A festa do Avante chateia…

(Miguel Esteves Cardoso, in Revista Sábado, 13/09/2007)

(Este texto é um notável tesourinho. Não sei se hoje – 15 anos passados -, com o atual ambiente inquisitorial de perseguição e ostracização ao PCP, o MEC teria coragem de o escrever. Talvez. O MEC é muito persistente nas suas idiossincrasias, para o bem ou para o mal. Em qualquer caso é uma bofetada magnífica em todos os torquemadas encartados.

Estátua de Sal, 04/09/2022)


Dizem-se muitas mentiras acerca delas mas, por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas.

A Festa do Avante! é a maior iniciativa político-cultural do país. Ela é, como se sabe, o resultado do trabalho voluntário de milhares e milhares de militantes e simpatizantes comunistas. A forma como é tratada pela comunicação social dominante é um exemplo, dos mais evidentes, do silenciamento a que é submetida nos jornais, revistas, rádios e televisões toda a actividade do PCP. Uma actividade que, sublinhe-se, é maior do que a soma das actividades de todos os restantes partidos.

Quando não é o silêncio, é a inverdade. Dizem-se muitas mentiras acerca da Festa do Avante!: que é irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que é um grande negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político; que hoje é só comes e bebes.

As festas do Avante!, por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas. É espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só no sentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que é trabalhar de graça. Mas não basta trabalhar: também é preciso querer mudar o mundo. E querer, só por si, não chega. É preciso ter a certeza que se vai mudá-lo. Por isso o conceito do PCP de “colectivo partidário” parece provocar indisposições a muito comentador de serviço.

Porque os comunistas não se limitam a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a razão da própria história. É por isso que não podem parar; que aguentam todas as derrotas e todos os revezes; que são dotados de uma avassaladora e paradoxalmente energética paciência; porque acreditam que são a última barreira entre a civilização e a selvajaria. Por isso sobre a construção da festa cai um silêncio ensurdecedor.

Não há psicologias de multidões para ninguém: são mais que muitos, mas cada um está na sua. Isto é muito importante. Ninguém ali está a ser levado ou foi trazido ou está só por estar. Nada é forçado. Não há chamarizes nem compulsões. Vale tudo, até o aborrecimento. Ou seja: é o contrário do que se pensa quando se pensa num comício ou numa festa obrigatória. Muito menos comunista. Todos os portugueses haviam de ir de cinco em cinco anos a uma Festa do Avante!, só para enxotar estereótipos e baralhar ideias. Por isso, a festa é um “perigo” que há que exterminar.

Assim se chega a outro preconceito conveniente. Dava jeito que a festa do PCP fosse partidária, sectária e ideologicamente estrangeirada. Na verdade, não podia ser mais portuguesa e saudavelmente nacionalista. Sem a orientação e o financiamento de Moscovo, o PCP deveria ter também fenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande chatice.

A teimosia comunista é culturalmente valiosa porque é a nossa própria cultura que é teimosa. A diferença às modas e às tendências dos comunistas não é uma atitude: é um dos resultados daquela persistência dos nossos hábitos. Não é uma defesa ideológica: é uma prática que reforça e eterniza só por ser praticada.

Enquanto os outros partidos puxam dos bolsos para oferecer concertos de borla, a que assistem apenas familiares e transeuntes, a Festa do Avante! enche-se de entusiásticos pagadores de bilhetes.

E porquê? Porque é a festa de todos eles. Eles não só querem lá estar como gostam de lá estar. Não há a distinção entre “nós” dirigentes e “eles” militantes, que impera nos outros partidos. Há um tu-cá-tu-lá quase de festa de finalistas. Por isso, ao programa da festa, anunciado em conferências de imprensa, é concedido meia dúzia de linhas ou de segundos.

Ser-se comunista é uma coisa inteira e não se pode estar a partir aos bocados. A força dos comunistas não é o sonho nem a saudade: é o dia-a- dia; é o trabalho; é o ir fazendo; e resistindo, nas festas como nas lutas. Por isso a dimensão e o êxito da festa chateiam. Põem em causa as desculpas correntes da apatia. 


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Ó Daniel, que sova, aguentas-te?

(Por Carlos Marques, 01/09/2022)


(Este texto resulta de um comentário a um discurso que publicámos de Daniel Oliveira ver aqui. Pelas questões que levanta e com as quais se debate a esquerda, resolvi dar-lhe o destaque que, penso, merece.

Estátua de Sal, 02/09/2022)


«Nunca lidarei bem com o moralismo agressivo dos convertidos».

Diz o fã #1 do Zelensky, que tanto atacou o PCP quando o partido recusou, e muito bem, ouvir o chefe da Nazilândia no Parlamento Português, após já ter ido falar ao Parlamento Grego e mostrar um vídeo de um Nazi de Azov.
De repente era Daniel o moralista, e o PCP o amoral. Já se esqueceu… Mas eu lembro bem demais!

«Nunca significou um apoio a todas as posições do PCP, que incluíram conivência com algumas ditaduras».

Foi escrita do Daniel, ou exigência editorial do irmão Costa, deixar de fora a parte final óbvia deste parágrafo: com exceção do BE/Livre/PAN, os TODOS os restantes partidos do Parlamento Português também têm historial nesta conivência com algumas ditaduras e, pior, com invasões/guerras que destruíram países inteiros.

«Não tinha grandes razões de queixa do tratamento mediático desde a chegada de Jerónimo de Sousa à liderança. Não tem grande espaço no comentário».

Como se os sucessivos comentários com o PCP de fora, e os IL/CDS/Ch em grande destaque não fosse uma coisa má, uma manipulação da perceção, uma caça ao voto não-oficial, e um ataque descarado ao PCP, e acrescento, ao BE, e PAN. Curiosamente, o Livre/Tempo de Avançar teve mais representação sozinho durante vários anos do que estes partidos todos juntos: Daniel Oliveira, Ana Drago, Rui Tavares, só para referir a troika principal.

«Não há um documento oficial ou uma declaração do secretário-geral – que vinculam o partido – que reconheça a invasão. E que a trate como um ato contra a autodeterminação de um povo, sem responsabilizar imediatamente a Ucrânia e os EUA por isso. Só que, no que toca a invasões militares criminosas, ilegais e imorais, o PCP não é um estreante».

Chama-se factos. O Daniel pelos vistos aderiu à pós-verdade do regime da NATO. A invasão foi o que a ditadura ucraniana fez contra o povo do Donbass, por 3 vezes. Acto contra a autodeterminação de um povo, é o que o Ocidente fez à Catalunha, e continua a fazer à Crimeia, neste caso Daniel incluído. E se o Dia D não é uma invasão criminosa, ilegal, e amoral, então a intervenção militar da Rússia para travar a agressão Nazi contra o povo do Donbass, também não é. Antes, o Daniel era um comentador de esquerda interessante. Hoje, não passa de um idiota útil do Pentágono. E este parágrafo prova isso mesmo.

«PSD e CDS não se limitaram a apoiar a criminosa, ilegal e imoral invasão do Iraque. Envolveram Portugal nessa aventura.»

Muito interessante o deixar de fora o PS em relação a todas as outras operações criminosas da NATO em geral, e dos EUA em particular. O PS, quando chegou ao poder, recusou participar com as tropas portuguesas nessas invasões? Pois claro que não!

«Critico Jerónimo como critiquei Barroso e Portas. A sua posição é imoral, porque insensível aos valores da autodeterminação dos povos».

Para despistar os mais desatentos, começa por invalidar a equiparação do PCP com os fachos. Certo. Mas depois chega aqui e equipara a posição dos pró-paz do PCP com a dos NeoCon belicistas. É igualmente incomparável, mas se o reconhecesse, depois como é que o Daniel ia atirar a matar no PCP no mesmo texto que começa com o título que nos tenta enganar no sentido contrário? O Daniel, a mim, enganou durante muito, demasiado, tempo, mas já não me engana mais.

«Incoerente com o que os comunistas defenderam no Iraque».

O PCP defendeu a paz em ambos os casos. Criticou a agressão da NATO em ambos os casos. Condenou o imperialismo porco dos EUA em ambos os casos.

Mas mais uma vez o Daniel precisa da sua própria incoerência para chegar ao seu real objetivo: atirar a matar no PCP no mesmo artigo em que nos tentou convencer que ia defender a liberdade política/festiva do Avante e do partido.

Com que então, para este idiota útil do Pentágono, prestar ajuda ao povo vizinho do Donbass a partir de dia 24-Fevereiro com uma operação limitada na dimensão e território e cirúrgica (em que as 5 mil vítimas civis são devido aos crimes de guerra da ditadura ucraniana), já a ser bombardeado desde dia 16 de Fevereiro pelos NAZIS violadores dos acordos de PAZ de Minsk, é “equiparável” a inventar armas de destruição massiva e invadir um país inteiro no outro lado do Mundo, com bombardeamentos indiscriminados e matando direta e indiretamente um milhão de pessoas… Está tudo dito sobre a capacidade de raciocínio do Daniel. É idiota útil até dizer chega.

«EUA, NATO e a UE estão, excecionalmente, do lado do ocupado.»

Não. Não estão do lado do ocupado. Estão do lado do imperialismo que invadiu a Ucrânia desde 2014, derrubando uma democracia, e substituindo-a por um regime etno-naZionalista. Estão do lado de quem invadiu o Donbass, e ameaçou invadir a Crimeia. Estão do lado dos NAZIS. Estão do lado de quem prometeu que ia destruir a Rússia. Estão do lado do ódio. E nem sequer estão em graus semelhantes, pois os EUA são o Império, a UE é o seu vassalo financiador, e a NATO é o braço armado dos criminosos de guerra.

«Em que outros impérios resistam. Na realidade, o comunismo pró-soviético não combatia o imperialismo, escolhia um imperialismo contra outro.»

Aqui a lição que o Daniel merece já foi dada pelo Pacheco Pereira: só idiotas e ignorantes confundem o programa histórico com o programa atualmente activo. O PCP é anti-imperialista. Escolhe a autodeterminação dos povos contra TODOS os impérios. Oportunidade perdida para falar do imperialismo do €, do português, e de como é totalmente errado falar de imperialismo soviético. Os soviéticos nasceram contra o imperialismo russo. Deram autonomia a outros povos que nunca a tinham tido antes. Ajudaram em várias lutas pela independência e/ou anti-imperialistas em todo o globo. Cuba e o PCP não apoiaram o MPLA em nome de um “imperialismo”. Apoiaram-no em nome da luta contra o imperialismo português.

Se depois o Daniel confunde imperialismo com uma grande potência, se confunde imperialismo com a disseminação de uma ideologia, confunde imperialismo com a união de outros povos contra o imperialismo ocidental, isso só mostra os seus erros de análise logo à partida.

«Automatismo antiamericano, é um espelho fiel do automatismo pró-americano de quem determina a sua agenda política e moral pelos interesses circunstanciais da Casa Branca».

Mais uma frase, mais uma desonestidade intelectual. Como se estar do lado das regras, da paz, do anti-imperialismo, como se ser a favor da independência/autodeterminação, como se ser antiguerra dos EUA, anti invasão dos EUA, antifascismo dos EUA, anti-imperialismo dos EUA, anti interferência dos EUA, anticorrupção dos EUA, anti mentira dos EUA, etc, fosse um “espelho fiel” dos mete-nojo que defendem tudo o que o imperador Darth Sidious na Casa Branca defende.

Esta parte é tão, mas tão estúpida, que seria equivalente a dizer que o automatismo de autodefesa perante um agressor de violência doméstica, é o “espelho fiel” do automatismo do próprio agressor em impor a sua vontade pela violência. E eu que pensava que o Daniel não conseguia descer mais baixo em mais uma das suas “defesas” do PCP…

«Lições sobre a ditadura de Pequim».

É engraçado este termo em relação à China, vindo de um gajo que chama “democracia liberal” quer aos EUA, quer a Israel, quer à União Europeia.

«Nesta autossatisfação tribal, está a afundar estruturas necessárias para os tempos que se avizinham, como a CGTP.»~

Agora condenar a criminosa NATO e os agressores EUA, e os assassinos NAZIS, é ficar num “buraco de autossatisfação tribal”. Enfim…

«Tornou mais difíceis posições ponderadas sobre a guerra, que não se querem confundir com a sua amoralidade».

Imagine-se um gajo com uma posição completamente imponderada sobre esta guerra, como o Daniel, tentar dar lições de moralidade a quem defende a paz e critica os que provocaram a guerra.

E aqui vemos um exemplo claro do real trabalho do Daniel na imprensa mainstream: servir como a opinião “alternativa” que define o tamanho da Janela de Overton no debate político em Portugal. Até chegar ao Daniel, ainda é uma posição moral. À sua esquerda (PCP, BE) passa a ser “amoral”. Na teoria o termo é “unthinkable”. Mas este fica ainda melhor em tempos de guerra com imagens de criancinhas em Kiev a saudar o “heroico” batalhão Azov… depois de 8 anos (e principalmente aqueles dias entre 16 e 24 de Fevereiro de 2022) em que não se mostrou nada do que estes filhos da p*ta todos andaram a fazer no Donbass.

É para os interesses desses, EUA/NATO, NAZIS, ditadura de Kiev/Lviv, que a idiotice do Daniel é tão útil. Vá lá, acertou em cheio em todo o parágrafo sobre Mikhail Gorbachev. O Daniel mostra que até alguém como ele pode ser um relógio avariado… acerta duas vezes ao dia.

«O PCP é nostálgico da URSS (nenhuma novidade nisso)».

Aqui, um exemplo de “com a verdade me enganas”. Sim, o PCP fala muita vez de muitas das coisas boas da URSS. Sabem porque temos SNS, escola pública, pensões, salário mínimo, direitos laborais, etc? É graças à URSS, pelo que fez no seu território, e pelo que obrigou o capitalismo a fazer para não dar “ideias” aos povos nos seus regimes ocidentais.

Mas que eu saiba, e aqui até a direitolas Clara Ferreira Alves consegue ser mais intelectualmente honesta que o Daniel na sua omissão “por descuido”, o PCP é crítico do autoritarismo da URSS já desde o tempo de Álvaro Cunhal.

Isto que o Daniel fez, e este tipo sectário e ultraminoritário da esquerda está sempre a fazê-lo, é uma desonestidade argumentativa equivalente aos que chamam “saudosista de Salazar” a quem ainda hoje fala bem do Padrão dos Descobrimentos. São aquela esquerda muito “progressista” que quer demolir este monumento. Porque para eles, a história não se interpreta, a história demole-se, como se fôssemos o Estado Islâmico, ou pior, os países Bálticos…

«Invasões imperiais de países soberanos que custaram centenas de milhares de vidas».

Um simples erro factual, não foram centenas de milhares, foram milhões, entre mortes diretas e indiretas das consequências da destruição dos países, suas sociedades, e infraestruturas. Já para não falar das sanções ILEGAIS, autêntico terrorismo económico, que provoca miséria, fome, e morte também. Algo que o Daniel defende contra o povo Russo… A um comentador qualquer num blog ou numa rede social, perdoava-se o lapso no número. A um gajo que escreve num “jornal” e fala na TV, e é pago para investigar antes de dizer asneiras, é inaceitável.

«Não querem banir o PCP».

Ai querem, querem! Veja lá as declarações do ultra-NaZionalista ucraniano do Svoboda a dizer que não percebia como o PCP ainda estava legalizado, e a onda de apoio a esse NAZI dada por todos à Direita, e também por tantos Rosas e até alguns mais Livres… Aliás, é assim na ditadura ucraniana, a tal que serve de exemplo do “melhor” que o Ocidente tem para dar a outros povos que também se queiram defender da “agressão” Russa.

«Com tudo o que me separa do PCP».

Ah, isso sim. Esta frase é que não podia faltar. O tal Daniel, um autodenominado radical, a fechar a Janela de Overton. Ele é o Radical. Ouçam-no, para dar a sensação de pluralismo, mas não o sigam, e parem por ali. À sua esquerda está a “imoralidade”, o Unthinkable.

E assim, agora que abri os olhos em relação à real utilidade deste senhor, se desmonta a manipulação por trás do artigo que, pelo título, iria ser uma defesa do Avante, do PCP, e da Liberdade política, de pensamento, e de expressão. Vai enganar outros, Daniel, que a mim não me enganas mais.

O que eu não adorava pagar a este rapaz a viagem para o Donbass, para ele ir lá dizer aos invadidos, bombardeados, e assassinados, que os Russos que os foram salvar é que são os agressores, e que os NAZIS é que estão do lado da moralidade… Isso é que ia ser levar no focinho. Era só o que merecias, Daniel. Mais nada!

PS: e peço desde já desculpa a quem ler, e à Estátua de Sal, mas hoje precisava mesmo de destilar o ódio todo contra esta figura. É incrível as voltas que a vida dá, mas hoje tenho mais simpatia por um Coronel Douglas McGregor dos EUA cuja opinião comecei a ouvir recentemente, do que por um “camarada” que tantas vezes ouvi no passado.

Mas eu sou assim, não escolho as minhas simpatias consoante a ideologia, mas sim com base nos princípios, valores humanos, e respeito pelos factos e honestidade intelectual, que são definidos ainda antes da escolha da ideologia. Sem isso, a ideologia é apenas uma máscara em cima de um monte de esterco.

Hoje não tenho ninguém em quem votar em Portugal. E apesar de ideologicamente estar entre o Socialismo Democrático do BE, e a Social-Democracia demasiado Liberal da ala “esquerda” do PS, só tenho um partido merecedor do meu respeito: os Marxistas-Leninistas do PCP. Uma opinião criada desde que conheço a história do partido em Portugal, lutador pela Liberdade e construtor da Democracia. Uma opinião crescente à medida que fui conhecendo o programa atual ativo do partido. E uma opinião reforçada com as posições do PCP nestes 6 meses, até mesmo nos casos das discordâncias, pois tenho total capacidade para reconhecer que a divergência é apenas na conclusão.

Até a essa opinião chegar, quer eu, quer o PCP regemo-nos pelos mesmos princípios: factos, coerência, honestidade intelectual, contexto histórico. É com esta gente que tenho o prazer de discutir e discordar. Não é com idiotas úteis, ignorantes, mentirosos, mal-intencionados, fachos, e branqueadores de nazis.


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O cerco à Festa do “Avante!” e ao PCP

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/09/2022)

Daniel Oliveira

Os ataques aos artistas que atuam na Festa do “Avante!” vieram dos que mais se queixam da cultura de cancelamento. O PCP era tratado com bonomia. Mudou depois de quatro anos de “geringonça” e do bloqueio da direita, que precisa do Chega para governar. É preciso alimentar falsas equivalências. E a Ucrânia foi a oportunidade.


A Festa do “Avante!” provoca indignações sazonais. Na pandemia era porque sendo um festival como os outros devia ser interditado. Este ano, é porque sendo um acontecimento político como os outros, quem lá atua é cúmplice de Putin.

Ironicamente, a cruzada foi lançada há uns meses por José Milhazes, que, como militante do PCP, viveu na URSS, tendo descoberto a natureza do regime quando ele desmoronou. Por experiência própria sei que as pessoas mudam de opinião, mas nunca lidarei bem com o moralismo agressivo dos convertidos. Os subsequentes ataques aos artistas vieram dos que mais se queixam da cultura de cancelamento. Claro que a participação na Festa do “Avante!” é, para além de um momento cultural, um ato político. Mas nunca significou um apoio a todas as posições do PCP, que incluíram conivência com algumas ditaduras.

Apesar da vitimização, o PCP não tinha grandes razões de queixa do tratamento mediático desde a chegada de Jerónimo de Sousa à liderança. Não tem grande espaço no comentário, é verdade, mas a comunicação social tratava os comunistas com bonomia, respeito pelo seu passado e até paternalismo. Não consta que, nesse momento, as posições do PCP fossem diferentes das de hoje.

Mas as coisas mudaram depois de quatro anos de “geringonça” e do bloqueio da direita, que agora depende de entendimentos semelhantes com o Chega para reconquistar o poder. Como os discursos xenófobos de Ventura não facilitam a sua normalização, é preciso alimentar falsas equivalências com os partidos mais à esquerda. Num país que conheceu uma ditadura de direita, o trabalho não é simples. E a Ucrânia foi a oportunidade.

A posição dos comunistas sobre a Ucrânia nem sequer é um bom argumento para este paralelo. Qualquer pessoa informada sabe que o PCP não apoia o regime de Putin. É verdade que, por mais que diga que não apoia a invasão, não há um documento oficial ou uma declaração do secretário-geral – que vinculam o partido – que reconheça a invasão. E que a trate como um ato contra a autodeterminação de um povo, sem responsabilizar imediatamente a Ucrânia e os EUA por isso.

Só que, no que toca a invasões militares criminosas, ilegais e imorais, o PCP não é um estreante. PSD e CDS não se limitaram a apoiar a criminosa, ilegal e imoral invasão do Iraque. Envolveram Portugal nessa aventura. Não é “whatabautismo”, é avaliar comportamentos dos partidos com coerência e proporcionalidade. Critico Jerónimo como critiquei Barroso e Portas. A sua posição é imoral, porque insensível aos valores da autodeterminação dos povos; cínica, porque nem se assume de forma explicita; e incoerente com o que os comunistas defenderam no Iraque ou no Kosovo. Mas se isto não serviu como critério para atirar o PSD e o CDS borda fora do sistema democrático, também não serve para o fazer com o PCP.

Só que esta guerra não é tratada como as outras. Não porque seja diferente, mas porque EUA, NATO e a UE estão, excecionalmente, do lado do ocupado. Também não são critérios morais que movem o PCP. É a ideia de que a hegemonia imperial norte-americana se combate com a recuperação de um mundo bipolar (ou multipolar), em que outros impérios resistam. Na realidade, o comunismo pró-soviético não combatia o imperialismo, escolhia um imperialismo contra outro. E nisto, a posição comunista sobre a guerra da Ucrânia, que resulta de um automatismo antiamericano, é um espelho fiel do automatismo pró-americano de quem determina a sua agenda política e moral pelos interesses circunstanciais da Casa Branca. Ainda vamos ouvir os que entregaram as nossas empresas de energia ao regime chinês dar lições sobre a ditadura de Pequim. Começou no dia em Nancy Pelosi aterrou em Taiwan.

Estarei mais incomodado com o posicionamento do PCP nesta guerra do que os seus inimigos. Não respondendo a diretivas internacionais, como no passado, ela enfia os comunistas num buraco político, mantendo-os satisfeitos com o aplauso dos convencidos e desistentes de falar para o resto do país. Não é pelo PCP que o lamento. É porque, nesta autossatisfação tribal, está a afundar estruturas necessárias para os tempos que se avizinham, como a CGTP. E porque, com a sua posição, tornou mais difíceis posições ponderadas sobre a guerra, que não se querem confundir com a sua amoralidade.

Já tenho alguma dificuldade em acompanhar as críticas ao PCP por não ter elogiado Mikhail Gorbachev, no momento da sua morte. Elogiar o quê? Não chega ter passado a vida a apoiar uma ditadura, trepar ao poder à boleia dessa ditadura e destrui-la por dentro para merecer elogio. O legado, nos anos 90, foi uma queda vertiginosa do PIB, um aumento brutal da pobreza, uma economia mafiosa e, em pouco tempo, outra ditadura perigosa. Sim, o único legado de Gorbachev é o fim da URSS ou de qualquer coisa que lhe pudesse suceder. Nem tinha no seu passado qualquer credencial democrática, nem deixou para o futuro qualquer legado democrático.

Dir-se-á, com justiça, que não foi este o fim que desejou e por isso Ieltsin o derrubou. Mas não é pelas intenções que julgamos os atores da história, é pelos resultados. E quem o diz teve enormes esperanças em Gorbachev e saiu do PCP no meio dessas esperanças porque o PCP não as acompanhava. Não se pode criticar o PCP por uma coisa – apoiar o que veio depois da URSS – e o seu oposto – criticar o que veio depois da URSS. O PCP é nostálgico da URSS (nenhuma novidade nisso), não é apoiante de Putin. As duas críticas são inconciliáveis.

Voltando à Ucrânia, o incómodo que sinto não me ilude quanto às motivações de uma perseguição política ao PCP levada a cabo por quem nunca teve qualquer problema em apoiar invasões imperiais de países soberanos que custaram centenas de milhares de vidas. O objetivo é transformar o PCP num intocável, em tudo semelhante ao Chega. Não querem banir o PCP, querem naturalizar, por via da equiparação, um partido racista para que possa contar na aritmética do poder. Se foi possível governar com um, também se pode governar com o outro.

Com tudo o que me separa do PCP, e o mais relevante é a política internacional, sei distinguir o seu discurso sobre a invasão da Ucrânia, ainda assim menos grave do que apoio institucional que o governo de Durão Barroso e Paulo Portas deu à invasão do Iraque, do racismo que se vai normalizando na política portuguesa.


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