(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/01/2022)

Só quem já tinha uma opinião prévia ter visto, no debate entre Catarina Martins e António Costa, algum tipo de esmagamento de seja quem for. Costa fez o que era previsível: concentrou tudo na crise política. Com alguma falta de rigor sobre as contas do fator de sustentabilidade da Segurança Social (em vez de contabilizar o custo real contabiliza o custo potencial), na garantia de que nunca pediu maioria absoluta, no paralelo que fez entre a sua proposta sobre a caducidade das convenções coletivas e o que foi acordado em Espanha e na acusação do BE querer proibir que os médicos de trabalhar fora do SNS. O Polígrafo fez um bom levantamento.
Também sem surpresa, Catarina Martins procurou fazer o que se esperava: direcionar todo o debate, incluindo sobre as desavenças no Orçamento de Estado, para temas concretos que se relacionam com a vida das pessoas, como o Serviço Nacional de Saúde (tema em que António Costa parece viver em negação), reformas ou cuidadores informais. Chegados à questão laboral, mais difícil para um primeiro-ministro que recusa reversões que o PS tinha no seu programa eleitoral de 2015, Costa não se limitou a chutar para canto. Saltou para um tema sem qualquer relação: as nacionalizações.
Este momento poderá ter causado maior excitação para pessoas menos informadas, mas é o mais esclarecedor para quem acompanha a política de perto. António Costa elencou os custos das propostas de renacionalização (podem chamar-lhe “desprivatizações”, que no país onde os “trabalhadores” são “colaboradores” os eufemismos incomodam-me cada vez menos) de grandes empresas, sobretudo monopólios naturais. Uma posição que julgo ser partilhada pelo PCP. Não vou aqui desenvolver o conteúdo do tema, os custos anuais de muitos milhões de euros que a perda destas rendas (em muitos casos são isso mesmo que são) para o Estado e o que sai mais caro no fim. Interessa-me o que este truque no debate revela.
As propostas do Bloco de Esquerda sobre as empresas privatizadas estão, de formas diferentes conforme as sucessivas vagas privatizadoras (mas a IL continua a achar que vivemos num país socialista), nos seus sucessivos programas, pelo menos desde 2005. Consta que Costa assinou um acordo de governação com o BE, entretanto. A função de o trazer a debate foi evidenciar as divergências que o separam do BE e que ignorou no passado?
Como é evidente, como acontece com outros partidos, as convergências não se fizeram nem se farão em torno dos máximos programáticos. Até porque, ao contrário do que diz António Costa, PCP e BE abdicaram, nos últimos seis anos, de quase todo o seu programa para que ele pudesse governar.
O que a tentativa de desenterrar o que de mais divergente existe, no meio de um debate onde procurava mapear o que levou ao fim da “geringonça”, corresponde ao exercício oposto ao que fez em 2015. Na altura, procurou pontos de convergência. Agora, procura divergências. Não apenas as que levaram à rutura, mas todas. E isso, mais do que qualquer revisitação ao debate do OE, diz-nos o que quer e já queria António Costa. Convencido de que já não precisa destes partidos, tenta voltar a erguer os muros que jura não querer erguidos. Incluindo, muros irrelevantes, como a natural e habitual enunciação de princípios que BE e PCP sabem perfeitamente não serem praticáveis com o peso que hoje têm. Podia ter pegado a saída da NATO ou noutra coisa qualquer.
A acrimónia entre Catarina Martins e António Costa não é nova e não foi ela que impediu entendimentos no passado. Nem a boa relação com Jerónimo de Sousa impediu a rutura. As relações pessoais são, na política, importantes. Mas não as devemos sobrevalorizar. Importante é que, ao contrário do que fez no debate com Jerónimo – com quem fingiu, na terça-feira, estar tudo politicamente resolvido, apesar das coisas que lhe disse no último debate –, não enterrou a “geringonça”. O que é politicamente relevante.
Até agora, nesta pré-campanha, António Costa tem sido quase exclusivamente tático. Veremos se isso muda no debate de hoje. E o excesso de tacticismo tem obrigado a grande ginástica. Quando antes dizia que os portugueses não gostavam de maiorias absolutas agora pede-a. Quando dizia que interessava a maioria parlamentar e não quem ficava em primeiro agora diz que interessa quem fica em primeiro e não a maioria parlamentar. Onde antes chegava a acordos com partidos que defendiam nacionalizações (por acaso, a TAP foi renacionalizada pelo PS), hoje acha que isso é um problema. Uma das principais marcas que se começa a colar a António Costa é a flexibilidade dos seus princípios. Apesar da vantagem muito confortável que tem nas sondagens, a verdade é que Costa já percebeu que a maioria absoluta é muito difícil e que não pode continuar a fechar todas as portas, com o risco das pessoas acharem que só pode oferecer instabilidade.
Mas na obsessão pela tática, que tem esvaziado esta campanha de conteúdo, Costa não está sozinho. Tudo o que Rui Rio tem para dizer é que ou vence ele ou vence Costa. Resta um sorriso permanente, uma grande simpatia com todos e uma total incapacidade de se distinguir dos seus concorrentes. Como Zelig, de Woody Allen, vai-se transfigurando nos debates com possíveis futuros parceiros.
Bastaram cinco minutos com André Ventura para estar a debater a mobilidade para prisão perpétua e berrar contra a subsidiodependência do RSI. Bastaram dez minutos com João Cotrim Figueiredo para começar a falar mal da escola pública e debater a transferência do vínculo dos profissionais do SNS para o privado. E bastaram vinte minutos com Francisco Rodrigues dos Santos para apelar ao voto no CDS.
Para este apagar cínico e oportunista das divergências, prefiro, apesar de tudo, as que a esquerda deixa claras entre si. Mas para isso não é preciso andar a desenterrar as que parecem tornar o diálogo impossível, mas que nunca impediram qualquer entendimento no passado. Até porque, com esse esforço, António Costa pode passar a ideia de que procura razões para não dialogar. E isso talvez leve as pessoas a reinterpretar o que aconteceu neste Orçamento de Estado.