Esquerda cativada

(Daniel Oliveira, in Expresso, 15/10/2021)

Daniel Oliveira

Para falarmos de Orçamento temos de perceber em que ponto estamos. Durante a pandemia, entre o início de 2020 e junho de 2021, o Estado português teve uma despesa adicional discricionária de 5,6% do seu PIB. Nas economias avançadas, em que nos integramos, foram 17%. No mundo, quase 10%, nos EUA 25%. Ficámos próximos dos países emergentes e seremos dos últimos a recuperar. Segundo a OCDE, 30 meses depois do pico da queda, o PIB mundial estará 7% mais alto, o dos EUA 6%, o da zona euro uns medíocres 2% e o de Portugal 1%. É neste cenário, num momento decisivo e no último ano em que não temos o garrote dos limites ao défice, que o Governo propõe um Orçamento que tem como prioridade melhorar o saldo estrutural e em que os estímulos à economia correspondem a uns miseráveis 0,5% do PIB. Porque se fia no PRR, onde compensará mínimos históricos de investimento público. Em vez de um estímulo adicional, como se pretendia, Costa dá com o PRR o que Leão tira no OE.

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É verdade que há alterações fiscais que tornam o sistema ligeiramente mais progressivo e há um reforço de apoios sociais. Mas veremos se haverá alterações na legislação laboral, sobretudo na caducidade da contratação coletiva. É verdade que Costa se prepara para atirar dinheiro para a saúde, mas veremos se mexe nas carreiras médicas e de enfermagem para estancar a sangria para o privado que matará o SNS. A pressão faz-se também fora do OE, porque BE e PCP sabem que nem este Orçamento de contenção é real. Há coisas acordadas com os partidos que se repetem há três Orçamentos sem nunca serem cumpridas. Voltaremos a ter um ano de promessas cativadas, que tiveram como última vítima visível a ferrovia e como vítimas silenciosas muitos serviços em rutura. O oposto de “contas certas”. O grito de Pedro Nuno Santos foi de quase todo o governo: os Orçamentos são anúncios que ficam na gaveta de João Leão. Perdeu-se a confiança.

Se os próximos dois anos dependerem de propaganda da ‘bazuca’, falta de alternativa e chantagem para ter maioria, a mudança virá da direita.

Saltar da apresentação deste dececionante OE para crise política, ignorando o seu conteúdo, é esvaziar a negociação. Desde o fim da ‘geringonça’, o Governo tem usado a mesma tática: apresenta um Orçamento que ignora as propostas dos “parceiros”, cede com medidas que já tinha de reserva e acaba a fazer chantagem. Desta vez, o Presidente quis retirar força negocial ao PCP e ao BE e saltou logo para a última fase. Mas eles não devem negociar apenas este ou aquele apoio. Pôr a economia em lume brando é um crime pelo qual acabarão por ser responsabilizados. Os Orçamentos devem ser aprovados porque são minimamente satisfatórios, não por medo de eleições. Depois de Costa ter sido fundamental para forjar a ‘geringonça’, faz falta alguém que arrisque e aproveite as pontes criadas para reformas progressistas. O PS tem de perceber o que aconteceu nas autárquicas. Os próximos dois anos não se podem arrastar na dependência da propaganda da ‘bazuca’, da falta de alternativa e da chantagem para ter maioria. Ou a esquerda se descativa e o espírito da ‘geringonça’ se renova ou a mudança virá com uma direita aditivada pelo fanatismo da IL e o ódio do Chega, com quem o PSD se entenderá. O pântano agiganta crises políticas, não as evita. Está nas mãos do PS negociar a sério. Coisa que não perdeu um minuto a fazer, neste OE.


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O uno e o múltiplo: lições das presidenciais

(Porfírio Silva, in Blog MaquinaEspeculativa, 25/01/2021)

Em maio de 2020, quando foi possível debater explicitamente as eleições presidenciais nos órgãos do meu partido, apresentei o meu ponto de vista, com dois alertas (como foi noticiado, com razoável rigor, por exemplo aqui). 

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Primeiro, o apoio, declarado ou implícito, do PS a Marcelo Rebelo de Sousa introduziria desequilíbrios no regime democrático, porque, ao criar a expectativa de uma votação esmagadora (com o apoio de todos os partidos que alguma vez governaram Portugal em democracia constitucional), abriria um novo espaço à direita extrema, oferecendo-lhe o bónus de ser a principal novidade das presidenciais e, consequentemente, o palco da campanha, sendo desse palco que vivem os movimentos contra o sistema democrático. Com a agravante de que o palco à extrema-direita perturba a capacidade do PSD para ser uma alternativa decente de governo.

Segundo, alertei para o perigo de, naquele cenário de união de facto com MRS, virmos a ter na área socialista somente uma candidatura populista, sem histórico de um programa de esquerda articulado e coerente, mas vocal na crítica à política e nos ataques ao PS.

2. Infelizmente, creio hoje que os factos mostram que tinha razão.

A reeleição de MRS é um resultado que, em si mesmo, nem coloca em perigo nem enfraquece a democracia. Pode vir a ser um risco para a governação socialista, e é provável que isso aconteça no segundo mandato, mas isso é diferente de afectar a democracia. Aliás, MRS não descurou o ataque político ao candidato extremista, em nome de uma direita democrática que não se inibe de invocar o Papa Francisco ou Sá Carneiro. 

Entretanto, a expectativa de uma fácil reeleição abriu o palco ao candidato extremista. Um candidato com capacidade para representar toda a diversidade do espaço do PS teria criado uma verdadeira disputa pelo resultado e teria a vantagem de reduzir a margem de espectáculo para AV, estreitado a sua margem de progressão eleitoral.

Obviamente, a candidatura de uma militante socialista não foi capaz de preencher esse papel, na medida em que resvalou permanentemente para o discurso de uma candidatura contra o PS, insistiu nos temas do populismo justiceiro que sabe serem inaceitáveis para muitos democratas e, finalmente, decidiu misturar a candidatura com a vida interna dos socialistas (pecado mortal de qualquer candidato, qualquer que seja o partido que implique). Tentei alertar para esse perigo, em Carta aberta a Ana Gomes, mas de nada serviu. O resultado está à vista, mesmo quando os candidatos não assumem a responsabilidade pelos seus maus resultados e tentam sacudi-los para os ombros de outrem.

3. Não votei MRS (não me basta achar que um candidato é decente para lhe dar o meu voto, até porque espero que a maioria dos candidatos sejam decentes), mas entendo que muitos socialistas tenham votado na reeleição. Gostando mais ou menos do estilo às vezes excessivamente dominado pela necessidade de ser popular, ou até discordando de algumas das suas posições políticas, uma esmagadora maioria dos portugueses valoriza positivamente a descrispação e a normalização da vida política nacional que MRS operou desde o início do seu primeiro mandato. Basta lembrar que o antecessor foi Anibal Cavaco Silva… para dar logo alguma tolerância a MRS.

Aliás, o PS, ao definir a sua posição face às presidenciais, não podia ignorar que uma maioria do seu eleitorado estava inclinado para votar no PR em exercício: os partidos não podem pensar que podem definir as suas posições ignorando as posições de partida do seu eleitorado. De qualquer modo, o PS tem de fazer, agora, o trabalho de curar as feridas abertas entre os seus militantes e entre os seus eleitores por esta campanha e eleição presidencial.

4. O resultado, alto, excessivamente alto, da extrema-direita, é uma preocupação para todos os democratas. É um problema que está alojado no campo da direita, mas, sendo um factor de contaminação da direita, sendo uma dinâmica que põe em causa a autonomia estratégica da direita democrática, afecta todo o sistema político. Um país democrático precisa de uma direita democrática – e, neste momento, não vejo nenhum partido de direita a assumir um claro combate às teses iníquas do partido fascistóide. Isso é um problema de todos os democratas. Rui Rio não percebe isso e fez uma declaração na noite eleitoral onde o principal destaque foi o seu empenho em sublinhar os sucessos do candidato protofascista.

5. A esquerda que não votou MRS dividiu-se, mas não foi isso que a fez perder eleitoralmente. A ideia de que seria preferível uma candidatura única da esquerda é o regresso à ilusão de uma esquerda unitária, ilusão essa que só se pode alimentar de um completo desconhecimento da sociedade portuguesa e de um grande desapreço pela diversidade ideológica e política da esquerda. A fixação na mítica unidade por obrigação persegue a esquerda há décadas e ainda não foi compreendida na sua negatividade intrínseca. Não precisamos de bloco homogéneo contra bloco homogéneo, precisamos de pluralismo, precisamos de diversidade e, acresce, precisamos de capacidade para o compromisso. A pluralidade é complexa e os simplistas querem ter pouco trabalho com a deliberação democrática. Essa mitologia tem de ser desconstruída, para podermos, à esquerda, fazer o que é necessário sem um pesado nevoeiro de ilusões.  6. A esquerda de que precisamos é uma esquerda plural que assuma as suas responsabilidades. Na transição de legislaturas, a solução política que a direita baptizou de “geringonça” desconcentrou-se. Depois de uma legislatura em que um governo minoritário do PS e uma maioria parlamentar plural de esquerda conseguiram desmontar o rumo austeritário e imprimir um rumo de progresso social e económico, e de umas eleições legislativas em que o país renovou a confiança nessa fórmula, com reforço do PS, a cidadania assistiu a uma série de desentendimentos, sobre cuja repartição de responsabilidades não vou aqui insistir, mas que transmitiram ao país a mensagem de que a cooperação estruturada à esquerda estava desordenada. Sem voltar aqui à distribuição de culpas, é evidente que o voto contra do BE no OE 2021 sinalizou uma emergência política: a insensibilidade de uma parte da esquerda às nossas responsabilidades comuns em respondermos conjuntamente ao país. Sem ser cada um por si. Sem ser o salve-se quem puder. Sem a perigosa ilusão de passar as culpas. Especialmente quando enfrentamos a crise maior das nossas vidas, provocada pela pandemia.  

7. Para assumir as suas responsabilidades, a Esquerda Plural (o PS, o BE, o PCP, o PEV) tem de voltar a sentar-se à mesa e assinar um compromisso político conjunto, com um horizonte pelo menos até ao fim da corrente legislatura, onde fique traçado o essencial do rumo e do método para darmos ao país a estabilidade política positiva que é necessária para fazermos frente à pandemia – e para vencermos a pandemia dentro da pandemia que é o aumento das desigualdades sociais.

Se não reunirmos as ferramentas para podermos fazer o que o país necessita, e se deixarmos a direita tomar conta do país neste contexto, o nosso povo sofrerá de novo o peso das políticas anti-sociais da anterior crise. A Esquerda Plural não pode desperdiçar energias e deve concentrar-se, focar-se no essencial – o que passa por um compromisso claro acerca, precisamente, do que é essencial e prioritário.

8. Entretanto, o PS só pode fazer a sua parte neste processo se mantiver a sua identidade e preservar a sua autonomia estratégica.  Tenho a noção das diferenças entre o PS e o BE, e das diferenças entre o PS e o PCP. Não acho sequer que possa ser útil para o Bloco que o PS queira parecer ter as mesmas políticas que o Bloco. Ou que seja útil para o PCP que o PS queira parecer ter as mesmas políticas que os comunistas. Ou que seja útil para a democracia que o PS queira parecer igual a outros partidos, de esquerda ou de direita. O PS só pôde cumprir as suas responsabilidades históricas, desde a clandestinidade, passando pelo período revolucionário, até hoje, porque os socialistas souberam preservar a autonomia estratégica do nosso partido, o partido do socialismo democrático. Preservar a nossa autonomia estratégica é agir de forma a podermos continuar a seguir os nossos critérios nas nossas opções políticas, o que depende de entendermos a nossa identidade histórica e nunca esquecermos o que os portugueses esperam de nós. Só faremos a nossa parte na Esquerda Plural se assumirmos as nossas próprias propostas e o nosso próprio perfil – e, a partir daí, sermos a peça fundamental de uma governação progressista agregadora e mobilizadora.

9. Cabe ao PS entender a dinâmica do uno e do múltiplo e dar um contributo decisivo para definir e concretizar um rumo partilhado pela Esquerda Plural, com os olhos postos no país, especialmente nos mais carenciados e desprotegidos e nos que contribuem, com o seu trabalho, para o desenvolvimento e a coesão entre portugueses. Isso é essencial, também, para travar a caminhada da extrema-direita.

Deputado do PS


O Coelho volta a sair da toca

(Estátua de Sal, 14/08/2016)
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Estive a ver a homilia de Passos Coelho na conhecida festa do Pontal do PSD.
Fiquei a saber que o ano passado, nesta altura do ano, Portugal estava de excelente saúde, a crescer, a riqueza a florir, os portugueses a desmaiar de felicidade e de esperança.
Em oposição, fiquei a saber que, este ano, Portugal está anémico, com febre, e a esvair-se numa depressão profunda. Para provar esta tese, Passos socorreu-se dos números do INE, que dizem que o país teve, no 1º semestre, um crescimento inferior ao do ano passado. Ora, Passos, devia responder a algumas questões pertinentes:
1) Se o País estava em 2015 tão bem como ele pinta, qual a razão pela qual os portugueses, não lhe deram nas eleições a possibilidade de governar? Passos continua sem perceber a razão de tal falhanço eleitoral.
2) Se o país está tão mal como ele pinta, este ano, qual a razão pela qual o PSD que ele lidera está a perder fôlego eleitoral, de acordo com a última sondagem realizada há dias, enquanto o PS e os seus apoiantes à esquerda se aproximam da maioria absoluta? Passos continua sem perceber que as ténues mudanças na política económica que este Governo tem subscrito agrada à maioria dos portugueses, por muito que lhe doa, e que ele ameace com cobras, lagartos e fogos vários, sejam do Apocalipse ou não.
Contudo, esta incapacidade de Passos em perceber a realidade é facilmente explicada se aplicarmos o chamado “teorema Montenegro” que estabeleceu o seguinte postulado: “os países estão melhores quando as pessoas estão piores e os países estão piores quando as pessoas estão melhores”. Á luz da aplicação desta máxima, as pessoas, estando melhores com o Governo Costa, ignoram que o país, está pior e foi esse o grande recado de Passos nesta sua intervenção.
O azar de Passos, é que, quando o país vai a votos, não é o “país” que vota, mas sim as pessoas, e estas tendem a apoiar quem lhes melhora as condições de vida e não quem melhora apenas as estatísticas do INE.
Disse mais Passos: que o país precisa do PSD. Eu concordo, até porque o peso eleitoral e sociológico do PSD não pode ser ignorado ,no quadro do regime parlamentar de onde emanam os governos em Portugal.  Mas o país precisar do PSD não é a mesma coisa que precisar de Passos Coelho enquanto líder do PSD.
Do meu ponto de vista, depois de ter sido quebrado o bloqueio da governação à esquerda depois da formação da geringonça, resta quebrar o bloqueio ao centro. E esse bloqueio ao centro tem apenas um nome e um rosto: Pedro Passos Coelho. Um partido cujo líder não tem capacidade para perceber a realidade e a ela se adaptar para a tentar transformar a seu contento, não será nunca mais um partido de poder ou de governação.
Aliás, parece que já há mais gente, mesmo à Direita que já percebeu isto. As televisões, SICN, TVI24, RTP3 começaram todas com diretos do Pontal. Mas quando chegaram as 22h, a SICN e a TVI24 passaram-se para os programas de futebol dominical, o que só prova que a importância mediática da peroração de Passos já não é o que era, e se calhar, só ele é que ainda não se apercebeu disso mesmo.
De facto, vale mais ouvir o Rui Santos a analisar as táticas do Rui Vitória ou do Jorge Jesus do que ouvir Passos Coelho a anunciar o fim do mundo e a rogar pragas a António Costa.