A grande derrota da Igreja Católica

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 13/02/2017)

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Passei grande parte da minha vida adulta num país que me condenava a prisão se decidisse interromper uma gravidez indesejada. Cheguei aos 40 anos e ao século XXI sob ameaça, num país que não me reconhecia autonomia para tomar uma das mais pessoais e íntimas decisões.

Mas essa ameaça que pendia sobre mim não era só a de ser presa. Ouso até dizer que não era sobretudo essa – era a de ser forçada, se quisesse interromper uma gravidez e não tivesse meios para ir ao estrangeiro, a recorrer ao mercado negro, a colocar-me nas mãos de curiosos ou de médicos que, se apanhados, além de arriscarem uma pena superior à minha seriam expulsos da Ordem. A ameaça era de morte – e muitas mulheres morreram assim, graças a uma lei dita “pró-vida.”

Mas, reparem: nem a ameaça de morte nem a de danos irreparáveis para a saúde nem a de prisão impediram as portuguesas de abortar. Abortaram sempre. Porque não podiam ou não queriam ter um filho – ou, na maioria dos casos, mais filhos. Pensem na coragem dessas mulheres – as nossas avós, as nossas mães, as nossas filhas. E pensem que perante essa coragem, esse desespero, essa determinação, houve décadas de decisores políticos, médicos e clérigos a dizer que não era assunto, que não tinha importância, que estava bem assim.

Só houve dois motivos para que esta iniquidade, este desrespeito pela vida e pela dignidade das mulheres, tivesse durado tanto numa democracia laica: machismo atávico (oh, tanto) e o receio que os decisores tinham dessa entidade chamada Igreja Católica. Medo de a afrontar, do poder que lhe atribuíam. Medo de que o país fosse aquilo que se diz maioritariamente nos Censos: católico. E assim, cobardes, foram arrastando o assunto até descobrirem uma forma de lavar as mãos: um referendo.

Todas as sondagens, é sabido, davam a vitória esmagadora ao Sim. E ganhou o Não – porque quase toda a gente que iria votar sim achou que o seu voto não fazia falta e estava um fantástico dia de praia nesse 28 de junho de 1998. Aos 34 anos, o meu país dizia-me: não, não tens importância. As mulheres não têm importância. Tive raiva do meu país, nesse dia. Senti por ele, a dobrar, o desprezo que ele sentia por mim. Mas quando sequei as lágrimas e aplaquei a raiva olhei para os números. O Não teve 1 356 754 votos, mais 48 624 que o Sim. Ficámos nesse dia a saber quanto valia, nas urnas, a Igreja Católica: menos de 16% dos eleitores registados. E eu soube que tendo perdido tinha ganhado. Porque quem dependia das urnas iria concluir o mesmo que eu: que o poder da Igreja Católica era um mito. Os portugueses diziam-se católicos mas não ligavam peva ao que os padres diziam.

Quando nove anos depois se repetiu o referendo a percentagem do Não subiu menos de 2%. E perdeu por 696 860 votos. Nessa noite, quando saí da celebração do Altis escrevi no DN: este Sim não é o fim, é o princípio. Foi. Foi o fim do poder da sacristia e dos seus ditados preconceituosos, cruéis e – diga-se – tão anticristãos. Foi início de uma nova era de respeito pelas pessoas.

Dois anos depois, o PS propôs no seu programa eleitoral acabar com a proibição do casamento de pessoas do mesmo sexo. Mais uma vez, houve quem exigisse um referendo. E depois, quando se discutiu a coadoção e a adoção por casais do mesmo sexo. E agora, que se discute a eutanásia. Quem os propõe quer só empatar, não espera ganhá-los. E não é só por causa dos resultados de 1998 e 2007 (ou porque até na Irlanda – a Irlanda, caramba -, em 2015, o casamento das pessoas do mesmo sexo ganhou com 62% dos votos).

O número de pessoas que frequentam as igrejas não cessa de diminuir, e os comportamentos que a Igreja Católica reputa de “errados” e “pecaminosos” – divórcios, contraceção, sexo e coabitação fora do casamento – são esmagadoramente maioritários. Ironia: só um desses comportamentos tem diminuído, a olhos vistos – o número de abortos. Acreditasse eu em deus e gabava-lhe o sentido de humor.

O referendo em Itália tem a chave para o futuro do euro

(Wolfgang Münchau, in Diário de Notícias, 21/11/2016)

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A 5 de dezembro, a Europa pode despertar sob a ameaça imediata da desintegração. Depois do brexit e de Donald Trump, prepare-se para o regresso da crise da zona euro. Se Matteo Renzi, o primeiro-ministro italiano, perder o seu referendo constitucional a 4 de dezembro, será de esperar uma sequência de acontecimentos que irá levantar questões sobre a participação da Itália na zona euro.

As causas subjacentes a esta possibilidade extremamente perturbadora não têm nada a ver com o referendo em si. O mais importante foi o desempenho económico de Itália desde que adotou o euro, em 1999. A produtividade total dos fatores, a parte da produção económica não explicada pelo trabalho e pelo capital, caiu em Itália cerca de 5% desde então, enquanto na Alemanha e na França aumentou cerca de 10%.

A segunda causa foi o fracasso da União Europeia na construção de uma união económica e bancária adequada após a crise da zona euro de 2010-2012 e, em vez disso, ter imposto a austeridade. Se quiser saber por que Angela Merkel não pode ser a líder do mundo livre, não procure mais. A chanceler alemã nem sequer conseguiu liderar a Europa quando era importante que o fizesse.

A combinação desses dois fatores são as maiores causas para o incremento do populismo na Europa. A Itália tem três partidos de oposição, todos eles favoráveis à saída do euro. O maior e mais importante é o Movimento Cinco Estrelas, um partido que desafia a habitual classificação esquerda-direita. O segundo é o Forza Italia, o partido de Silvio Berlusconi, que se tornou ferozmente antieuro depois de o ex-primeiro-ministro ter sido forçado a deixar o cargo, em 2011. E o terceiro é o separatista Lega Nord. Em países democráticos, é comum que os partidos da oposição acabem por chegar ao poder. É de esperar que isso aconteça também em Itália.

O referendo é importante pois poderá acelerar o caminho para a saída do euro. Renzi disse que se demitiria se perdesse, levando ao caos político. Os investidores podem concluir que o jogo acabou. A 5 de dezembro, a Europa poderá despertar sob a ameaça imediata da desintegração.

Em França, a probabilidade de uma vitória de Marine Le Pen nas eleições presidenciais já não é um risco remoto. De todos os candidatos que se assumiram como tal, ela é a que está mais bem preparada. Há alguns que poderiam vencê-la, como Emmanuel Macron, o ex-ministro reformista da Economia, que anunciou a sua candidatura na quarta-feira. Mas ele poderá não chegar à última volta das eleições porque não tem um aparelho partidário. Marine Le Pen prometeu realizar um referendo sobre o futuro de França na UE se for eleita presidente. Se esse referendo levar ao frexit, a UE poderá acabar na manhã seguinte. O mesmo acontecerá com o euro.

Uma saída francesa ou italiana do euro traria o maior incumprimento da história. Os detentores estrangeiros de dívida denominada em euros, italiana ou francesa, seriam pagos em contravalor de liras ou francos franceses. Ambas desvalorizariam. Uma vez que os bancos não têm de manter capital contra a sua participação em títulos de dívida pública, as perdas forçariam muitos bancos europeus a entrar em falência imediata. A Alemanha perceberia então que um enorme excedente em conta-corrente também tem as suas desvantagens. Há uma grande quantidade de riqueza alemã à espera de ser vítima de incumprimento.

Poderá isso ser evitado? Em teoria pode, mas exigiria uma série de decisões tomadas a tempo e na sequência correta. Para começar, Angela Merkel teria de aceitar o que recusou em 2012: um roteiro para uma união orçamental e política plena. A União Europeia teria também de reforçar o Mecanismo Europeu de Estabilidade, o “guarda-chuva” de resgate, que não está pensado para lidar com países do tamanho de Itália ou França.

Será isso, ainda que remotamente, provável? Pense nisto da seguinte forma: se for perguntado à chanceler alemã se ela quer títulos de dívida da zona euro avalizados por todos, ela vai dizer que não. Mas se ela tiver de escolher entre eurobonds e uma saída italiana do euro, a sua resposta poderá muito bem ser diferente. A resposta também dependerá de a pergunta ser feita antes ou depois das eleições alemãs do próximo outono.

No entanto, a minha expectativa não é um colapso da UE e do euro, mas uma saída de um ou mais países, possivelmente de Itália, mas não de França. À luz dos acontecimentos recentes, o meu cenário de referência está agora firmemente assente na escala otimista das expectativas razoáveis.

Itália: "As Bodas do Caos"

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(Jorge Almeida Fernandes, in Público, 05/11/2016)

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Falta um mês para o referendo constitucional italiano de 4 de Dezembro. O “não” está em vantagem, de dois a quatro pontos, dentro da lógica dita “TCR: Todos contra Renzi.” Quando a consulta popular foi anunciada, no fim de 2015, as reformas constitucionais reuniam um vasto consenso. Ao longo dos meses, o referendo tornou-se tema de guerra interpartidária, enquanto mudava o humor dos italianos: hoje, 57% dizem que vão votar a favor ou contra o Governo Renzi e apenas 26 a favor ou contra a revisão constitucional. É um efeito típico dos referendos.

O alarme foi lançado pouco antes do “Brexit” (23 de Junho), quando o “não” começou a subir nas sondagens. Tornou–se tema de debate internacional — na imprensa britânica, alemã, espanhola ou americana, nas capitais europeias e nos meios financeiros. Em Junho, o alemão Wolfgang Münchau traçava um quadro negro no Financial Times, advertindo que o impacto do “não” seria politicamente desastroso. Matteo Renzi seria obrigado a cumprir a promessa de se demitir. O vazio político e um estado de emergência económico poderiam levar inclusive a uma saída da Itália da moeda única, o que por sua vez “provocaria o colapso total da zona euro num período curto”.

“E provavelmente levaria ao mais violento choque económico na história, superando a falência do Lehman Brothers em 2008 e o crash de 1929 na Wall Street.” Münchau pode ser um “profeta da desgraça”, mas não está só. O Wall Street Journal sublinhou que o referendo italiano “é mais importante do que o ‘Brexit’”. O El País ou o Die Welt avisaram que uma derrota de Renzi empurrará a UE para nova crise.

O que está em jogo

Na Itália, “a hipérbole e o exagero são um traço do debate público”, diz o analista Antonio Polito. Para os apoiantes do “sim”, a alternativa é “Renzi ou o dilúvio”. Para os defensores do “não”, a Itália está ameaçada por uma “ditadura de governo” ou por um “despotismo da maioria”. Entre os constitucionalistas, o debate assume ares de uma polémica teológica medieval, explica o L’Espresso, e de um teatral ajuste de contas entre partidos, facções, professores, intelectuais, jornalistas e cineastas: “Um debate à italiana.”

Que está afinal em jogo?

Renzi propôs-se mudar o sistema político italiano e para tal fez um acordo com Berlusconi. As reformas foram aprovadas em 2015 no Parlamento por larga maioria, mas sem os dois terços necessários no Senado depois de o Cavaliere ter rompido o contrato. O objectivo principal é pôr termo ao bicameralismo perfeito: a Câmara de Deputados e o Senado, eleitos de forma distinta, dispõem dos mesmos poderes, tanto na investidura dos governos como na aprovação das leis. Mas sendo eleitos de forma diferente, é frequente terem maiorias diferentes, o que muitas vezes bloqueia a governação ou obriga a fazer acordos bastardos. Segundo o novo texto, o Senado passa a ser uma câmara representativa das regiões. Os deputados terão proeminência no processo legislativo e só eles poderão votar moções de desconfiança ao governo. O resto é lana-caprina.

O debate foi envenenado pela aprovação da nova lei eleitoral, dita Italicum, que prevê a concessão de uma maioria absoluta ao partido vencedor desde que tenha mais de 40%. Em alternativa, haverá uma segunda volta (balotaggio) entre as duas formações mais votadas para efeito da atribuição do “prémio de maioria”.

Em nome da estabilidade, a reforma visa pôr termo às coligações multipartidárias que depressa se desfazem e reforçar o executivo. O sistema permanece dominantemente parlamentarista, pois os deputados podem votar a desconfiança ao governo. É um difícil equilíbrio entre governabilidade e representação — este é o cavalo-de-batalha do campo do “não”.

Os dois erros de Renzi

O quadro político italiano é hoje tripolar. O centro-esquerda é dominado pelo Partido Democrático (PD, de Renzi). A direita é composta pela Força Itália (FI, de Berlusconi) e por uma extrema-direita le-penista, a Liga Norte (LN, de Matteo Salvini). O terceiro pólo é o populista Movimento 5 Estrelas (M5S, de Beppe Grillo). Renzi e os seus constitucionalistas imaginavam a reorganização de uma direita clássica, pela recomposição do partido de Berlusconi, e uma alternância entre centro-esquerda e centro-direita.

Em vez disso, aconteceram duas coisas. Primeiro, o M5S consolidou a posição de segundo partido e ameaça o PD, enquanto Salvini disputa a Berlusconi e seus herdeiros a hegemonia da direita. Segundo, a introdução do balotaggio teve um efeito perverso. Grillo, Salvini e Berlusconi descobriram que a única maneira de eliminar Renzi era somar os seus votos nas segundas voltas. O método foi ensaiado com êxito nas eleições autárquicas de Junho. O M5S poderia vencer as futuras legislativas. O mesmo acontece no referendo: “Todos contra Renzi.”

O primeiro-ministro tinha no fim do ano passado um elevadíssimo apoio popular. O PD ganhou as europeias com mais de 40% dos votos. Queria uma nova legitimação eleitoral, pois é um “primeiro-ministro que não foi eleito nas urnas”. Personalizou o referendo: “Se a reforma não vencer, vou para casa.” Os adversários usam agora contra ele a sua promessa. Se perder, demite-se. E pode ser inevitável a dissolução. Acresce que lei eleitoral, que entrou já em vigor, foi contestada junto do Tribunal Constitucional. Se for chumbada, os italianos votarão com um sistema proporcional perfeito, o que significa a balcanização do Parlamento. A reforma foi imposta pela crise de 2013, em que o Parlamento foi incapaz de eleger um Presidente da República durante semanas.

A engrenagem

A divisão dos campos pouco ou nada tem que ver com a divisão esquerda-direita, mas com a fractura política-antipolítica. O que motiva os eleitores? “Antes de mais a irritação geral perante as instituições do Estado e os partidos”, escreve o politólogo Ilvo Diamanti. “Trata-se dos actores políticos da antipolítica. Depois, os alvos comuns. Primeiro, a imigração. Logo, a União Europeia. Noutros termos, as duas faces da globalização. A perda de soberania política e económica a favor das entidades supranacionais. (…) As migrações que vêm do Sul do mundo e que aumentam o nosso sentido de vulnerabilidade. E de despaisamento. A Liga e o M5S, embora tenham uma sociologia e uma geografia diversas, partilham estes sentimentos.” A sua estratégia passa por desgastar e deslegitimar os fundamentos do poder que pretendem conquistar.

A conjugação da antipolítica com a grave crise económica italiana pode ser explosiva. O desemprego não recua. O crescimento é anémico. A produtividade não sobe desde 1999. Os bancos estão descapitalizados. Dirão os optimistas que, na Itália, “tudo continuará como dantes”. Mas ninguém ousa prever o efeito de um vazio político, sobre a Itália e sobre a Europa.

Observa no La Repubblica, o ex-director Ezio Mauro: o M5S e a Liga, os mais determinados antagonistas do PD, preparam-se para celebrar as “Bodas do Caos”.

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