Uma ronda pela imprensa conservadora e espanholista sedeada em Madrid, dá bem conta da crise de convicções gerada pela impossibilidade de apoiar a acção criminosa de Rajoy.
Até os conservadores se perguntam: – se o referendum não existia, para quê intervir assim?
Porque o que estava em causa não era e não podia ser o direito ou o legalismo. Isso oporia, como sempre e apenas, os juristas das liberdades aos juristas das proibições, ante o papaguear teatral dos idiotas das minutas na Procuradoria (ou fiscalia) de idiotas.
O que estava em causa, o que está em causa, é a mentalidade.
Essa coisa realmente imunda que fez um polícia castelhano atirar uma mulher uma mulher catalã pela escada abaixo e, caída esta no chão, saltar-lhe em cima, com equipamento anti-motim, a pés juntos e com balanço – sem que consigamos ver se a pobre mulher foi atingida no abdómen, ou no tórax – conduta que não pode deixar de valer como homicídio na forma tentada. O que estava em causa era esta provocação soez, que feriu mais de novecentas pessoas absolutamente pacíficas e que nenhum gesto fizeram de reacção violenta, nem em auto-defesa, como certamente se pretendia, talvez para haver pretexto para as matar.
O que está em causa é – como lhe chamou e bem o homem do Podemos – o critério de um doente mental, corrupto e incendiário. E mais um reizinho de opereta, incapaz de reagir como Comandante em Chefe diante dos abusos de uma força com competências, estatuto, equipamento e treino militar como a Guardia Civil.
O que está em causa também é – como ignorá-lo ? – a contenção e coragem generalizadas numa população politizada em altíssimo (e nobilíssimo) grau, que deixou às bestas as suas jaulas de bestas, aos criminosos o seu papel de criminosos, à vileza o destino ex terminus que lhe cabe.
Nem os conservadores espanhóis e espanholistas – independentemente da oposição à independência catalã – sabem o que dizer diante disto. Uma cronista no ABC fala mesmo em cegueira, recorrendo a citações desse escritor que os portugueses conservadores renegam – insultantemente – e os espanhóis tomam, honram e citam como seu: Saramago.
Uma posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir nos seguintes pressupostos.
O referendo da Catalunha do próximo domingo vai ficar na história da Europa, e certamente pelas piores razões. Não vou abordar aqui as questões de fundo, as quais podem ser lidas, consoante as perspectivas, como uma questão histórica, territorial, de colonialismo interno ou de autodeterminação. São estas as questões mais importantes, sem as quais não se compreendem os problemas actuais. Sobre elas tenho uma modesta opinião. Aliás, é uma opinião que muitos considerarão irrelevante porque, sendo português, tenho tendência para ter uma solidariedade especial para com a Catalunha. No mesmo ano em que Portugal se libertou dos Filipes, 1640, a Catalunha fracassou nos mesmos intentos. Claro que Portugal era um caso muito diferente, um país independente há mais de quatro séculos e com um império espalhado por todos os continentes. Mas, apesar disso, havia alguma afinidade nos objectivos e, aliás, a vitória de Portugal e o fracasso da Catalunha estão mais relacionados do que se pode pensar. Talvez seja bom lembrar que a Coroa de Espanha só reconheceu a “declaração unilateral” de independência de Portugal 26 anos depois.
Acontece que, sendo essas as questões mais importantes, não são lamentavelmente as mais urgentes neste momento. As questões mais urgentes são as questões da legalidade e da democracia. Delas me ocupo aqui por interessarem a todos os democratas da Europa e do mundo. Tal como foi decretado, o referendo é ilegal à luz da Constituição do Estado espanhol. Em si mesmo não pode decidir se o futuro da Catalunha é dentro ou fora da Espanha. O Podemos tem razão ao declarar que “não aceita uma declaração unilateral de independência”. Mas a complexidade emerge quando se reduz a relação entre o jurídico e o político a esta interpretação.
Nas sociedades capitalistas e assimétricas em que vivemos há sempre mais de uma leitura possível das relações entre o jurídico e o político. A diferença entre essas leituras é o que distingue uma posição de esquerda de uma posição de direita contra a declaração unilateral de independência. Uma posição de esquerda sobre as relações entre o jurídico e o político assentaria nos seguintes pressupostos.
Primeiro, a relação entre democracia e direito é dialéctica e não mecânica. Muito do que consideramos legalidade democrática num certo momento histórico começou por ser uma ilegalidade cometida como aspiração a uma democracia melhor e mais ampla. Os processos políticos têm de ser analisados em toda a sua dinâmica e amplitude e não podem ser reduzidos à conformidade ou não com a lei do momento.
Segundo, os governos de direita neoliberal têm pouca legitimidade para se arvorarem em defensores estritos da legalidade, porque as suas práticas assentam frequentemente em sistemáticas violações da lei e da Constituição. Não me refiro apenas à corrupção. Refiro-me, no caso espanhol, por exemplo, à violação da lei da memória (contra os crimes do franquismo), do estatuto das autonomias no que respeita às transferências financeiras e investimentos conjuntos, ou da garantia constitucional do direito à moradia. Refiro-me também à aplicação de medidas de excepção sem prévia declaração constitucional do estado de excepção. A esquerda deve ser cuidadosa em não mostrar cumplicidade com esta concepção da legalidade.
Terceiro, a desobediência civil e política é um património inalienável da esquerda. Sem ela, por exemplo, não teria sido possível há uns anos o movimento dos indignados e as perturbações na ordem pública que causou. De uma perspectiva de esquerda, também a desobediência tem de ser avaliada dialecticamente, não apenas pelo que é agora mas pelo que significa como investimento num futuro melhor. Tal avaliação não compete exclusivamente aos que desobedecem (e que normalmente pagam um alto preço por isso) mas a todos os que podem beneficiar no futuro. Ou seja, a pergunta fundamental é esta: pode o acto de desobediência contribuir com grande probabilidade para que no futuro a comunidade política no seu conjunto seja mais justa e mais democrática?
Quarto, o referendo da Catalunha configura um acto de desobediência civil e política e, como tal, não pode ter directamente os efeitos políticos que se propõe. Mas isto não quer dizer que não tenha outros efeitos políticos legítimos. Pode mesmo querer dizer que é a condição sine qua non para que os seus efeitos políticos ocorram no futuro uma vez respeitadas as necessárias mediações jurídicas e políticas. O movimento dos indignados não conseguiu realizar os seus propósitos de “democracia real já!”, mas não restam dúvidas de que, graças a ele, a Espanha é hoje um país mais democrático. A emergência do Podemos, de outros partidos de esquerda autonómicos e das Mareas (movimentos de cidadania) são uma prova, entre outras, disso.
A partir destes pressupostos, uma posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir no seguinte. Primeiro, declarar inequivocamente que o referendo é ilegal e que não pode produzir os efeitos que se propõe (declaração feita). Segundo, declarar que isso não impede que o referendo seja um legítimo acto de desobediência e que, mesmo sem ter efeitos jurídicos, os catalães têm todo o direito de se manifestar livremente no referendo. E esta manifestação é, em si mesma, um acto político democrático de grande transcendência nas circunstâncias actuais (declaração omitida).
Esta segunda declaração seria a que verdadeiramente distinguiria uma posição de esquerda de uma posição de direita. E teria as seguintes implicações. A esquerda denunciaria o Governo nas instâncias europeias e demandá-lo-ia judicialmente nos tribunais europeus por violar a Constituição ao aplicar medidas de estado de excepção sem passar pela sua declaração legal. A esquerda sabe que a cumplicidade de Bruxelas com o governo central se deve exclusivamente ao facto de o governo pertencer à direita neoliberal. E também sabe que defender a lei sem mais é moralista e de nenhum efeito, uma vez que, como referi, esta direita só respeita a lei (e a democracia) quando serve os seus interesses. A esquerda organizar-se-ia para viajar em massa e a partir das diferentes regiões à Catalunha no domingo para presencialmente apoiar nas ruas e nas praças os catalães no exercício pacífico do seu referendo e ser testemunha presencial da eventual violência repressiva do Governo central. Procuraria obter a solidariedade de todos os partidos de esquerda da Europa, convidando-os a viajarem até Barcelona e a serem observadores informais do referendo e da violência repressiva, se ela viesse a ocorrer. Manifestar-se-ia pacífica e indignadamente (repito, indignadamente) pelo direito dos catalães a um acto público pacífico e democrático. Documentaria todas as violações da legalidade e apresentaria queixa nos tribunais. Se o referendo fosse violentamente impedido seria claro que o tinha sido sem qualquer cumplicidade da esquerda.
No dia seguinte ao referendo, de nulo efeito jurídico e qualquer que fosse o resultado, a esquerda estaria numa posição privilegiada para ter um papel único na discussão política que se seguiria. Independência? Mais autonomia? Estado federal plurinacional? Estado livre associado, distinto da caricatura que tragicamente Porto Rico representa? Todas as posições estariam na mesa e os catalães saberiam que não precisariam das forças de direita locais, as quais historicamente sempre se conluiaram com Madrid contra as classes populares da Catalunha, para fazer valer a posição que a maioria entendesse ser melhor. Ou seja, os catalães e os europeus e os democratas do mundo conheceriam então uma nova possibilidade de ser de esquerda numa sociedade democrática plurinacional. Seria uma contribuição dos povos e nações de Espanha para a democratização da democracia em todo o mundo.
As instituições europeias não se deviam surpreender com os caminhos para um poder cada vez mais centralizado que a Turquia está a trilhar. Afinal, se bem que não se possa fazer o contrafactual, é de supor que se a Europa tivesse aceite o pedido de adesão da Turquia à União, que há exatamente 30 anos está em cima da mesa, talvez o regime de Ancara não estivesse a tornar-se cada vez menos democrático.
A Turquia apresentou o seu pedido de adesão à então Comunidade Económica Europeia em 14 de abril de 1987 mas já desde o ainda mais longínquo ano de 1963 que Ancara foi tentando desenvolver relações mais estreitas com as instituições europeias. Em 1995 assinou um acordo de união aduaneira com Bruxelas e, a 12 de dezembro de 1999, foi reconhecida oficialmente como candidata. Em 3 de outubro de 2005, foram iniciadas as negociações formais para a plena adesão da Turquia à União Europeia, mas desde aí tem sido manifesta a falta de vontade de alguns países europeus, com a Alemanha à cabeça, para aceitar a Turquia no clube.
Na verdade, os direitos de voto de cada país nas instituições comunitárias estão ligados ao número dos seus habitantes – e a Turquia, com 75 milhões, colocar-se-ia quase no mesmo patamar que a Alemanha (80 milhões) e à frente da França (66 milhões) e de Itália (60 milhões), tendo direito a mais deputados no Parlamento Europeu e a mais votos que Paris e Roma em todas as instâncias comunitárias.
É de supor que se a Europa tivesse aceite o pedido de adesão da Turquia à União, que há exatamente 30 anos está em cima da mesa, talvez o regime de Ancara não estivesse a tornar-se cada vez menos democrático
E assim, por manifesto cálculo político, os governos europeus da União foram encanando a perna à rã, arrastando os pés e o processo, fazendo que andavam mas não andavam, esperando não se sabe bem o quê – que a Turquia desistisse ou que, de repente, ficasse com muito menos população ou que acontecesse uma explosão demográfica nos países da União.
E entretanto, as correntes mais laicas e moderadas turcas iam pouco a pouco perdendo posições para setores mais radicalizados, que se foram cristalizando na sociedade e que ganharam um novo e decisivo avanço com a estranhíssima tentativa de golpe de Estado de 15 de Julho de 2016, esmagada pelas tropas leais ao presidente Recep Erdogan. A partir daí, Erdogan não só eliminou toda a oposição, como encerrou dezenas de órgãos de comunicação e acaba de vencer, embora pela margem mínima e com evidentes sinais de fraude, o referendo que lhe vai permitir eternizar-se no poder até 2029 e reintroduzir a pena de morte.
Ao fazê-lo, Erdogan dá um sinal claro de que desistiu da adesão do seu país à União Europeia, que se fartou do arrastamento do processo e que não acredita que ele algum dia venha a ocorrer. Mais: ele sabe que é uma condição “sine qua non” para que um país seja membro da EU que o seu regime seja democrático parlamentar e que não aplique a pena de morte a quaisquer tipo de crimes.
Ao reafirmar a defesa da pena de morte, o presidente turco está a dar um sinal claro de que deixou de contar com a EU como aliada e que vai procurá-los noutro local do globo. A questão é onde.
Na verdade, apesar da Turquia pertencer à NATO, os Estados Unidos não são um amigo predileto. Com a Rússia as relações também não são sólidas. Nem com Israel. Resta saber para onde se irá voltar Erdogan – e se a tentação do poder absoluto não o levará a ficar pouco a pouco isolado interna e externamente.