Um manual de segurança digital para tempos sombrios

(Anarco Esporte Fino, in Resistir, 23/10/2018)

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Nas últimas semanas, desde que a catástrofe Bolsonaro se consolidou no horizonte, diversas pessoas me procuraram para pedir dicas de segurança — e como tenho um longo histórico de ameaças recebidas por conta do meu trabalho tive que aprender uma coisa ou outra sobre como me proteger ao longo dos anos. Ainda, a invasão do grupo “Mulheres contra Bolsonaro” no Facebook me parece uma prova clara de que esse medo não é infundado.

Bem, para aqueles que estão engajados no ativismo digital a recomendação mais óbvia é a de que nunca utilizem seus nomes pessoais nas redes sociais, evitem ao máximo divulgar informações que possam lhes identificar, fotos, descrições da sua rotina pessoal, endereços que frequenta, etc… — “lives” que informem aos usuários a sua localização nem pensar.

Outro ponto fundamental, utilizem sistemas seguros para navegar na internet. Eu não diria nem para migrarem para o Linux (apesar de recomendar MUITO que o façam — voltaremos ao ponto), mas só de trocar do IE (Internet Explorer) pelo Firefox ou Waterfox já ajuda um pouco. Diria para evitar o Chrome, sobretudo após a notícia de que 17 extensões de VPN (Virtual Private Network) permitem o vazamento de dados DNS de usuários .

Fundamental: no Firefox (ou Chrome e Opera), utilizem as seguintes extensões

HTTPS Everywhere : ativa automaticamente o Hyper Text Transfer Protocol Secure —protocolo de transferência de hipertexto seguro.

Privacy Badger : Bloqueia anúncios e impede que sites rastreiem onde você está e o tipo de conteúdo que você visualiza na web.

uBlock Origin : Bloqueia anúncios de maneira eficaz e sem consumo excessivo de memória

Cookie AutoDelete : deleta automaticamente os cookies dos sites. Cookies são arquivos de textos utilizados pelos servidores para armazenar suas preferências como usuário.

Decentraleyes : Protege o usuário de rastreamento feito através de conteúdo acessado em sites.
Aqui vocês podem encontrar algumas dicas adicionais: https://www.privacytools.io/

E aqui vocês podem testar a segurança do seu browser: https://panopticlick.eff.org/

Por fim, recomendo MUITO que troquem o Windows por um sistema operacional mais seguro (Linux ou MacOs, com a diferença fundamental de que o primeiro é totalmente de graça, assim como seus programas). Sobre o Linux especificamente, estamos falando de um sistema operacional virtualmente imune a vírus e trojans (formas amplamente utilizadas para hackear um computador). Distribuições (“versões” do Linux) como Ubuntu , Mint ouManjaro são extremamente simples de se usar (mais até do que o Windows em vários contextos), completas e muito mais seguras. Aqui há um bom tutorial sobre como instalar o Ubuntu (mas que serve para a maioria das distribuições Linux).

No celular é importante que desabilitem as funções de instalar apps de “fontes desconhecidas” e “localização”. A exemplo dos computadores, recomendo que mudem o browser de navegação, utilizem o Brave ou Firefox Focus. Da mesma maneira que recomendei a substituição do Windows (e do MacOs) pelo Linux nos desktops, aqui recomendo que substituam o Android por outros sistemas, como o CopperheadOs (mais recomendável), LineageOS ou o Eelo (essa ainda em fase de testes). A instalação é um pouco mais complexa do que o Linux, mas nada de outro mundo.Aqui há um bom tutorial de como instalar o LineageOS .

Finalizando: recomendo que utilizem o Signal para enviar e receber mensagens (ele, inclusive, substitui o SMS); migrem do GMAIL para alguma plataforma criptografada, como o Protonmail ou — meu preferido — Tutanota . De fato, evitem ao máximo usar qualquer serviço da Google, inclusive seu mecanismo de busca.

É isso e que Oxalá nos proteja.


Fonte aqui

Para além do Urban, o mundo dos cowboys

(José Soeiro, in Expresso Diário, 03/11/2017)

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Nunca fui ao Urban Beach. Mas tendo em conta os episódios de violência e de racismo permanentes (entre os quais o denunciado por Nélson Évora) e o conteúdo das dezenas de queixas apresentadas só este ano, a decisão tomada esta madrugada pelo Governo de encerrar o espaço é um exemplo de ação e de sanidade. Não basta que, de cada vez que vem a público mais um caso deste tipo, a direção do estabelecimento diga que o “abomina” até que aconteça a próxima agressão. É preciso pôr um travão a esta atrocidade e acabar com esta intolerável impunidade. Mas seria bom se a indignação que justamente sentimos pudesse ter consequências para além do Urban Beach.

Quem não se lembra de alguma vez ter sido no mínimo complacente com essas ocasiões de intervalo na lei que são os momentos em que se espera à porta de uma discoteca para entrar? Quantos não se lembrarão de alguma vez terem sido simultaneamente vítimas e cúmplices da arbitrariedade no exercício desse pequeno poder de selecionar quem entra e quem não entra, onde intervêm com frequência os mais preconceituosos e miseráveis critérios, não apenas racistas, mas também misóginos (as mulheres tratadas como uma “mais-valia” porque são o “isco” que atrairá os clientes masculinos), e onde abundam observações repugnantes de alguns porteiros sobre as pessoas que se amontoam à porta dos estabelecimentos, perante o silêncio conivente ou calculista de quem ouve e ignora enquanto aguarda a sua vez para entrar?

Não, não será sempre assim, é verdade. Mas a impunidade começa neste pequeno poder sem regra nem lei. E estende-se depois às práticas de intimidação e às agressões perpetradas por agentes da segurança privada, uma indústria que foi conquistando um espaço cada vez maior na noite das grandes cidades. E não só na noite.

Aprendi no primeiro ano de sociologia a definição clássica de Estado proposta por Max Weber: a entidade que detém o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. Esse monopólio, atribuído às chamadas “forças de segurança”, pressupõe mecanismos de legitimação (designadamente a lei) e de fiscalização. Ora, ao longo dos últimos anos, assistimos à multiplicação de agentes privados a quem foram delegadas, com cobertura jurídica e até incentivo institucional, funções de segurança e uso da força. Refiro-me, designadamente, ao crescimento da segurança privada e de pavorosas indústrias como a das “cobranças difíceis”, cuja expansão durante o período da austeridade foi retratada de forma pungente no filme “São Jorge”, de Marco Martins (com uma interpretação absolutamente notável de Nuno Lopes). No caso destas últimas, estamos mesmo perante a usurpação de uma competência – a cobrança de créditos – que pela lei devia ser exclusiva de advogados e solicitadores, mas que foi entregue, por vezes com o amparo dos Tribunais, a empresas que recorrem a métodos inaceitáveis num Estado democrático: a intimidação de familiares e amigos dos devedores, a ameaça e a coação verbal – com mensagens agressivas, carros estacionados à porta, visitas a meio da noite –, a violência física.

Estamos perante um fenómeno grave ao qual não se tem dado a devida importância. É certo que a fiscalização aumentou. De 8.341 ações de fiscalização ao setor da segurança privada em 2015, passamos para 12.159 no ano 2016, com mais de 26 mil pessoas controladas, cerca de duas mil infrações identificadas, 123 crimes detetados e 39 pessoas detidas. Mas não chega. É o próprio Relatório de Segurança Interna que, na página 75, refere que “os grupos violentos e organizados continuam a promover os seus ilícitos criminais procurando, sempre, instrumentalizar sectores de atividade que lhes permitam obter proventos económicos elevados. A atividade de segurança privada, sobretudo aquela que é desenvolvida no contexto de diversão noturna, tem consolidado, ao longo dos últimos anos, o seu perfil atrativo para a infiltração deste tipo de grupos”.

A ação decidida neste caso da Urban Beach é, evidentemente, um bom começo. Mas há um mundo inteiro de impunidade que resulta de termos aceitado a proliferação de um negócio privado da segurança e dos seus subprodutos que têm sido, demasiadas vezes, viveiros de preconceitos, de discriminação, de violência e de criminalidade.

Evidentemente não se podem fazer generalizações sobre o setor de vigilância, onde muitos trabalhadores pacíficos fazem bem o seu trabalho, apesar das condições de precariedade que proliferam Mas há, de facto, todo um universo de cowboys que é incompatível com o Estado democrático e com as suas regras básicas.

Seguranças privados a defender quartéis: a “contenção” que privatiza o Estado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/07/2017)

Autor

                           Daniel Oliveira

A polémica em torno de Tancos trouxe para a imprensa uma informação que, apesar de ser pública há bastantes anos, nunca mereceu qualquer debate político: as Forças Armadas contratam empresas privadas para garantir a segurança de instalações militares tão sensíveis como o quartel-general da força naval da NATO. Para além do absurdo de termos as Forças Armadas a contratar empresas para fazer aquilo que é supostamente a sua especialidade, este facto levanta evidentes problemas à segurança nacional e até à soberania do Estado. Se andarmos por muitos serviços públicos reparamos, aliás, que temos estas empresas de segurança a cumprirem cada vez mais funções, incluindo atendimento ao público. Mas saber que também cumprem funções militares deveria ser um sinal de alerta para começar um verdadeiro debate nacional.

Segundo a Associação Nacional de Sargentos, há uma relação direta e temporal entre a contratação de empresas de segurança privada e as políticas de “contenção de despesa” que têm sido aplicadas no Estado. Trata-se de uma privatização encapotada de funções de soberania. Sempre que falamos de privatizações dos serviços públicos imaginamos um processo formal, como foi a privatização dos aeroportos, do monopólio da distribuição de eletricidade (REN) ou dos Correios. Mas há uma privatização lenta e invisível conseguida por via das regras orçamentais que levam a formas menos pesadas (e com menos garantias) de contratação de serviços ou a Parcerias Público-Privado que entregam a privados o esforço do investimento.

Como se vê pela contratação de empresas para garantir a segurança de instalações militares por falta de recursos próprios das Forças Armadas, a privatização de todas as funções do Estado está inscrita no DNA das chamadas “reformas estruturais” e da “contenção orçamental”

Esta privatização invisível das funções do Estado não tem nem terá limites e levará, na prática, ao fim de um Estado autónomo dos negócios privados. Da Segurança Social (vejam “I, Daniel Blake”) à educação (foi esse o debate em torno dos colégios com contratos de associação), da saúde às prisões (existem nos EUA). Até acabarmos por, de uma vez por todas, privatizar a democracia.

Muitos preferem discutir este caminho concentrando o debate na corrupção. É o mais fácil. Sendo um assunto relevante, a corrupção é uma consequência: a tomada do Estado pelo poder económico não podia, pela sua natureza, deixar de promover a compra dos decisores políticos. Mas, como se vê pela contratação de empresas privadas para garantir a segurança de instalações militares por falta de recursos próprios das Forças Armadas, esta privatização não resulta apenas de decisões circunstanciais erradas. Ela está inscrita no DNA das chamadas “reformas estruturais” e da “contenção orçamental”.

Seguranças privados a guardar quartéis é apenas o inicio deste novo mundo em que todas as funções do Estado serão entregues a empresas. Não é preciso que ninguém o decida. Basta tirar ao Estado todos os instrumentos para garantir o seu funcionamento. O saque vem depois.


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