingovernável até haver novas eleições? Na realidade, Assis nunca diz que alternativa defende. E é essa talvez a razão pela qual não é fácil levar a sério algumas das suas críticas.
Se me tentasse esforçar para encontrar os valores matriciais de um partido que nunca foi o meu, diria que neles estão a defesa do Estado Social e redistributivo; o combate à desigualdade como um elemento central de luta política; a defesa da democracia representativa e da democracia social e económica; a construção das condições materiais e sociais para um exercício pleno da liberdade; uma relação descomplexada com o papel do Estado na economia; e a convicção que há uma diferença entre economia de mercado e sociedade de mercado. Enfim, é aquilo a que os próprios chamam socialismo democrático. Tem a parte do “democrático” e tem a parte do “socialismo”. É esta a matriz do PS e foi, na realidade, esta a matriz fundadora do PPD. Pode ter sido um equívoco no PPD, não me parece que seja o caso do PS.
O mundo mudou. Parte desta matriz foi várias vezes renegada e várias vezes recuperada. Mas a identidade do PS não está no projeto europeu ou na relação que mantém com este ou aquele partido. Esses são elementos históricos, mas sempre instrumentais. Eles foram determinados pelo contributo que podiam oferecer ao ideário político do PS, que é a sua identidade. Mas a Europa e o PSD já não são os mesmos.
O “europeísmo” que o PS abraçou e de que foi o mais evidente representante em Portugal era o oposto do que é hoje a União Europeia. Quanto muito o PS é “europeísta” por acreditar que se deve bater na Europa por outro rumo. Para ser fiel aos seus valores históricos, o PS estará sempre em tensão com o consenso que hoje vigora em Bruxelas. Da mesma forma, a relação com o PSD resultava de um consenso sobre o Estado Social. Um consenso que desapareceu.
O problema de Assis é que, ao confundir instrumentos com valores, esvazia de conteúdo as palavras. Não sabemos se o “europeísmo” de que fala é aquele que está a asfixiar as democracias europeias ou o que foi sonhado pelos fundadores do projeto europeu. Se for o primeiro, tudo segue como de costume. Se for o segundo, o confronto com Bruxelas é inevitável. Não sabemos se as reformas estruturais de que fala são as que vêm em relatórios de instâncias europeias ou as que permitiriam um pouco mais de justiça social neste país. Se forem as primeiras, os entendimentos com o PSD são fáceis, se forem as segundas há um fosso intransponível entre os dois partidos. Assis olha para a história do PS e vê apenas palavras e gestos sem atender ao conteúdo político dessas palavras e ao fim último desses gestos.
A eleição de António Arnaut como presidente honorário do PS foi talvez a melhor resposta de António Costa ao apelo à memória feito por Francisco Assis. É difícil encontrar no PS alguém que represente de forma mais perfeita os seus valores matriciais do que o fundador do Serviço Nacional de Saúde. E é difícil encontrar no PS alguém que esteja mais distante de tudo aquilo em que acredita Pedro Passos Coelho, com quem Assis preferia ter-se entendido.
Não é contranatura fazer uma aliança com antigos inimigos para defender os valores de sempre. Contranatura é repetir entendimentos do passado para destruir aquilo em que se acredita. Não são os aliados que definem quem somos, são as razões pelas quais nos aliamos.