Em torno das eleições e da perspetiva do que delas se pode esperar

(Júlio Marques Mota, in Blog in a Viagem dos Argonautas, 03/02/2022)

Houve eleições em Portugal. O centro político ganhou, o PS teve a maioria absoluta, o PSD aumentou o seu número de votos mas ao contrário do que previam as sondagens, sente-se derrotado porque na sua mira estava a vitória e esta fugiu-lhe redondamente. À esquerda do centro político, com este a ser definido por PS+PSD, a derrota foi total, o que, do meu ponto de vista, fragiliza e em muito o próprio PS, digam os militantes deste partido o que disserem. A derrota desta esquerda pode acelerar a marcha do PS para se transformar num PSD de gente maioritariamente mais culta. À direita desse centro político temos um partido que mais cedo ou mais tarde será uma réplica do PSD, a Iniciativa Liberal, e temos ainda essa monstruosidade que dá pelo nome CHEGA. Pelo meio disto, entre a esquerda e o PS temos o PAN e o Livre, por agora de muito pouco significado.

Olhemos para os votos das legislativas de agora contra os resultados anteriores:

  1. Centrão
 20222019
PS2 224 6371 866 511
PSD1 498 6051 420 644
Total3 723 2423 286 155

2. Esquerda Real

 20222019
CDU236 635 329 241
BE240 265 492 505
Totais476  900 821 746

À Direita do Centrão

 20222019
CDS  87 578216 454
CHEGA385 559  66 448
Iniciativa Liberal268 414  65 545
Totais741 551348 447

As duas variantes do que estará lateral ao Centrão, é o Livre e o PAN. O Livre representa a variante  culta e humanista da social-democracia no contexto dos Tratados europeus  e estará disponível à “fusão” com a componente mais polida do Centrão,  o PS, e gira em torno da gente mais à esquerda deste partido. A segunda  versão, o PAN, está mais virada para os direitos dos animais não humanos que queriam colocados na nossa Constituição e disponível para a fusão com qualquer uma das componentes do Centrão. Uma variante a perder votos da juventude a favor da Iniciativa  Liberal e do  Livre, penso eu.

 20222019
PAN82 250166 858
LIVRE68 975  55 660
Totais151 225222 418

Não vamos fazer nenhum artigo sobre as eleições. Apenas faremos esta breve nota. Sobre as eleições de agora escrevemos no final de Outubro e nada temos a acrescentar. Sublinhemos apenas um pormenor. Continuamos a admitir que a queda do governo foi um erro para a esquerda real que terá caído na ratoeira armada e isso viu-se. Tal como se previa, a campanha foi polarizada e com um certo ódio de Costa à esquerda. Na última semana a polarização foi extrema e as sondagens NÃO fabricadas aceleraram essa polarização com um  empate técnico. Curiosamente, mas muito curiosamente, Costa muda de agulha e mostra-se disposto a uma eventual geringonça que poderia ter o nome de geringonça ecológica, nome bem arranjado pelo LIVRE.

Estes dois dados levam à maioria absoluta de Costa, mas mais ainda, mostram que nada está perdido para a esquerda real. No quadro do medo instalado e da disponibilidade de Costa para a geringonça, levaram o povo de esquerda a votar conscientemente com os dados que tinha. Do meu ponto de vista isto foi mais uma armadilha. E, de resto, Costa não teve a dignidade política que teve Boris Johnson quando ganhou e reconheceu que ganhou com votos que não eram dele, eram do seu opositor, o Partido Trabalhista, eram votos de circunstância que ele tudo iria fazer para os conservar. A seguir, veio a mentira, não agiu em conformidade com o que disse. Dirá o povo, registe-se a intenção,. uma intenção que desta forma não foi vista em António Costa. A acreditar na esperança de Rui Tavares, talvez Costa tenha alguma simetria com Boris Jonhson, ou seja, não se ouve nas palavras mas vai-se ouvir nos factos, ao contrário de Boris Johnson que se ouviu nas palavras mas faltou no plano dos factos.

Pessoalmente, face a Rui Tavares, sou um descrente.

E porque sou um descrente, penso que se a esquerda real se mantiver no plano da defesa dos que trabalham e compensações não têm, dos que querem trabalhar e não têm, dos que têm direito a uma vida de trabalho decente e não têm, recuperará rapidamente os votos supostamente perdidos de vez nestas eleições.

Não alinho no discurso do meu antigo colega e amigo  Boaventura Sousa Santos e  de outros com posições equivalentes, bem fiéis à lógica seguida oficialmente pelo governo, que achava que a esquerda real se devia apagar para abrir a autoestrada da maioria absoluta ao PS e, agora, com o resultado na mão entende que a Catarina Martins se deve demitir. Não entendo, a não ser que se queira, por obscuros desígnios, a eliminação de quem mais fez frente à política de compromisso seguida pelo PS, o PC e o BE.

O centrão em eleições polarizadas como estas foram, tanto à direita como à esquerda, aumentou cerca de 437 mil votos, o que não me parece muito significativo, a não ser numa coisa: as pessoas têm medo da instabilidade e com PSD no poder sozinho poderia haver muita. Basta pensar que houve um acréscimo de eleitores ao nível global na casa dos 300 mil.

O que nestes valores é relevante é:

– a subida da direita racista e da direita ultraliberal, por um lado,

– e, por outro lado, o facto de que a esquerda real na situação de pânico criada deslocou cerca se 345 000 votos, teoricamente para o PS, e este partido aumentou o número de votos em cerca de 358.000 votos.

As contas feitas são simples de ver. Foi a esquerda real que deu a maioria absoluta ao PS! Que algumas pessoas de esquerda queiram agora a cabeça de Catarina Martins, depois de alcançarem a autoestrada da maioria absoluta que tanto desejavam, é coisa que não consigo entender.

Aliás, confirmou-se uma regra, já verificada noutros países, a de que em eleições polarizadas entre dois grandes partidos, perdem sempre os pequenos partidos que lhes estão mais próximos. O exemplo mais emblemático verificou-se no Reino Unido, em que o Partido Liberal fazia coligação com David Cameron. Houve depois eleições com uma disputa acérrima com os trabalhistas de Corbyn. Deu-se a polarização e os Liberais simplesmente desapareceram. Os seus eleitores deram o voto a Cameron com o medo dele perder. Aqui, em Portugal  aconteceu exatamente o mesmo. À esquerda do PS, BE e CDU são sacrificados porque muitos eleitores têm medo que ganhe a direita e passaram a votar útil no PS, deslocando o seu voto, e quanto a isto os números são significativos. À direita do PS, temos apenas o CDS como parceiro de apoio do PSD, uma vez que Chega e Iniciativa Liberal são assumidos intencionalmente como adversários. O CDS desapareceu e possivelmente com muitos dos seus votos a irem para o Rui Rio. De resto, nem é por acaso que Rui Rio não quis fazer coligação com o CDS, à espera disto mesmo!. Os militantes do CDS teriam medo que Rio não ganhasse com os “comunistas” do PS e terão deslocado o seu voto. Em contrapartida os outros dois partidos, o Chega de extrema-direita e Iniciativa Liberal de direita, tiveram dinâmicas diferentes. Por um lado, o Chega não tem nada a ver com o PSD que queria conquistar o centro, exatamente como o PS, e só tinha uma saída: manifestar-se ruidosamente contra o sistema político. Foi o que fez e resultou. A Iniciativa Liberal, gente de um outro nível, estaria disposta a negociar com o PSD , o que se viu no debate com Rui Rio, mas só depois de ter poder para negociar e para isso precisava de ter muitos mais votos. Dito de outra maneira, do ponto de vista de coligações e de que em eleições polarizadas perdem sempre os partidos que servem de apoio aos partidos candidatos ao poder, o Iniciativa Liberal e o Chega não faziam  parte dos partidos próximos do PSD.

Depois de conhecidos os resultados escrevi a um político experimentado das minhas relações dando-lhe conta dos meus receios dos resultados e escrevi o seguinte:

“Deixem-me dizer-vos que se o CHEGA tiver 4-5 deputados à altura e o mesmo se passar com a INICIATIVA LIBERAL o “barulho” será muito e talvez a Assembleia fique prisioneira da incapacidade da esquerda (com um e minúsculo) responder às necessidades do país. Um passaporte para o crescendo dessa direita nas eleições seguintes e aí o ruído será bem mais assustador. Mas assusta-se quem tem medo de que isso aconteça e eu tenho.

Esta é a minha perspetiva quanto à NOVA Assembleia e no pressuposto considerado destes dois partidos terem deputados de qualidade .

Resposta deste meu conhecido político experimentado:

“Caro Julio Mota

Deixa-me ver se entendi.

Preocupa-te, e assusta-te, o barulho que o CHEGA e a IL possam fazer e o que possam ganhar em eleições seguintes, caso a Assembleia fique prisioneira da sua incapacidade de resolver os problemas do País!

Explica-me o que te preocupa mais. O avanço do CHEGA e da IL ou a incapacidade da esquerda resolver os problemas do país, já que ligas um desenvolvimento ao outro. Isto porque para mim o que é preocupante, é, obviamente, o País e não o CHEGA ou a IL.”

A isto respondi:

“Entendeste. Tenho medo das duas coisas porque ambas estão ligadas, alimentam-se. Simples”

E obtive como resposta:

“Se é assim percebi, mas então comigo é diferente.

Eu não consigo intelectualmente pôr no mesmo plano a falência comprovada da esquerda nacional com o perigo potencial de duas forças políticas com 20 deputados em 230! A esquerda arruinou já a vida da maioria dos portugueses enquanto o CHEGA e a IL tiram o sono sobretudo a bloquistas e equiparados, ao partido mediático, e a intelectuais desligados da realidade!”

E fiquei por aqui. Não tenho dúvidas que a direita pura e dura irá continuar a crescer. Mais, sabemos que com a saída de vários deputados de qualidade, como José Manuel Pureza,  João Almeida, António Filipe  e outros, a qualidade dos tribunos irá, em geral, descer e com ela a qualidade do trabalho parlamentar. Se adicionarmos  que o Chega não terá deputados de qualidade, resta-lhe desencadear mecanismos  possíveis de bloquear o trabalho dos outros, a fazer obstrução sistemática na Assembleia e muito barulho, muito mesmo,  na rua, alimentando as forças de direita.

Esta dinâmica de contestação e de bloqueio funcionará a favor do Chega e não só,  uma vez que esse mal-estar será depois teorizado pela gente inteligente da Iniciativa Liberal e revertido também a seu favor, aumentando a sua atratividade face à juventude. Se levarmos também em conta a incapacidade mais que mostrada do PS em levar a cabo reformas sociais essenciais em termos do mercado de trabalho, saúde, ensino, carreiras profissionais em geral,  assim como em termos da  enorme gangrena que mina fortemente a sociedade portuguesa, podemos também a corrupção, podemos também assistir à forte contestação das classes sociais  vitimas da incapacidade da Administração em satisfazer os seus legítimos interesses,.   estaremos a criar um verdadeiro barril de pólvora. .   

Não vejo o PS capaz de contrariar esta tendência na sociedade portuguesa, vejo-o antes a ser capaz de se moldar a ela, o que é bem pior e que poderá levar à explosão do dito barril, o que acarretará  efeitos  económicos e sociais fortemente devastadores. Contrariar esta tendência  exige muito mais coragem política do que a que tenho visto: a de fraco com os fortes e forte com os fracos. Exige uma outra política que não a defesa sistemática das “regalias” alcançadas pela Troika a favor dos interesses de classe que esta sempre defendeu. Sobre essa outra política começámos hoje a publicar em A Viagem dos Argonautas uma série de artigos, cerca de 50, sobre a política do NEW DEAL e da coragem daqueles que animaram essa política: Nada a ver com o que se passa hoje.

E tomemos um exemplo. Na manhã de terça-feira telefona-me a minha neta a pedir que lhe explicasse a lógica subjacente do que vê nos seus amigos universitários, do que lê a circular nas redes sociais e tendo como autores muitos jovens universitários. E mostra-me vários exemplos do que se pensa na Universidade: Expliquei-lhe como pude. De uma das coisas que lhe falei foi da passagem do ensino gratuito a tendencialmente gratuito com Jorge Sampaio, que de tendencialmente gratuito se tornou ensino proibitivo. E depois da destruição do ensino superior com Bolonha, destruição tornada realidade com o PS.

Na  sequência da reforma de Bolonha, falou-se dos mestrados a vários milhares de euros e para quem? Uma política de classes é o que isto representa, expliquei-lhe,  e isto não tem nada a ver com socialismo. Tem a ver com a hierarquia de classes, a classe social dos que têm e a dos que não têm. E esta política de hierarquia de classes, não a vejo contestada por nenhum movimento estudantil. E sabes porquê, questionei eu? Não, foi a resposta. É simples, banalizas o ensino, a que chamas ensino de massas e, provocação das provocações, chama-se a isso Democratização do ensino.  

Com a reforma de Bolonha criou-se, isso sim, uma ralé universitária. Depois precisas de separar o trigo do joio, mas o trigo e o joio não são aqui o mérito e o demérito. Não, não. O trigo aqui é o dinheiro, o joio é a falta dele. E muitos dos jovens que escrevem o que tu me mostras fazem parte do grupo dos que podem pagar, mas isso para eles só é válido se muitos outros estudantes não puderem pagar. O dinheiro e a falta dele a estabelecerem o que é mérito e demérito. Por isso, estes dinamizadores de massas , não contestam nada disso. Diz-me, por exemplo, perguntei eu, se vês movimentos estudantis a manifestarem-se contra estes preços de ricos para mestrados quando as licenciaturas estão completamente desvalorizadas. De forma ainda mais simples, se vês movimentos estudantis a exigirem bolsas de estudo por mérito que não sejam apenas as propinas para aqueles que as mereçam.. Aliás, nem há já movimentos estudantis, acrescentei. E a rematar disse-lhe: vocês, em vez desse nojo de textos políticos, deveriam lutar por melhores condições de ensino, por um ensino que dignificasse tanto alunos como professores, por uma melhor inserção da juventude na sociedade em vez de serem sujeitos a serem tomados como párias a residirem numa cabana chamada desemprego de longa duração e isto e mesmo, em muitos casos, sem nunca adquirirem o direito a ter uma profissão condigna.

Aqui vão dois dos exemplos que foram com a minha neta analisados:

Exemplo 1.

Exemplo 2.

Temos 6 anos de governação do PS no Ensino Superior e o resultado dessa política sobre o ensino superior e sobre a juventude em geral está em muitos comentários como estes. Traduzem uma triste realidade, por um lado, a incapacidade do PS mudar seja o que for e por outro a incapacidade da nossa juventude em captar as razões de ser dessa imobilidade quanto opta por comentários destes e por ir votar no Chega ou na Iniciativa Liberal. A maioria dos jovens que conheço vota assim.

Por tudo isto, penso que se a esquerda real se mantiver firme e souber tirar as devidas conclusões sobre a dinâmica social que explica estes resultados rapidamente irá ter a força que perdeu neste domingo. O povo ao mudar o voto para o PS fê-lo como povo de esquerda, enganado, é para nós certo, mas terá sido assim. E uma coisa que o nosso povo já mostrou, é que tem memória, e que é capaz de fazer de uma derrota uma vitória. É o que esperamos, é o que desejamos, até porque um PS sem uma esquerda forte à sua esquerda torna-se um partido capturável pelos múltiplos interesses do neoliberalismo.

E em jeito de conclusão relembro aqui a posição de Pacheco Pereira,  que cito de memória, quando António Costa e esquerda “ganharam” contra Passos Coelho e a Troika em que terá escrito mais ou menos isto: foi bom que o PS tenha ganho e ganho com estes resultados, isto é sem maioria absoluta.


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O primeiro dia do resto das vidas do BE e do PCP

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/02/2022)

Daniel Oliveira

Não vou continuar a discutir o que aconteceu no chumbo do Orçamento. Apesar de ter escolhido ter um governo minoritário que renegou qualquer apoio do PSD ou acordo de legislatura à esquerda para ter maioria, a narrativa de António Costa passou sem dificuldade. Conseguiu impor como normal a ideia de que existe uma maioria parlamentar sem programa comum. Escrevi-o vezes sem conta, desde 2019: se Bloco e PCP permitissem esta situação, seria o partido hegemónico a controlar o momento da crise inevitável, porque nenhuma maioria sobrevive assim. E controlando o timing, controlaria quem seria punido. Permitiram-no e acabaram esfolados.

Mas a derrota do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista veio em várias fases. A primeira, estrutural e com razões demográficas e sociológicas, atingiu o PCP. Mas, se quisermos ser rigorosos, depois das enormes perdas do século passado, o declínio até foi estancado, sobretudo com Jerónimo de Sousa. De 2005 a 2015, a CDU mantém uma votação estável, para não dizer igual, subindo de 14 para 17 deputados durante esse processo (a abstenção aumentou).

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O abraço do urso

É com a “geringonça” e o abraço do urso do PS que a queda se torna imparável. De 2015 para 2019, os comunistas passam de 445 mil para 332 mil votos, perdendo 113 mil votos e passando de 17 para 12 deputados. De 2019 para 2022, perdem mais 96 mil votos, passando para 236 mil votos e de 12 para 6 deputados. Em todas as restantes eleições somaram derrotas. Nas autárquicas, passam de 11%, 552 mil votos, 213 vereadores e 34 câmaras, em 2013, para 9,4%, 489 mil votos, 171 vereadores e 24 câmaras em 2017. E, por fim, para 8,2%, 410 mil votos, 148 vereadores e 19 Câmaras, em 2021. Nas europeias, presidenciais e regionais o padrão repetiu-se.

A “geringonça” foi uma tragédia para os comunistas. Porque os eleitores castigaram esta opção de abertura? As coisas não funcionam assim. Os eleitores atribuíram ao PS os ganhos conseguidos por comunistas e bloquistas. E é por isso que entendimentos deste tipo, para além de exigirem um guião claro em que se perceba o papel de cada um, obriga que a liderança no partido hegemónico queira partilhar vitórias, não esvaziar os seus parceiros.

Extraordinariamente, os comunistas, num gesto que ainda não compreendo, acharam, em 2019, que a sua situação ficaria melhor sem acordo. Como já escrevi, é como um trabalhador achar que é mais livre se for precário. Não se pode dizer que o Bloco tenha sido beneficiado eleitoralmente pela “geringonça”. Passa de 10,2%, em 2015, para 9,5%, em 2019. O tombo foi menor porque os seus eleitores teriam uma visão mais utilitária desta cooperação e porque o Bloco, para enorme irritação de António Costa, que o considerava por isso desleal, foi sabendo, até 2018, vender melhor as suas conquistas.

Daqui não concluo que os entendimentos à esquerda sejam mortais para os partidos mais pequenos, apesar da história europeia dar essa indicação geral. Concluo que eles só não o são se a liderança do partido maior tiver como estratégia crescer ao centro e deixar os partidos à sua esquerda tratarem do seu espaço. Mal há competição, os pequenos são engolidos. E neste caso, não havia competição. Havia, sobretudo em relação ao BE, uma vontade de aniquilação. Nenhum entendimento resiste a isto.

Do chumbo do OE ao voto útil

Depois, veio a perda mais recente. O chumbo do Orçamento do Estado, em que António Costa, que preparava esta crise política desde 2019, vendeu melhor a sua narrativa do que aqueles que o puseram no poder em 2015, terá sido responsável por grande parte das perdas. Aí, o grande penalizado terá sido o Bloco, com muito mais vasos comunicantes com o PS.

Mas, se nos fiarmos nas sondagens, que não estou certo que sejam grande indicador, uma parte da perda ainda terá vindo depois, quando elas começam a dar um empate técnico entre o PS e o PSD. Aí, mesmo os bloquistas (mas também comunistas) que não compravam a narrativa do PS sobre o chumbo do Orçamento (e os estudos de opinião dizem que não eram assim tão poucos) foram sugados para o que afinal era um engodo, contribuindo involuntariamente para uma maioria absoluta que seguramente não desejavam.

As perdas do Bloco são impressionantes. Passa de 19 para 5 deputados (com representação em três círculos, em vez de nove). E passa de terceira para quinta força (sexta em representação parlamentar), sendo previsivelmente ultrapassado pelo Chega, mas também pela IL, que até ficou aquém das previsões. Este é o terceiro pior resultado de sempre. Pior, só nos primeiros anos depois da fundação: 132 mil em 1999, 153 mil em 2002, primeiro com dois e depois com três deputados eleitos, sempre abaixo dos 3%

O copo meio cheio, se ele pode existir nesta razia, é a comparação com a outra queda, em 2011, depois do chumbo do PEC IV, de que o BE viria a recuperar em 2015, conseguindo o melhor resultado de sempre. Olhando para os deputados, não é comparável. Na altura, passou de 16 para 8, exatamente metade. Agora, passa de 19 para 5, quase um quarto. Mesmo na percentagem é um pouco pior, apesar de menos mau: passa de 9,5% para 4,5%, menos de metade, enquanto de 2009 para 2011 passou de 9,8% para 5,2%, quase metade.

Quando se passa para os votos (a abstenção caiu), perde cerca de 260 mil votos, enquanto em 2011 perdera 269 mil. Não sendo previsível que tenha conquistado votos à abstenção, não há razões para dizer que não venha a recuperar mais tarde o que perdeu agora, como aconteceu no passado. Depende do BE e das circunstâncias nas próximas eleições.

A troca de líderes

E é aqui que chego ao futuro. Primeiro, o futuro quase imediato. Jerónimo de Sousa é um dos principais responsáveis pela extraordinária resistência do partido nas duas últimas décadas. Chegou a novas pessoas, deu um rosto humano ao discurso muitas vezes pouco flexível dos comunistas. Mas a idade, a saúde e as derrotas dos últimos anos exigem outros rostos. Quanto mais depressa fizer a transição (e estou a pensar no ritmo muito próprio de uma instituição centenária), mais rapidamente o PCP voltará à ofensiva.

Olhando para o cenário, parece evidente que a escolha seja João Ferreira, que com desistências até pode chegar a um grupo parlamentar muito depauperado. Mas o PCP tem as suas próprias evidências e nem sempre se sai mal com elas. Com o Bloco as coisas são ainda mais complicadas. Não acho que Catarina Martins tenha responsabilidades neste resultado. Fez a campanha possível numa situação dificílima, determinada por uma decisão unânime da Mesa Nacional do partido. Mas é óbvio que, até por ter gerido este período, a sua eficácia se perdeu.

Com o disparate tático de terem queimado (intencionalmente?) Marisa Matias numa absurda aventura presidencial, sobra-lhes, que eu veja, Mariana Mortágua. É eficaz no combate tribunício, não sei se é a líder para a reorganização de um partido em que pequenas tendências se sabotam mutuamente. Mas já me enganei, no passado, em relação a Catarina Martins, que levou o BE aos melhores resultados da sua história. No meio, ainda terá de adaptar a uma nova capacidade financeira, o que não vai costuma ajudar à moral.

Na oposição. E agora?

Mas a questão principal não é, para estes quatro anos, a liderança. Com maioria absoluta, uma direita fragmentada e radicalizada e o flanco esquerdo enfraquecido, o terceiro governo de António Costa nada terá a ver com os anteriores. Será muitíssimo mais centrista, para dizer o mínimo. E o PS também. Por medo ou por irritação, os eleitores mais à esquerda deram a Costa o direito a governar sozinho, livre para rumar à direita. A sedução da esquerda far-se-á, muito provavelmente, transformando o Chega no principal inimigo, e ao mesmo tempo governando ao centro. Até pode usar a IL como caricatura, para tudo parecer excelente. 

Neste cenário, a ideia do diálogo à esquerda é estultícia. Governos de maioria absoluta não dialogam, quanto muito trocam umas ideias e ouvem uns conselhos. Entendimentos à esquerda não são um fim em si mesmo e dependem da correlação de forças existente. BE e PCP passarão, como é suposto perante estes resultados, para a oposição. E não lhes faltam tarefas. Começaria por duas: garantir que a representação do mal-estar social e político que se sentirá nestes quatro anos e a vigilância redobradamente necessária perante uma maioria absoluta não fica nas mãos da extrema-direita (o PSD, sem o combustível do poder, vai andar muito tempo a apanhar bonés). E trabalhar para que o debate ideológico e um discurso aspiracional mais ambicioso do que a mera gestão rotineira da governação não fica para a IL.

Para isto, o PCP tem de encontrar forças para reanimar alguma da sua adormecida capacidade de mobilização. Um dos problemas da “geringonça” foi repetir o erro habitual da esquerda, que desiste da rua quando está nas instituições. Já o Bloco tem de ressuscitar a sua capacidade de falar para fora da bolha partidária, trabalhar com independentes (muitos terão votado PS circunstancialmente) e voltar a falar para os jovens. Uma novidade: as ditas causas fraturantes já não chegam. Até a direita “liberal” as compra, desde que venham com benefícios fiscais.

BE e PCP têm quatro anos para se reorganizar. A maioria absoluta do PS, que os liberta da pressão tática dos últimos seis anos, torna esse trabalho difícil, mas possível.

Entendam-se!

A tarefa mais improvável para bloquistas e comunistas é, no entanto, a mais óbvia: falarem uns com os outros. É impressionante que partidos que votam mais de 90% das vezes ao lado um do outro, que se dividem apenas em questões internacionais e alguns temas de costumes, não se consigam sentar à mesma mesa sem que seja o PS a juntá-los. Seria injusto dizer que o sectarismo dos dois é equivalente, mas há responsabilidades partilhadas.

A “geringonça” teria sido bem diferente, com conquistas bem maiores, se se tivessem coordenado. A sua divisão foi uma forte aliada de António Costa. E as coisas teriam sido diferentes, em 2019, se tivessem travado juntos o jogo que os tramou. Também a oposição será diferente se conversarem um com o outro. E isso deve ser-lhes cobrado por eleitores e militantes. Não se pedem coligações – a soma pode excluir mais do que junta –, mas coordenação. A alternativa é disputarem migalhas, derrotando-se mutuamente.


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Costa, entre duas histórias

(Manuel Loff, in Público, 01/02/2022)

Manuel Loff

A história que começava por “ia tudo tão bem e estes irresponsáveis quiseram deitar o Governo abaixo” funcionou. A que dentro de meses Costa nos vai contar é outra, e vai começar por “afinal não era bem isto com que contávamos…” Aí, claro, vai ser (temporariamente) tarde demais.


Funcionou. Nem ele contava que funcionasse tão bem, mas a história contada por António Costa, que, simplificada, começava por “ia tudo tão bem e estes irresponsáveis quiseram deitar o Governo abaixo”, convenceu uns 90 mil votantes da CDU e 250 mil do Bloco, mais uns 40 mil outros (abstencionistas, restos do PAN), e deu-lhe a maioria parlamentar. 28% dos eleitores comunistas/verdes de 2019 e 51% dos bloquistas convenceram-se que dar maioria ao PS era a melhor forma de preservar o que terão achado ter sido a “geringonça” – aumentos de salário mínimo, pensões e prestações sociais, descida do preço dos transportes e das propinas, salário pago a 100% em período de lay-off. Sejamos claros: ao abandonar quem, à esquerda do PS, obrigou o PS a fazer o que o PS não queria fazer nem em 2015, nem em 2019, e obrigando-o a assumir a política social mais à esquerda que algum governo socialista assumiu desde 1976, estes 340 mil eleitores (40% de quem em 2019 votava à esquerda do PS) entregaram nas mãos de Costa a possibilidade de não ter de negociar mais coisa nenhuma que beneficie a sério quem trabalha, estuda e tem uma reforma – além de não impedir minimamente que negoceie à direita tudo aquilo a pomposamente chama “acordos de regime” (ou “de cavalheiros”, na semântica rançosa de Santos Silva). Com a inflação e a desvalorização do poder de compra dos assalariados e dos reformados, mais a iminente a subida das taxas de juro, vai ser preciso esperar muito pouco para que Costa regresse à austeridade e às políticas neoliberais que a social-democracia assume todas as vezes que grita “crise!” A história que dentro de meses Costa nos vai contar é outra, e vai começar por “afinal não era bem isto com que contávamos…” Aí, claro, vai ser (temporariamente) tarde demais.

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Este foi para a esquerda a sério (PCP, Verdes, BE) o preço da colaboração com o PS. Para os que continuam a passar a cassete gasta da ortodoxia do PCP e do radicalismo do BE, recordo que ambos os partidos anteciparam já em 2015 o preço que poderiam pagar por pôr o PS no governo quando ele não tinha os votos para lá chegar, e obrigá-lo a atuar como o partido de esquerda que, nas políticas económicas (recorde de privatizações com Guterres), sociais (legislação laboral de Soares e Sócrates) e na apropriação patrimonial do Estado (governos Guterres e Sócrates), o PS nunca foi. Em 2019 a CDU (perdendo 110 mil votos para o PS) pagou mais esse preço que o BE (60 mil); agora é o inverso: o descalabro da votação do BE assemelha-se ao que sofreu em 2011 em favor de Sócrates (e veja-se para que serviu votar PS então…), enquanto a CDU resiste melhor. Revelador desta expectativa de que o PS mantenha as conquistas que lhe foram arrancadas pela esquerda é a votação na Margem Sul do Tejo, onde se concentra grande parte do eleitorado popular da CDU, onde o PS subiu bem mais (10-11% em alguns casos) que na média nacional (5%) e onde comunistas (e bloquistas) perderam mais que a média.

Em todo o caso, o homem que criticava as vitórias poucochinhas ficará para a história como o recordista destas: subiu ao poder com 32% dos votos, fez-se reconduzir em 2019 com uma das mais baixas vitórias da história do PS e agora obtém a mais barata das maiorias absolutas da história eleitoral (41,7%), bem abaixo da de Sócrates ou as da AD (45%-48%) ou de ambas as de Cavaco (acima de 50%). O único recorde histórico que Costa detinha queimou-o agora: assinar acordos à sua esquerda, negociar com comunistas e bloquistas, derrubando (chamou-lhe ele) um muro que separava a esquerda desde 1975. Ele ainda cá está. É o da leitura da Revolução e daquilo para que serve a democracia que ela criou: constituir a “Vila Morena” em que o povo é quem mais ordena ou “meter o socialismo na gaveta”?

Aos que há 30 anos juram que o PCP vai morrer ou já morreu, e que (re)anteveem a morte do BE ao virar da esquina, lembro que há 20 anos, em 2002, estes partidos juntavam o mesmo meio milhão de votos que têm agora. Em 2015, depois de terem sido eles e não o PS a estar na batalha contra a catástrofe da troika, juntaram um milhão e impuseram a derrota da direita.

Quando Costa começar a dizer que, afinal, não era bem como nos tinha contado, ele que se prepare. O 25 de Abril vai fazer 50 anos, e nós ainda cá vamos estar. Todos.


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