Ó Daniel, que sova, aguentas-te?

(Por Carlos Marques, 01/09/2022)


(Este texto resulta de um comentário a um discurso que publicámos de Daniel Oliveira ver aqui. Pelas questões que levanta e com as quais se debate a esquerda, resolvi dar-lhe o destaque que, penso, merece.

Estátua de Sal, 02/09/2022)


«Nunca lidarei bem com o moralismo agressivo dos convertidos».

Diz o fã #1 do Zelensky, que tanto atacou o PCP quando o partido recusou, e muito bem, ouvir o chefe da Nazilândia no Parlamento Português, após já ter ido falar ao Parlamento Grego e mostrar um vídeo de um Nazi de Azov.
De repente era Daniel o moralista, e o PCP o amoral. Já se esqueceu… Mas eu lembro bem demais!

«Nunca significou um apoio a todas as posições do PCP, que incluíram conivência com algumas ditaduras».

Foi escrita do Daniel, ou exigência editorial do irmão Costa, deixar de fora a parte final óbvia deste parágrafo: com exceção do BE/Livre/PAN, os TODOS os restantes partidos do Parlamento Português também têm historial nesta conivência com algumas ditaduras e, pior, com invasões/guerras que destruíram países inteiros.

«Não tinha grandes razões de queixa do tratamento mediático desde a chegada de Jerónimo de Sousa à liderança. Não tem grande espaço no comentário».

Como se os sucessivos comentários com o PCP de fora, e os IL/CDS/Ch em grande destaque não fosse uma coisa má, uma manipulação da perceção, uma caça ao voto não-oficial, e um ataque descarado ao PCP, e acrescento, ao BE, e PAN. Curiosamente, o Livre/Tempo de Avançar teve mais representação sozinho durante vários anos do que estes partidos todos juntos: Daniel Oliveira, Ana Drago, Rui Tavares, só para referir a troika principal.

«Não há um documento oficial ou uma declaração do secretário-geral – que vinculam o partido – que reconheça a invasão. E que a trate como um ato contra a autodeterminação de um povo, sem responsabilizar imediatamente a Ucrânia e os EUA por isso. Só que, no que toca a invasões militares criminosas, ilegais e imorais, o PCP não é um estreante».

Chama-se factos. O Daniel pelos vistos aderiu à pós-verdade do regime da NATO. A invasão foi o que a ditadura ucraniana fez contra o povo do Donbass, por 3 vezes. Acto contra a autodeterminação de um povo, é o que o Ocidente fez à Catalunha, e continua a fazer à Crimeia, neste caso Daniel incluído. E se o Dia D não é uma invasão criminosa, ilegal, e amoral, então a intervenção militar da Rússia para travar a agressão Nazi contra o povo do Donbass, também não é. Antes, o Daniel era um comentador de esquerda interessante. Hoje, não passa de um idiota útil do Pentágono. E este parágrafo prova isso mesmo.

«PSD e CDS não se limitaram a apoiar a criminosa, ilegal e imoral invasão do Iraque. Envolveram Portugal nessa aventura.»

Muito interessante o deixar de fora o PS em relação a todas as outras operações criminosas da NATO em geral, e dos EUA em particular. O PS, quando chegou ao poder, recusou participar com as tropas portuguesas nessas invasões? Pois claro que não!

«Critico Jerónimo como critiquei Barroso e Portas. A sua posição é imoral, porque insensível aos valores da autodeterminação dos povos».

Para despistar os mais desatentos, começa por invalidar a equiparação do PCP com os fachos. Certo. Mas depois chega aqui e equipara a posição dos pró-paz do PCP com a dos NeoCon belicistas. É igualmente incomparável, mas se o reconhecesse, depois como é que o Daniel ia atirar a matar no PCP no mesmo texto que começa com o título que nos tenta enganar no sentido contrário? O Daniel, a mim, enganou durante muito, demasiado, tempo, mas já não me engana mais.

«Incoerente com o que os comunistas defenderam no Iraque».

O PCP defendeu a paz em ambos os casos. Criticou a agressão da NATO em ambos os casos. Condenou o imperialismo porco dos EUA em ambos os casos.

Mas mais uma vez o Daniel precisa da sua própria incoerência para chegar ao seu real objetivo: atirar a matar no PCP no mesmo artigo em que nos tentou convencer que ia defender a liberdade política/festiva do Avante e do partido.

Com que então, para este idiota útil do Pentágono, prestar ajuda ao povo vizinho do Donbass a partir de dia 24-Fevereiro com uma operação limitada na dimensão e território e cirúrgica (em que as 5 mil vítimas civis são devido aos crimes de guerra da ditadura ucraniana), já a ser bombardeado desde dia 16 de Fevereiro pelos NAZIS violadores dos acordos de PAZ de Minsk, é “equiparável” a inventar armas de destruição massiva e invadir um país inteiro no outro lado do Mundo, com bombardeamentos indiscriminados e matando direta e indiretamente um milhão de pessoas… Está tudo dito sobre a capacidade de raciocínio do Daniel. É idiota útil até dizer chega.

«EUA, NATO e a UE estão, excecionalmente, do lado do ocupado.»

Não. Não estão do lado do ocupado. Estão do lado do imperialismo que invadiu a Ucrânia desde 2014, derrubando uma democracia, e substituindo-a por um regime etno-naZionalista. Estão do lado de quem invadiu o Donbass, e ameaçou invadir a Crimeia. Estão do lado dos NAZIS. Estão do lado de quem prometeu que ia destruir a Rússia. Estão do lado do ódio. E nem sequer estão em graus semelhantes, pois os EUA são o Império, a UE é o seu vassalo financiador, e a NATO é o braço armado dos criminosos de guerra.

«Em que outros impérios resistam. Na realidade, o comunismo pró-soviético não combatia o imperialismo, escolhia um imperialismo contra outro.»

Aqui a lição que o Daniel merece já foi dada pelo Pacheco Pereira: só idiotas e ignorantes confundem o programa histórico com o programa atualmente activo. O PCP é anti-imperialista. Escolhe a autodeterminação dos povos contra TODOS os impérios. Oportunidade perdida para falar do imperialismo do €, do português, e de como é totalmente errado falar de imperialismo soviético. Os soviéticos nasceram contra o imperialismo russo. Deram autonomia a outros povos que nunca a tinham tido antes. Ajudaram em várias lutas pela independência e/ou anti-imperialistas em todo o globo. Cuba e o PCP não apoiaram o MPLA em nome de um “imperialismo”. Apoiaram-no em nome da luta contra o imperialismo português.

Se depois o Daniel confunde imperialismo com uma grande potência, se confunde imperialismo com a disseminação de uma ideologia, confunde imperialismo com a união de outros povos contra o imperialismo ocidental, isso só mostra os seus erros de análise logo à partida.

«Automatismo antiamericano, é um espelho fiel do automatismo pró-americano de quem determina a sua agenda política e moral pelos interesses circunstanciais da Casa Branca».

Mais uma frase, mais uma desonestidade intelectual. Como se estar do lado das regras, da paz, do anti-imperialismo, como se ser a favor da independência/autodeterminação, como se ser antiguerra dos EUA, anti invasão dos EUA, antifascismo dos EUA, anti-imperialismo dos EUA, anti interferência dos EUA, anticorrupção dos EUA, anti mentira dos EUA, etc, fosse um “espelho fiel” dos mete-nojo que defendem tudo o que o imperador Darth Sidious na Casa Branca defende.

Esta parte é tão, mas tão estúpida, que seria equivalente a dizer que o automatismo de autodefesa perante um agressor de violência doméstica, é o “espelho fiel” do automatismo do próprio agressor em impor a sua vontade pela violência. E eu que pensava que o Daniel não conseguia descer mais baixo em mais uma das suas “defesas” do PCP…

«Lições sobre a ditadura de Pequim».

É engraçado este termo em relação à China, vindo de um gajo que chama “democracia liberal” quer aos EUA, quer a Israel, quer à União Europeia.

«Nesta autossatisfação tribal, está a afundar estruturas necessárias para os tempos que se avizinham, como a CGTP.»~

Agora condenar a criminosa NATO e os agressores EUA, e os assassinos NAZIS, é ficar num “buraco de autossatisfação tribal”. Enfim…

«Tornou mais difíceis posições ponderadas sobre a guerra, que não se querem confundir com a sua amoralidade».

Imagine-se um gajo com uma posição completamente imponderada sobre esta guerra, como o Daniel, tentar dar lições de moralidade a quem defende a paz e critica os que provocaram a guerra.

E aqui vemos um exemplo claro do real trabalho do Daniel na imprensa mainstream: servir como a opinião “alternativa” que define o tamanho da Janela de Overton no debate político em Portugal. Até chegar ao Daniel, ainda é uma posição moral. À sua esquerda (PCP, BE) passa a ser “amoral”. Na teoria o termo é “unthinkable”. Mas este fica ainda melhor em tempos de guerra com imagens de criancinhas em Kiev a saudar o “heroico” batalhão Azov… depois de 8 anos (e principalmente aqueles dias entre 16 e 24 de Fevereiro de 2022) em que não se mostrou nada do que estes filhos da p*ta todos andaram a fazer no Donbass.

É para os interesses desses, EUA/NATO, NAZIS, ditadura de Kiev/Lviv, que a idiotice do Daniel é tão útil. Vá lá, acertou em cheio em todo o parágrafo sobre Mikhail Gorbachev. O Daniel mostra que até alguém como ele pode ser um relógio avariado… acerta duas vezes ao dia.

«O PCP é nostálgico da URSS (nenhuma novidade nisso)».

Aqui, um exemplo de “com a verdade me enganas”. Sim, o PCP fala muita vez de muitas das coisas boas da URSS. Sabem porque temos SNS, escola pública, pensões, salário mínimo, direitos laborais, etc? É graças à URSS, pelo que fez no seu território, e pelo que obrigou o capitalismo a fazer para não dar “ideias” aos povos nos seus regimes ocidentais.

Mas que eu saiba, e aqui até a direitolas Clara Ferreira Alves consegue ser mais intelectualmente honesta que o Daniel na sua omissão “por descuido”, o PCP é crítico do autoritarismo da URSS já desde o tempo de Álvaro Cunhal.

Isto que o Daniel fez, e este tipo sectário e ultraminoritário da esquerda está sempre a fazê-lo, é uma desonestidade argumentativa equivalente aos que chamam “saudosista de Salazar” a quem ainda hoje fala bem do Padrão dos Descobrimentos. São aquela esquerda muito “progressista” que quer demolir este monumento. Porque para eles, a história não se interpreta, a história demole-se, como se fôssemos o Estado Islâmico, ou pior, os países Bálticos…

«Invasões imperiais de países soberanos que custaram centenas de milhares de vidas».

Um simples erro factual, não foram centenas de milhares, foram milhões, entre mortes diretas e indiretas das consequências da destruição dos países, suas sociedades, e infraestruturas. Já para não falar das sanções ILEGAIS, autêntico terrorismo económico, que provoca miséria, fome, e morte também. Algo que o Daniel defende contra o povo Russo… A um comentador qualquer num blog ou numa rede social, perdoava-se o lapso no número. A um gajo que escreve num “jornal” e fala na TV, e é pago para investigar antes de dizer asneiras, é inaceitável.

«Não querem banir o PCP».

Ai querem, querem! Veja lá as declarações do ultra-NaZionalista ucraniano do Svoboda a dizer que não percebia como o PCP ainda estava legalizado, e a onda de apoio a esse NAZI dada por todos à Direita, e também por tantos Rosas e até alguns mais Livres… Aliás, é assim na ditadura ucraniana, a tal que serve de exemplo do “melhor” que o Ocidente tem para dar a outros povos que também se queiram defender da “agressão” Russa.

«Com tudo o que me separa do PCP».

Ah, isso sim. Esta frase é que não podia faltar. O tal Daniel, um autodenominado radical, a fechar a Janela de Overton. Ele é o Radical. Ouçam-no, para dar a sensação de pluralismo, mas não o sigam, e parem por ali. À sua esquerda está a “imoralidade”, o Unthinkable.

E assim, agora que abri os olhos em relação à real utilidade deste senhor, se desmonta a manipulação por trás do artigo que, pelo título, iria ser uma defesa do Avante, do PCP, e da Liberdade política, de pensamento, e de expressão. Vai enganar outros, Daniel, que a mim não me enganas mais.

O que eu não adorava pagar a este rapaz a viagem para o Donbass, para ele ir lá dizer aos invadidos, bombardeados, e assassinados, que os Russos que os foram salvar é que são os agressores, e que os NAZIS é que estão do lado da moralidade… Isso é que ia ser levar no focinho. Era só o que merecias, Daniel. Mais nada!

PS: e peço desde já desculpa a quem ler, e à Estátua de Sal, mas hoje precisava mesmo de destilar o ódio todo contra esta figura. É incrível as voltas que a vida dá, mas hoje tenho mais simpatia por um Coronel Douglas McGregor dos EUA cuja opinião comecei a ouvir recentemente, do que por um “camarada” que tantas vezes ouvi no passado.

Mas eu sou assim, não escolho as minhas simpatias consoante a ideologia, mas sim com base nos princípios, valores humanos, e respeito pelos factos e honestidade intelectual, que são definidos ainda antes da escolha da ideologia. Sem isso, a ideologia é apenas uma máscara em cima de um monte de esterco.

Hoje não tenho ninguém em quem votar em Portugal. E apesar de ideologicamente estar entre o Socialismo Democrático do BE, e a Social-Democracia demasiado Liberal da ala “esquerda” do PS, só tenho um partido merecedor do meu respeito: os Marxistas-Leninistas do PCP. Uma opinião criada desde que conheço a história do partido em Portugal, lutador pela Liberdade e construtor da Democracia. Uma opinião crescente à medida que fui conhecendo o programa atual ativo do partido. E uma opinião reforçada com as posições do PCP nestes 6 meses, até mesmo nos casos das discordâncias, pois tenho total capacidade para reconhecer que a divergência é apenas na conclusão.

Até a essa opinião chegar, quer eu, quer o PCP regemo-nos pelos mesmos princípios: factos, coerência, honestidade intelectual, contexto histórico. É com esta gente que tenho o prazer de discutir e discordar. Não é com idiotas úteis, ignorantes, mentirosos, mal-intencionados, fachos, e branqueadores de nazis.


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A direita será devorada pelo bicho que julga domar

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/03/2020)

Daniel Oliveira

O Movimento Europa e Liberdade (MEL), fundado originalmente para dificultar a vida a Rui Rio (e não para fazer oposição a António Costa), inicia esta terça-feira, na Culturgest, em Lisboa, a sua segunda tentativa de replicar a “Aula Magna das esquerdas”, do tempo da troika, à direita. No cardápio estão várias figuras da direita portuguesa e os diretores do “Público”, “Observador” e “Eco”, numa saudável transparência quanto ao seu posicionamento político. Rui Rio voltou a declinar o convite (por razões de agenda, claro), enviando Paulo Mota Pinto para encerrar os trabalhos das tropas inimigas.

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Mas o facto mais interessante, que corresponde a uma estreia e a uma declaração política, é o convite André Ventura, que falará amanhã, quarta-feira. Não vale a pena vir com conversas sobre o pluralismo político. Este é um encontro politicamente circunscrito, para o qual não foram convidadas personalidades do centro-esquerda e da esquerda. Assim sendo, o que os organizadores dizem é que no espaço político em que situam cabe André Ventura mas não cabem pessoas do PS, do BE ou do PCP. Que Ventura é um deles. Que a fronteira entre a esquerda e a direita é, para eles, mais relevante do que, por exemplo, a fronteira entre os xenófobos e os que os combatem. É uma clarificação relevante.

Alguns organizadores verão no Chega um aliado natural. É seguramente a linha dos que venceram a luta interna no CDS e de parte dos que a perderam no PSD, como Miguel Morgado, mais próximo de Ventura do que da matriz original do PSD. Outros acreditarão que integrar André Ventura é a melhor forma de o neutralizar. Tem sido essa a mensagem errada do Presidente da República. É tentador pô-lo ao lado de Daniel Proença de Carvalho e José Miguel Júdice, dois símbolos daquilo a que chamamos “sistema”. Mas este pequeno prazer não neutralizará ninguém.

Em França, a direita republicana manteve durante muitos anos um cordão sanitário com a extrema-direita xenófoba. Não os aceitava no governo, não os apoiava nas autarquias ou nas segundas voltas para a eleição de deputados, não tinha frentes políticas com ela. Esse cordão, a que estupidamente se juntou uma lei eleitoral que permitiu a permanente vitimização da Frente Nacional, não impediu a lenta progressão da família Le Pen, sobretudo depois de Marine ter socializado o seu discurso. Mas conteve-o. Enquanto durou, permitiu que muitos eleitores da direita tradicional olhassem para aquele partido como uma escolha que merecia censura social e política. Em Portugal, esse cordão sanitário não durou umas semanas. Na Europa, o único país que o mantém é a Alemanha. Por pouco tempo, suspeita-se. Do Brasil aos EUA, passando pela generalidade dos países europeus, os partidos da direita tradicional acreditaram no mesmo em que acreditam os promotores do MEL mais bem intencionados, que são provavelmente uma minoria.

A extrema-direita aproveitou o palco e a credibilização que lhe foi oferecida, não cedendo um milímetro na sua agenda e nos seus métodos (especialmente evidente desde que as redes sociais passaram a desempenhar um papel fundamental no debate público), e conseguiu dirigir-se com muito mais eficácia aos eleitores da direita tradicional. Graças à ação dos próprios dirigentes dos partidos em que costumavam votar.

Não preciso de explicar o que aconteceu depois. Por todo o lado, a extrema-direita já não está a receber votos da esquerda, como aconteceu nos anos 80 e 90. Está a dizimar a direita tradicional. Nos seus valores, a extrema-direita é inimiga de todos os democratas e defensores dos direitos humanos e do Estado de Direito. Mas do ponto de vista eleitoral os seus maiores adversários são os partidos da direita tradicional. André Ventura não vai à Culturgest para juntar forças contra António Costa. Vai receber o certificado de credibilidade que o ajudará a roubar votos à direita tradicional.

Claro que, como Miguel Sousa Tavares e Ricardo Sá Fernandes, o excesso de autoconfiança de alguns os faz acreditar que com bons argumentos vencerão Ventura. Talvez num debate civilizado sobre a castração química ou até física, a prisão perpétua e a pena de morte que não repugna o professor de Direito. Como descobriram os dois, Sá Fernandes e Sousa Tavares, em direto e na televisão, rapidamente descobrirão que só se debate com quem quer debater. O jogo de Ventura é outro e nesse terreno não o vencem seguramente.

Quando os ingénuos e os oportunistas que puseram Ventura no seu barco perceberem que estão a repetir os erros de outros derrotados será tarde demais. Ou serão, como a direita francesa e espanhola, reféns da agenda de ódio e intolerância da extrema-direita, ou acabarão por se submeter a ela, como aconteceu nos Estados Unidos, Brasil ou Itália. Também eles julgaram, quando romperam o cordão sanitário, que integrariam a extrema-direita. Foram integrados por ela. Ela é que passou a ser o novo normal. Com a prestimosa ajuda daqueles que dizimou.

Em Portugal, a legitimação de André Ventura começou por ser dada pelo próprio Passos Coelho, quando, ao contrário do CDS, manteve o apoio à sua candidatura à Câmara Municipal de Loures, depois de declarações públicas claramente racistas. Como viram, o resultado não foi a sua integração. Foi a sua legitimação para voos mais altos. Ventura usou o PSD para rampa de lançamento de um projeto a solo e usará esta nova legitimação para crescer mais um pouco, desdramatizando o voto no seu partido.

Afinal de contas, é uma escolha como qualquer outra. São os seus concorrentes mais próximos que o dizem. Julgam que metem o leão na jaula para o domar. Estarão trancados nessa jaula quando o bicho os fizer em postas. Como tem acontecido em todo o lado em que se achou que a convivência era possível. Não aprendem nada.


Não estamos todos no café, Tânia Laranjo

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/11/2019)

Esta quarta-feira, Tânia Laranjo, jornalista do “Correio da Manhã” e da CMTV, local onde André Ventura se fez político às cavalitas do futebol, partilhou uma piada no seu Facebook. Num “meme”, lê-se: “Black Friday. Leve dois e não pague nenhum.” A acompanhar, as fotografias de dois dos poucos políticos negros deste país: Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba. O post foi apagado depois de uma reação viral.

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Não sei se consigo explicar, pela enésima vez, que o humor não é uma espécie de salvo conduto para se dizer tudo o que se queira e não se tem coragem. Claro que o humor deve ser lido e ouvido como humor. Conta o contexto em que é dito. É por isso que não foram muitas as vezes que me viram protestar com piadas, mesmo de mau gosto. Raramente dou para esse peditório, porque as fronteiras entre o puritanismo e a exigência ética nem sempre são claras. Mas isso não implica que o humor nos limite a capacidade crítica. Pelo contrário, ele deve servir para a aguçar. E “só” humor não chega.

Não tenho dúvidas que Tânia Laranjo não queria ser racista. Quando se insiste que o racismo não é uma questão meramente pessoal, é porque se tem consciência que o racismo social começa pela insensibilidade perante a sensibilidade dos outros. É a ausência desses outros, quase sempre com menos poder para reagir no espaço público, que permitiu que imensa gente se convencesse que isso não os incomodava. É como se fossem todos nossos amigos, não tem mal nenhum. Neste caso, a coisa é um pouco pior. Uma piada com a compra de negros num dia de saldos, num país que tem uma história de escravatura, é especialmente ofensiva. Obviamente tal ideia nem sequer ocorreu a Tânia Laranjo. A pouca gente, aliás. No país que transformou a escravatura num negócio global nada que não engrandeça os nossos feitos é tema. Publicasse esta piada nos EUA ou em muitos países europeus e Tânia Laranjo estaria em muito maus lençóis.

Dirão que estou ser hipersensível com o post de Tânia Laranjo. A minha sensibilidade é a mesma que Tânia Laranjo demonstrou, e muito bem, quando o inenarrável advogado de José Sócrates lhe disse “a senhora devia tomar banho, cheira mal!” Pôs-lhe um processo, para além da multa de oito mil euros que João Araújo teve de lhe pagar. Não me parece que se o advogado dissesse que aquilo era só uma piada se tivesse livrado da condenação. Pois a sensibilidade de Tânia Laranjo não vale mais do que a sensibilidade de Mamadou Ba e Joacine Katar Moreira.

Agrava tudo isto o facto de a piadista ser jornalista. Uma jornalista que, a qualquer momento, poderá ter de contactar ou entrevistar a deputada do Livre. Ao abrigo da liberdade de imprensa e dos deveres dos deputados perante os eleitores, espera-se que Joacine fale com jornalistas. Mas estará obrigada a falar com uma jornalista que fez piadas com a sua cor? Terão alguns jornalistas que usam as redes sociais como se fossem cidadãos comuns a consciência da situação em que se colocam e em que colocam os órgãos de comunicação social para que trabalham? O código deontológico dos jornalistas é, no seu ponto 9, bastante claro: “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual.” Não me parece que esta rejeição só se aplique à hora de expediente. Aplica-se a todos os momentos públicos, que são os únicos que interessam.

Quis o destino que este episódio acontecesse no mesmo dia em que a deputada Joacine Katar Moreira resolveu fazer-se acompanhar por um sargento da GNR nos corredores da Assembleia da República para não ser importunada por jornalistas. Carregado de razão, o Sindicato dos Jornalistas considerou que “a decisão da deputada atenta contra a liberdade de imprensa e revela uma prática antidemocrática tomada dentro da própria Casa da Democracia”. A própria secretaria-geral da Assembleia da República foi obrigada a esclarecer que os oficiais da GNR de São Bento só podem acompanhar os deputados quando estiver em causa a sua segurança. Não são um escudo contra jornalistas atrevidos que fazem perguntas a deputados. Espero que à justa condenação da atitude prepotente da deputada se venha a juntar a condenação de mensagens racistas de uma jornalista que a teve como alvo. Seja a sério ou em versão piadística.

A reação de muita gente a este tipo de casos é dizer que há uma hipersensibilidade com piadas que antes se diziam sem qualquer problema. Isso pode ser verdade, e significa apenas que há gente que se ofende e antes não tinha voz (vejam a etnia de muitas das pessoas que, ofendidas, partilharam o post da jornalista). Mas a principal mudança não é essa.

A grande mudança destes tempos é que, com as redes sociais, as pessoas passaram a escrever no espaço público o que antes diziam aos amigos, numa mesa de café. E há uma diferença, que provavelmente temos de reaprender, entre o espaço privado, onde falamos com pessoas que conhecemos e cuja sensibilidade podemos prever, e o que dizemos no espaço público, onde ajudamos a formar opinião, damos força a preconceitos e ódios ou ferimos pessoas que não conhecemos de lado nenhum.

Assim como a frase “a senhora devia tomar banho, cheira mal!” dita numa discussão privada ou em frente às câmaras é bastante diferente. Os limites do humor são seguramente outros, mas nada disto deixa de ser verdade por ser uma piada. E achem o que acharem da história de Bernardo Silva, não são legítimas quaisquer comparações. Tânia Laranjo tem outras responsabilidades e, que se saiba, não é amiga de Mamadou Ba e Joacine Katar Moreira.

Para se defender, a jornalista socorreu-se da velha frase “até tenho amigos pretos”. No caso, “tenho na minha família angolanos pretos”. Pouco interessa se Tânia Laranjo é racista com familiares negros ou não é racista, mesmo que só tenha parentes brancos. Interessa que é jornalista, que fez uma piada evidentemente racista num espaço público com um dirigente associativo e um deputado sobre o qual poderá escrever a qualquer momento. Isto não é como se estivéssemos todos à volta de uma mesa de café. E está na altura de pessoas que têm responsabilidades públicas e usam redes sociais o começarem a perceber.