A RTP e a Ryanair

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 29/08/2021)

Não é a primeira vez que o noticiário da televisão pública serve de plataforma para as aleivosias do patrão da Ryanair. Mas, no passado dia 23, no noticiário da RTP 1 das 13 horas (às 13h33 para ser preciso), os portugueses devem ter ficado chocados e ofendidos com o que ouviram. Na sua mais recente conferência de imprensa, o patrão da Ryanair disparou mais uma diatribe contra a TAP, e o noticiário deu-lhe todo o espaço, sem sequer fazer um contraditório credível. O padrão de comportamento deste senhor é conhecido em toda a Europa, mas em nenhum país tem conseguido tanta publicidade gratuita como em Portugal e, pasme-se, oferecida pela televisão pública. Compreende-se que zele pelo seu negócio, o que não se compreende é que possa fazê-lo servindo-se de um canal de televisão que é pago pelos impostos dos cidadãos portugueses.

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O modo como foi noticiada esta conferência de imprensa ofende todos os princípios de ética mediática. São feitas afirmações arbitrárias e de má-fé que rondam terrorismo informativo e que são apresentadas sem qualquer contraditório. Distingo três. A primeira é noticiada em transmissão directa: “O governo português não conhece ao pormenor como a TAP funciona diariamente, só sabe que precisa de milhares de milhões desviados dos hospitais portugueses e das escolas portuguesas”. Qual é prova que este senhor tem para dizer que os milhões que não foram para os hospitais e escolas se deveu ao facto de terem de ir para a TAP? Como sabe que o governo não conhece em detalhe o que se passa na TAP? Com que legitimidade o faz? E como é possível que o diga numa televisão pública que é paga por dinheiro público, o qual, seguindo a lógica do empresário, podia igualmente ser destinado aos hospitais e escolas?

Deixar que o empresário diga isto sem contraditório é indicar subliminarmente que quem redigiu o noticiário talvez não discorde da ideia. De novo, é perfeitamente legítimo que tenha essa opinião, mas nesse caso deve mudar de estação. Terá a RTP noção que muito do que o redactor ou redactora insinua sobre a TAP poderia ser dito pelos proprietários da SIC e TVI sobre… a RTP? Sabemos que há interesses legítimos, mas felizmente minoritários, em que a televisão pública seja privatizada. Os seus portadores devem ter sorrido ao ouvir esta notícia.

A segunda afirmação, talvez ainda mais aleivosa por ser transmitida em discurso indirecto, é a seguinte: “Michael O’ Leary não poupou críticas ao casamento da TAP com o ministério de Pedro Nuno Santos”. Tenha ele dito esta frase ou tenha ela sido uma reconstrução editorial (ficamos sem saber), esta afirmação contém duas insinuações que visam degradar duplamente a posição do governo. Por um lado, a ideia do casamento implica um negócio privado entre dois contratantes para fins de interesse recíproco privado. Ora, o que está aqui em causa é um interesse público que foi definido por um governo legitimamente eleito para o fazer. Tratou-se de assumir uma posição de controlo numa companhia aérea em nome do interesse nacional, à semelhança do que acontece em outros países do mundo. Para mais, foi a solução encontrada para uma empresa cuja privatização lesou de tal maneira o interesse nacional que configurou um acto de privataria. Pode discutir-se se foi uma boa decisão, mas se foi uma má decisão, a solução não é o divórcio, são as consequências eleitorais para o partido que sustentou o governo que a tomou. Por outro lado, insinua-se, o casamento não foi com o governo, foi com um ministério concreto dirigido por um dirigente político concreto com um perfil político concreto e bem conhecido. Neste passo da notícia, a demonização do governo usou como dispositivo a demonização do seu ministro mais à esquerda. Dupla demonização.

A terceira afirmação é a seguinte: “Se o governo português nos oferecesse a TAP gratuitamente, iriamos educadamente recusar. Não queremos algo que perdeu dinheiro durante 75 anos seguidos, que precisa de um resgate do Estado de cinco ou de seis em seis anos, que passa de uma crise para outra… Não, obrigado”. Esta afirmação, totalmente descontextualizada, atinge o paroxismo do insulto aos portugueses que ao longo da vida da TAP puderam unir territórios, famílias e afectos em condições que nenhuma empresa privada poderia ter assumido. Contém uma retórica de degradação da TAP que nos remete para além da manipulação da realidade própria da propaganda política de baixo calibre ético.

O patrão da Ryanair está livre de expressar as suas aleivosias, e certamente assim tem procedido noutros contextos, mas duvido que em algum outro país tenha encontrado uma caixa de ressonância tão amplificadora como na televisão pública portuguesa. A ideia que este senhor quis transmitir através da televisão paga por nós é que os portugueses vivem numa república das bananas.

Este incidente de jornalismo degradado ao nível da propaganda política talvez pudesse ser fruto de um acidente redactorial. Mas na verdade parece ser um sintoma de algo mais grave e profundo que deve merecer a atenção das entidades profissionais e públicas que regulam o jornalismo. Quem observou com atenção o modo como foram organizados e conduzidos os últimos debates presidenciais não pode ter deixado de suspeitar, com gosto ou amargura, dependendo das suas opções políticas, que poderá ter havido certo enviesamento a favor de forças políticas de direita ou mesmo de extrema-direita. Como se aproximam novos processos eleitorais, é bom que os portugueses estejam precavidos.

Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra


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Democracia e autoritarismo

(Boaventura Sousa Santos, in Jornal Tornado, 24/07/2021)

Boaventura Sousa Santos

As trombetas da guerra fria voltaram a soar. O Presidente dos EUA anuncia aos quatro ventos a nova cruzada. Desta vez, os termos parecem diferentes, mas os inimigos são os mesmos – a China e a Rússia principalmente.

Trata-se da “guerra” entre democracias e autoritarismos (ditaduras ou governos de democracia truncada pelo domínio absoluto de um partido). Como de costume, os governos ocidentais e os comentadores de serviço alinharam-se fielmente para o combate. Os portugueses que viveram em idade adulta o tempo da ditadura salazarista não têm qualquer dúvida em distinguir democracia e autoritarismo e em preferir a primeira ao segundo.

Os que nasceram depois de 1974, ou pouco tempo antes, quando não aprenderam dos pais o que foi a ditadura, muito provavelmente também não aprenderam na escola. Estão, pois, disponíveis para confundir os dois regimes políticos. Por sua vez, a realidade de muitos países considerados democráticos mostra que a democracia atravessa uma profunda crise e que a distinção entre democracia e autoritarismo é cada vez mais complexa. Em vários países do mundo estão a ocorrer protestos nas ruas para defender a democracia e lutar por direitos violados, direitos esses quase sempre consagrados na constituição. Muitos destes protestos dirigem-se contra dirigentes políticos que foram eleitos democraticamente, mas que têm exercido o cargo de modo antidemocrático, contra os interesses das grandes maiorias, por vezes frustrando grosseiramente as expectativas dos cidadãos que votaram neles. São os casos do Brasil, Colômbia e Índia, e foram também os casos da Espanha, Argentina, Chile e Equador em anos recentes.

Noutros casos, os protestos visam evitar a fraude eleitoral ou fazer valer os resultados eleitorais, sempre que as elites locais e as pressões externas se recusam a reconhecer a vitória de candidatos sufragados pela maioria. Foi este o caso do México, durante anos, o caso da Bolívia, em tempos recentes, e, agora, o caso do Peru. À primeira vista, há algo de estranho nestes protestos, porque a democracia liberal tem como característica fundamental a institucionalização dos conflitos políticos, a sua solução pacífica no marco de procedimentos inequívocos e transparentes.

Trata-se de um poder político que se conquista, se exerce e se abandona democraticamente, mediante regras consensualizadas. Por que razão, nesse caso, estão os cidadãos a protestar fora das instituições, nas ruas, tanto mais que correm sérios riscos de enfrentar excessiva força repressiva? E o mais intrigante é que os governos de todos os países que mencionei são aliados dos EUA, que com eles querem contar na sua nova cruzada contra o autoritarismo da China e seus aliados.

A perplexidade instala-se

Se, por um lado, é crucial manter a diferença entre democracia e autoritarismo, por outro lado, os traços autoritários das democracias realmente existentes agravam-se cada dia que passa. Vejamos alguns deles. A Rússia prende autoritariamente o dissidente Alexei Navalny; as democracias ocidentais deixam morrer na prisão, por pressão dos EUA, o jornalista Julian Assange, que daqui a algumas décadas receberá provavelmente, a título póstumo, o Prémio Nobel da Paz.

Nos regimes autoritários, a comunicação social não é livre para dar voz aos diferentes interesses sociais e políticos; nas democracias, a preciosa liberdade de expressão está cada vez mais ameaçada pelo controlo dos média por parte de grupos financeiros e outras oligarquias, bem como pelas redes sociais que usam os algoritmos para impedir que ideias progressistas cheguem ao grande público e para permitir que o contrário ocorra com ideias reacionárias. Os governos autoritários eliminam opositores que lutam pela democracia nos seus países; as democracias destroem alguns desses países (Iraque, Líbia) e matam milhares de inocentes para defender a democracia.

Os regimes autoritários eliminam a independência judicial; as democracias promovem perseguições políticas por via do sistema judicial, como dramaticamente ilustrado pela operação Lava-Jato no Brasil. Nos governos autoritários, os líderes não são escolhidos livremente pelos cidadãos; nas democracias é cada vez mais preocupante o modo como os poderes fácticos inventam e destroem candidatos. Nos governos autoritários todos os procedimentos são incertos para que os resultados sejam certos (a nomeação ou eleição dos líderes escolhidos autocraticamente).

Nas democracias vigora o oposto: procedimentos certos para que se obtenham resultados incertos (a eleição dos líderes escolhidos pela maioria). Mas é cada vez mais comum que quem tem poder económico e social tenha também o poder de manipular os procedimentos para garantir os resultados que pretende. Com tal manipulação (fraude eleitoral, financiamento ilegal de campanhas, fake news e discurso de ódio nas redes sociais, etc.), os procedimentos democráticos, supostamente certos, tornaram-se incertos. Com isto, corre-se o risco da inversão da democracia: processos incertos para resultados certos.

Para além destes exemplos, entre muitos outros, é flagrante a dualidade critérios. São governos autoritários e, por isso, hostis, a China, a Rússia, o Irão, a Venezuela; mas não são hostis, apesar de autoritários, a Arábia Saudita, as monarquias do Golfo, o Egipto e, muito menos, Israel, apesar de sujeitar mais de 20% da sua população (os árabes israelitas) à condição de cidadãos de segunda classe, e submeter a Palestina a um regime de apartheid, como recentemente foi reconhecido pela Human Rights Watch.

Por sua vez, as embaixadas e as instituições dos EUA encarregadas de promover “regimes democráticos amigos dos EUA”, e ainda as fundações que o dinheiro dos bilionários alimenta com os mesmos propósitos, acolhem de preferência políticos e partidos de direita, e mesmo de extrema-direita, desde que estes jurem lealdade aos interesses geopolíticos e económicos dos EUA. Na Europa, Steve Bannon, um ex-consultor de Donald Trump, promove forças de extrema-direita, antieuropeístas e católicas conservadoras que se opõem ao Papa Francisco.

De tudo isto resulta uma situação paradoxal: enquanto o discurso da guerra fria exalta a diferença entre democracia e autoritarismo, as práticas das potências hegemônicas não se cansam de reforçar os traços autoritários, tanto das democracias como dos regimes autoritários. Alguém está a enganar alguém. A Europa faria bem se se convencesse de que a nova guerra fria tem pouco a ver com democracia versus autoritarismo. É apenas uma nova fase de enfrentamento entre o capitalismo multinacional dos EUA e o capitalismo de Estado da China (onde a Rússia se vai integrando). É uma luta nada democrática entre um império declinante e um império ascendente. A Europa, excluída pela primeira vez em cinco séculos do protagonismo global, teria todo o interesse em manter uma relativa distância em relação a ambos os antagonistas e prosseguir uma terceira via de relativa autonomia. Bastaria seguir o exemplo dos países do Sul global reunidos na Conferência de Bandung (1955), talvez agora com mais probabilidades de êxito. Bem mais perto de nós, talvez bastasse mesmo ler e seguir as encíclicas do Papa Francisco.


por Boaventura de Sousa Santos, Sociólogo    |   Texto em português do Brasil

Fonte aqui

 


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A esquerda e a Catalunha

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 28/09/2017)

boaventura

Boaventura Sousa Santos

Uma posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir nos seguintes pressupostos.


O referendo da Catalunha do próximo domingo vai ficar na história da Europa, e certamente pelas piores razões. Não vou abordar aqui as questões de fundo, as quais podem ser lidas, consoante as perspectivas, como uma questão histórica, territorial, de colonialismo interno ou de autodeterminação. São estas as questões mais importantes, sem as quais não se compreendem os problemas actuais. Sobre elas tenho uma modesta opinião. Aliás, é uma opinião que muitos considerarão irrelevante porque, sendo português, tenho tendência para ter uma solidariedade especial para com a Catalunha. No mesmo ano em que Portugal se libertou dos Filipes, 1640, a Catalunha fracassou nos mesmos intentos. Claro que Portugal era um caso muito diferente, um país independente há mais de quatro séculos e com um império espalhado por todos os continentes. Mas, apesar disso, havia alguma afinidade nos objectivos e, aliás, a vitória de Portugal e o fracasso da Catalunha estão mais relacionados do que se pode pensar. Talvez seja bom lembrar que a Coroa de Espanha só reconheceu a “declaração unilateral” de independência de Portugal 26 anos depois.

Acontece que, sendo essas as questões mais importantes, não são lamentavelmente as mais urgentes neste momento. As questões mais urgentes são as questões da legalidade e da democracia. Delas me ocupo aqui por interessarem a todos os democratas da Europa e do mundo. Tal como foi decretado, o referendo é ilegal à luz da Constituição do Estado espanhol. Em si mesmo não pode decidir se o futuro da Catalunha é dentro ou fora da Espanha. O Podemos tem razão ao declarar que “não aceita uma declaração unilateral de independência”. Mas a complexidade emerge quando se reduz a relação entre o jurídico e o político a esta interpretação.

Nas sociedades capitalistas e assimétricas em que vivemos há sempre mais de uma leitura possível das relações entre o jurídico e o político. A diferença entre essas leituras é o que distingue uma posição de esquerda de uma posição de direita contra a declaração unilateral de independência. Uma posição de esquerda sobre as relações entre o jurídico e o político assentaria nos seguintes pressupostos.

Primeiro, a relação entre democracia e direito é dialéctica e não mecânica. Muito do que consideramos legalidade democrática num certo momento histórico começou por ser uma ilegalidade cometida como aspiração a uma democracia melhor e mais ampla. Os processos políticos têm de ser analisados em toda a sua dinâmica e amplitude e não podem ser reduzidos à conformidade ou não com a lei do momento.

Segundo, os governos de direita neoliberal têm pouca legitimidade para se arvorarem em defensores estritos da legalidade, porque as suas práticas assentam frequentemente em sistemáticas violações da lei e da Constituição. Não me refiro apenas à corrupção. Refiro-me, no caso espanhol, por exemplo, à violação da lei da memória (contra os crimes do franquismo), do estatuto das autonomias no que respeita às transferências financeiras e investimentos conjuntos, ou da garantia constitucional do direito à moradia. Refiro-me também à aplicação de medidas de excepção sem prévia declaração constitucional do estado de excepção. A esquerda deve ser cuidadosa em não mostrar cumplicidade com esta concepção da legalidade.

Terceiro, a desobediência civil e política é um património inalienável da esquerda. Sem ela, por exemplo, não teria sido possível há uns anos o movimento dos indignados e as perturbações na ordem pública que causou. De uma perspectiva de esquerda, também a desobediência tem de ser avaliada dialecticamente, não apenas pelo que é agora mas pelo que significa como investimento num futuro melhor. Tal avaliação não compete exclusivamente aos que desobedecem (e que normalmente pagam um alto preço por isso) mas a todos os que podem beneficiar no futuro. Ou seja, a pergunta fundamental é esta: pode o acto de desobediência contribuir com grande probabilidade para que no futuro a comunidade política no seu conjunto seja mais justa e mais democrática?

Quarto, o referendo da Catalunha configura um acto de desobediência civil e política e, como tal, não pode ter directamente os efeitos políticos que se propõe. Mas isto não quer dizer que não tenha outros efeitos políticos legítimos. Pode mesmo querer dizer que é a condição sine qua non para que os seus efeitos políticos ocorram no futuro uma vez respeitadas as necessárias mediações jurídicas e políticas. O movimento dos indignados não conseguiu realizar os seus propósitos de “democracia real já!”, mas não restam dúvidas de que, graças a ele, a Espanha é hoje um país mais democrático. A emergência do Podemos, de outros partidos de esquerda autonómicos e das Mareas (movimentos de cidadania) são uma prova, entre outras, disso.

A partir destes pressupostos, uma posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir no seguinte. Primeiro, declarar inequivocamente que o referendo é ilegal e que não pode produzir os efeitos que se propõe (declaração feita). Segundo, declarar que isso não impede que o referendo seja um legítimo acto de desobediência e que, mesmo sem ter efeitos jurídicos, os catalães têm todo o direito de se manifestar livremente no referendo. E esta manifestação é, em si mesma, um acto político democrático de grande transcendência nas circunstâncias actuais (declaração omitida).

Esta segunda declaração seria a que verdadeiramente distinguiria uma posição de esquerda de uma posição de direita. E teria as seguintes implicações. A esquerda denunciaria o Governo nas instâncias europeias e demandá-lo-ia judicialmente nos tribunais europeus por violar a Constituição ao aplicar medidas de estado de excepção sem passar pela sua declaração legal. A esquerda sabe que a cumplicidade de Bruxelas com o governo central se deve exclusivamente ao facto de o governo pertencer à direita neoliberal. E também sabe que defender a lei sem mais é moralista e de nenhum efeito, uma vez que, como referi, esta direita só respeita a lei (e a democracia) quando serve os seus interesses. A esquerda organizar-se-ia para viajar em massa e a partir das diferentes regiões à Catalunha no domingo para presencialmente apoiar nas ruas e nas praças os catalães no exercício pacífico do seu referendo e ser testemunha presencial da eventual violência repressiva do Governo central. Procuraria obter a solidariedade de todos os partidos de esquerda da Europa, convidando-os a viajarem até Barcelona e a serem observadores informais do referendo e da violência repressiva, se ela viesse a ocorrer. Manifestar-se-ia pacífica e indignadamente (repito, indignadamente) pelo direito dos catalães a um acto público pacífico e democrático. Documentaria todas as violações da legalidade e apresentaria queixa nos tribunais. Se o referendo fosse violentamente impedido seria claro que o tinha sido sem qualquer cumplicidade da esquerda.

No dia seguinte ao referendo, de nulo efeito jurídico e qualquer que fosse o resultado, a esquerda estaria numa posição privilegiada para ter um papel único na discussão política que se seguiria. Independência? Mais autonomia? Estado federal plurinacional? Estado livre associado, distinto da caricatura que tragicamente Porto Rico representa? Todas as posições estariam na mesa e os catalães saberiam que não precisariam das forças de direita locais, as quais historicamente sempre se conluiaram com Madrid contra as classes populares da Catalunha, para fazer valer a posição que a maioria entendesse ser melhor. Ou seja, os catalães e os europeus e os democratas do mundo conheceriam então uma nova possibilidade de ser de esquerda numa sociedade democrática plurinacional. Seria uma contribuição dos povos e nações de Espanha para a democratização da democracia em todo o mundo.