(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/02/2020)

(Ó Miguel, em relação ao ponto 1, sobre a eutanásia, parece-me que andaste distraído à brava. Agora houve debate, e não foi pouco, tal como já tinha havido em 2018 quando a lei chumbou na AR. Sobre a tua pergunta: “Qual a legitimidade de 230 portugueses votarem esta matéria em nome de outros 10 milhões”, fico estarrecido por não saberes a resposta: É a democracia representativa, estúpido.
Comentário da Estátua de Sal, 22/02/2020)
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1 Não percebo se algum dos senhores deputados ou alguém próximo está em fase terminal de vida e em grande sofrimento, em termos que tornassem urgente a votação de uma lei sobre a eutanásia. Mas, mesmo sendo o caso, essa particular urgência não se adequa à pressa de legislar em matéria tão sensível sem que previamente estivessem amplamente debatidas e, tanto quanto possível, esclarecidas, e depois meditadas, todas as questões envolvidas: do ponto de vista ético, clínico, jurídico, metodológico. E, salvo melhor opinião, não o estavam: eu, por exemplo, embora tenha uma posição de princípio favorável, não me considero suficientemente esclarecido e não sei se sinta inveja ou pavor dos 230 deputados que não tiveram dúvidas em votar, aparentemente todos cabalmente esclarecidos.
E aí chegamos à segunda questão que se coloca: com que legitimidade é que 230 portugueses votam esta matéria em nome de 10 milhões de outros? Acaso o estatuto de deputados lhes confere uma infalibilidade garantida em assuntos de consciência individual ao ponto de não terem de se preocupar em saber a opinião de quem os elegeu? Com que fundamento podem presumir que a sua vontade maioritária, seja ela qual for, representa a vontade maioritária dos portugueses: será com o mesmo fundamento e a mesma presunção com que há 20 anos apostaram erradamente que a maioria dos portugueses era a favor da regionalização? Ou, pelo contrário, porque, tal como os regionalistas agora temem repetir o referendo, também os defensores da eutanásia temiam submetê-la ao voto popular?
Não defendo que tudo seja referendável — os direitos fundamentais, por exemplo, não podem sê-lo. Mas questões como a regionalização ou questões de consciência individual, como esta, têm de o ser, sob pena de estarmos a contribuir cada vez mais para aquilo que todos dizem querer evitar: o afastamento dos cidadãos da política. Também concordo que a exigência de que uma maioria de recenseados vá às urnas votar para que um referendo se torne vinculativo é talvez pedir demais num país de abstencionistas. Mas reveja-se a Constituição nesse ponto, e, entretanto, discuta-se melhor o assunto e esclareçam-se melhor as pessoas, e depois faça-se o referendo. É melhor do que legislar a mata-cavalos só para colocar mais uma medalha no já mais do que fracturado peito do Bloco de Esquerda.
2 Reflectindo as opiniões de muita gente cheia de boas intenções, o “professor” Rui Tavares deu esta quarta-feira no “Público” uma lição a todos a quem possa interessar sobre as várias formas e pretextos para fingir que o deputado André Ventura, do Chega, não existe. Ou, se existe, deve fazer-se de conta que não existe, tal como ele, que nem sequer lhe pronuncia o nome, e sobretudo não lhe concedendo, “em nome das audiências ou do dinheiro” (!?), a possibilidade de intervir em “polémicas” ou “plataformas” onde o inexistente possa “sequestrar o debate”. Ora bem. Eu cresci habituado a ver as coisas de outra maneira.
Em primeiro lugar, passei a minha infância e parte da juventude num país chamado Portugal, onde havia uma coisa chamada Censura, outra coisa chamada PIDE e outras coisas com nomes diversos, mas todas cumprindo uma mesma função: fazer com que no espaço público ninguém cometesse o crime de, cito, “professar ideias contrárias à ordem pública vigente”. Não sei porquê, ficou-me desde então uma repulsa instintiva por tudo o que cheire a tentações ou tentativas de reprodução de métodos semelhantes, ainda que bem mais democráticos, para chegar a fins semelhantes, ainda que bem mais louváveis. É uma chatice, mas os fins nunca justificam os meios. E nunca é nunca. Goste-se ou não, o deputado André Ventura foi eleito por uma parte de cidadãos portugueses para o Parlamento e para os representar, ao lado de todos os outros que lá estão e com os mesmos direitos que eles. Claro que há limites, que são os que decorrem da lei e da Constituição — a que deve obediência. Podemos suspeitar que ele não diz tudo o que verdadeiramente pensa (e, pelo contrário, até podemos suspeitar que nem sequer é de extrema-direita e que apenas aproveita um espaço político vazio até aqui para se projectar). Mas o que interessa não é o que ele pensará em segredo, mas o que diz ou escreve em público, e, até agora, não o ouvi dizer ou escrever nada que ofenda princípios constitucionais inquestionáveis. E, se e quando o fizer, outros têm o dever funcional de intervir por força da lei, e não por repulsa pelas suas ideias políticas. Não sei assim qual é o argumento de autoridade democrática que nos levará a todos — e, desde logo, começando necessariamente pelo próprio Parlamento — a fazer de conta que André Ventura não existe.
Em segundo lugar, e falando como jornalista, o que o “professor” Rui Tavares me recomenda é, pura e simplesmente, deontologicamente inaceitável. Os jornalistas não têm um índex de gente entrevistável e não entrevistável e, pelo contrário, e porque o mundo, infelizmente, não é feito só de gente boazinha, acontece — e aconteceu-me a mim — já ter tido de entrevistar políticos fascistas, estalinistas, corruptos, desonestos, ladrões e até assassinos. Porquê? Porque, às vezes, são notícia. E assim como não se escolhem os políticos que os outros elegem, também não se escolhem as notícias que acontecem e os protagonistas delas. Que mundo distorcido em que nos propõe viver Rui Tavares!
Com que legitimidade é que 230 portugueses votam esta matéria da eutanásia em nome de 10 milhões de outros?
Enfim, ao argumento democrático e ao argumento jornalístico eu acrescento talvez o mais importante de todos: o argumento político. A tese de que ostracizar e marginalizar os políticos de extrema-direita, os arautos do racismo, do ódio ao estrangeiro e ao outro, os defensores dos abusos da autoridade e das sociedades securitárias é a melhor forma de acabar com eles ocupa uma vasta galeria de rotundos e trágicos fracassos. Podíamos começar já pelo VOX, aqui ao lado, em Espanha, ou recuar ao nascimento da FN, em França, onde a concertada marginalização de Jean-Marie Le Pen, e depois da sua filha, Marine Le Pen, não só não evitou que o Front National crescesse até se tornar a segunda força política em França, como só por uma unha negra não levou Marine até ao Eliseu. Mas o mais eloquente exemplo de todos é o de Jair Bolsonaro, no Brasil. Chegou à presidência sem sequer ter um partido real como base eleitoral de apoio e, antes que a imprensa o ostracizasse, tratou ele próprio de desaparecer de cena, como estratégia de tomada do poder. À boleia de um atentado, real ou fictício, Bolsonaro, absolutamente impreparado e incapaz de enfrentar os adversários em debates ou jornalistas independentes em entrevistas, fechou-se em casa durante toda a campanha eleitoral e ganhou as eleições no WhatsApp — onde um grupo de marqueteiros superprofissionais escrevia por ele e distribuía cientificamente mensagens verdadeiras e falsas para destinatários seleccionados pelo célebre algoritmo que já havia ganho as eleições para Trump e o ‘Brexit’ para Farage e Boris Johnson. Imaginar que se consegue silenciar um político deixando-o de fora dos media, numa época em que um número assustadoramente crescente de pessoas se está a mudar da informação de referência para a livre manipulação das redes sociais, é pura imbecilidade. Pelo contrário — e o case study de Bolsonaro provou-o bem —, a única forma de os enfrentar é combatê-los no terreno da democracia, do debate de ideias, do confronto com a imprensa livre e séria. E também se não for assim não vale a pena: o objectivo final está perdido à partida.
3 Tive o cuidado e a paciência de estudar o dossiê sobre o novo aeroporto de Lisboa na Ota: um absurdo, que, entre outras coisas, envolvia arrasar uma montanha e plantar milhares de estacas de betão para sustentar a pista. Depois, estudei o dossiê de Alcochete: um atentado ambiental, explicado ao pormenor. Por exclusão de partes, restava o Montijo, que já lá estava e que parecia mais rápido de executar, mais barato e mais lógico. Não sendo o Montijo, e porque não somos assim um país tão grande, só vejo como alternativa uma coisa que até não me desagradava nada, mas que nenhuma das “forças vivas” da nação quereria: declarar Lisboa esgotada para o turismo, e o aeroporto da Portela suficiente e preenchido para aquilo que é o interesse “sustentável”, como agora fica bem dizer, da cidade e do país. Porém, não sendo isso o interesse sustentável dos imensos interesses a sustentar, parece que é preciso um novo aeroporto. Mas, como nenhuma grande obra pública em Portugal é de consenso pacífico, vai por aí uma imensa controvérsia acerca dos dois grandes males de que padecerá o Montijo: a proximidade à água e as aves do estuário do Tejo. A primeira objecção tem que ver com a expectável subida do nível das águas do mar por efeito do aquecimento global; a segunda, com a protecção das aves habitantes da Rede Natura da zona do futuro aeroporto. 26 mil preocupados cidadãos holandeses já assinaram uma petição em defesa do maçarico-de-bico-direito, que, consta, será a principal ave ameaçada pelo futuro aeroporto do Montijo. Olhando para trás, isto é grave: os holandeses têm uma tendência em preocupar-se com os nossos assuntos. Foi assim com a cultura da cana-de-acúcar no Pernambuco, com a borracha da Amazónia ou, mais recentemente, com o dinheiro que gastávamos em copos. Tão antigo e atento desvelo deveria manter-nos alerta.
Todavia, há semanas fui almoçar à ilha de Faro, onde nunca tinha ido. Ora, eu não percebo nada da subida do nível das águas, do maçarico-de-bico-direito e menos ainda de aeroportos. Mas vi isto: se no Montijo a água estará a 4,5 metros da pista, em Faro está a 1 ou 2 metros; quando o Montijo for inundado, já o aeroporto e a cidade de Faro terão sido — e o Terreiro do Paço, a Baixa de Lisboa, os Jerónimos, Cascais, Setúbal, a Ribeira do Porto, metade das cidades do Algarve e das cidades e vilas costeiras do país. Depois, às tantas, vi um avião (por sinal holandês) levantar voo da pista, rente à água, logo depois seguido por vários outros. E 20, 50, 100 metros adiante, pousadas na água, estavam milhares de aves, naquilo que é, não uma Rede Natura, mas sim um parque natural — um dos raros que temos. E sabem o que aconteceu? Nada: os aviões levantaram voo por cima deles e os pássaros nem se mexeram. Repito: eu não percebo nada disto, mas vi. Quem souber que explique.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia