(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/10/2021)

Nos últimos anos, o partido com que o PS mais vezes coincidiu no voto foi, destacado, o PSD. Fora dos orçamentos, Costa governou em bloco central. Desde 2019, a suposta “geringonça” resumiu-se ao dever anual dos “parceiros” aprovarem o OE. Não defendi a “geringonça” por haver um bloco natural, mas porque o tabu tinha de ser vencido para impedir que a troika se tornasse estrutural. Uma “geringonça” menos oportunista acontecerá quando o tal bloco central acabar. Foi por ter sido dos primeiros a defender a geringonça que fui dos mais críticos deste pântano, que dura desde 2019. Foi o oposto do que a esquerda precisava.
Já aqui uma vez citei um trabalho de recolha de dados de Frederico Muñoz. O informático fez um levantamento das votações dos vários partidos no Parlamento, em 2019 e 2020, e descobriu o que uma pessoa atenta facilmente poderia intuir: que os partidos com que o PS mais vezes coincidiu no voto foram, por esta ordem, PSD, CDS, PAN, IL, BE, PCP, PEV, Livre (e depois Joacine Katar Moreira) e Chega. É verdade que BE e PCP coincidem muitas vezes com o resto da oposição, incluindo IL. Acontece sempre que alguma proposta do poder é chumbada. Mas o sintomático, aqui, é que o partido que está no poder coincida mais vezes com a oposição de direita (a tradicional) do que com aqueles a que chama “parceiros”.
Com base nestes resultados, Muñoz faz um dendrograma que divide o Parlamento nacional em dois blocos, sendo que cada um tem duas subdivisões. De um lado, temos um bloco que vai do PCP ao PAN, sendo que o PAN se distingue do espaço PCP, BE, PEV e Livre. Do outro, um bloco que vai do PS ao Chega, sendo que há um bloco central, com PS e PSD a coincidirem muito nas suas posições, e outro que junta CDS, IL e Chega. Não estamos a falar de perfil ideológico, mas apenas de comportamento em votações.
Quando olhamos para as votações no Parlamento, percebemos que o PS votou ao lado do PSD 1500 vezes, do CDS quase 1200, da IL e PAN cerca de 1120, BE 1107, PCP 1079 e Livre 1006. O Chega é o único partido de direita que se afasta do PS mais do que os partidos à esquerda. Todos a léguas do PSD. A conclusão principal é que, fora dos Orçamentos, António Costa governou em grande coincidência com o PSD. No essencial, o bloco central manteve-se intacto Como não há acordos de legislatura com a esquerda, os entendimentos resumiram-se, desde 2019, ao dever anual dos “parceiros de esquerda” aprovarem o Orçamento do Estado.
Mesmo esses momentos têm que se lhe diga. Muñoz foi ver as votações na especialidade do último Orçamento do Estado e concluiu que BE e PCP aprovaram a maioria das propostas do Partido Socialista e abstiveram-se em algumas. Pelo contrário, o PS votou contra todas as propostas de alteração do Bloco de Esquerda e cerca de 85% do PCP. Não é uma relação minimamente paritária.
A decisão de António Costa recusar qualquer entendimento com o PSD para aprovar Orçamentos não tem, como se percebe aqui, qualquer razão substantiva ou programática. É uma escolha tática, que correspondeu à necessidade de prender os partidos à sua esquerda à situação em que hoje se encontram. Não permitiu que o PSD escolhesse o melhor momento para uma crise e responsabiliza forças mais pequenas, com vasos eleitorais comunicantes com o PS, quando essa crise acontece. Escolhe o elo mais fraco para o suportar.
Não estou a dizer que o PS é igual ao PSD. Nunca o disse ou escrevi. Estou a dizer que este continua a ser o ser o elo político mais forte, que só a violência retórica disfarça.
Muitos dirão: mas não foi isso que foi dito sobre a “geringonça”? Que era uma aliança contranatura, uma coligação negativa movida pelo ódio a Passos Coelho? A ideia de que as circunstâncias não forjam alianças políticas é pueril e só pode resultar de desconhecimento da política e da História. Não defendi a “geringonça” por achar que havia um bloco político de esquerda natural que iria governar o país, mas por achar que o tabu tinha de ser vencido porque um bloco de esquerda poderia, a determinado momento, ser necessário para governar o país. E que o momento era aquele. Era preciso impedir que a alterações feitas pela troika se tornassem estruturais. Como se viu, o PS até quis que algumas dessas alterações se tornassem estruturais. Notarão que grande parte das desavenças atuais com os partidos à sua esquerda são sobre essa parte do legado da troika que os socialistas nunca quiseram desfazer: nas leis laborais.
Há, dentro do PS, quem defenda que é possível e necessário construir um bloco político de esquerda mais consistente. Não terá de governar sempre junto, mas pode construir um património político partilhado que não seja apenas retórico – vejo pessoas do PS acusar BE e PCP de entregarem o poder à direita privatizadora fazendo parte do partido que mais privatizou em Portugal –, mas real. Não estamos no PREC, mas numa fase de perdas à esquerda e ofensiva neoliberal global. Mas é evidente que o protagonista desse bloco mais consequente não é nem nunca foi António Costa. A “geringonça” teve, para ele, uma função política pessoal. Que não contesto – já escrevi que há mudanças estruturais que acontecem por oportunidades circunstanciais. Desfez essa mesma “geringonça” mal teve uma oportunidade: quando ficou em primeiro e pôde dispensar acordos de legislatura.
Mentiria se dissesse que queria que fôssemos a votos agora. Não há pior momento. Mas a política não depende apenas de desejos. O pântano que dura desde 2019 (e desde 2019 lhe chamo assim) estava fadado a ter este desfecho, e só a pandemia permitiu que tenha sobrevivido tanto tempo. A esquerda, como a direita, tem o direito a desentender-se. E não faz sentido olhar para cada desentendimento como a prova derradeira de uma impossibilidade. Afinal de contas, é bom voltar a recordar que o PS governa há seis anos porque o PCP e o BE assim o quiseram.
Um dos problemas desta crise, que Costa procurou quando foi dinamitando todas as pontes de um entendimento mais estrutural, é fazer regressar o tabu. Uma “geringonça” menos oportunista acontecerá quando o tal bloco central acabar. E isso depende, antes de tudo, de um debate que o PS fará quando estiver na oposição – seja daqui a meses ou daqui a anos. E dependerá do BE e do PCP, que passarão agora por uma penosa crise (que não resulta apenas deste chumbo, mas de três anos de uma posição hibrida que não favoreceu a clareza do seu discurso), não regressarem a uma estaca zero sectária.
Foi por sempre ter defendido as pontes à esquerda que fui vocal contra sequestros e ultimatos. Foi por ter sido dos primeiros a defender a “geringonça” que fui dos mais críticos deste pântano. Porque este pântano, que dura desde 2019, foi o oposto do que a esquerda precisava.