Merkel revela a duplicidade do Ocidente

(Por Scott Ritter, in A Viagem dos Argonautas, 06/12/2022)

Merkel e Joe Biden beijam-se em 2015, Conferência de Segurança de Munique com o então Secretário de Estado John Kerry

Comentários recentes da ex-Chanceler alemã Angela Merkel lançaram luz sobre o jogo dúplice da Alemanha, França, Ucrânia e Estados Unidos no período que antecedeu a invasão russa da Ucrânia em Fevereiro.


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A Viagem dos ArgonautasA Guerra na Ucrânia — Merkel revela a duplicidade do Ocidente.  Por Scott Ritter


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Confissões perigosas

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 08/06/2022)

A ex-chanceler alemã Angela Merkel participou há dias numa palestra em Berlim organizada pela editora Aufbau e transmitida pela televisão nacional de que os meios de comunicação retiraram um título: Angela Merkel já sabia que Putin queria destruir a Europa!

Não faço ideia se Angela Merkel terá de facto feito a afirmação e, menos ainda, em que contexto. Mas tomando como boa a transcrição e descontextualizada, o que sempre uma forma de manipulação, de colocar alguém a dizer o que convém ao citador há que pensar na afirmação. Independentemente da consideração intelectual e da experiência política de Angela Merkel esta afirmação deve ser sujeita ao crivo da crítica.

Assim a “seco” a afirmação é a-científica e a-histórica. É uma frase empírica, vulgar e que podia ser adequada a uma conversa de pé da porta. Angela Merkel é uma cientista e é culta, conhece a história do mundo e da Europa, em particular.

Não há memória (e não é sequer possível) duas entidades políticas, de dois grupos humanos socialmente organizados, no mesmo grau de desenvolvimento social, político e tecnológico terem como objetivo destruírem o outro. Nem na antiguidade os impérios em disputa tiveram como finalidade a destruição do adversário, mas sim o seu domínio. Continua válido o objetivo da guerra definido por Clausewitz: a imposição de uma vontade. E não a destruição de uma civilização, de uma cultura. Angela Merkel conhece com certeza exemplos (maus exemplos) dessa formulação: a destruição do império romano pelos bárbaros conduziu a mil anos de escuridão civilizacional da Europa (Duby — Ano Mil); a destruição do que restava dos impérios do Crescente Fértil (Iraque) pelos estados Unidos no século passado teve o resultado que ainda hoje é observável. A destruição de uma entidade política como a Jugoslávia, da qual Angela Merkel foi co-responsável, deu origem ao que se sabe, a emergência dos grupos terroristas que invocaram a religião muçulmana para impor uma nova desordem, os massacres na região, incluindo a destruição da Sérvia!

Angela Merkel devia saber que nem Hitler pretendia destruir a Rússia quando ordenou a Operação Barbarossa, copiando a paranoia de Napoleão, de que se evoca agora um duplo centenário para a invasão da Rússia. Nem Hitler, nem Napoleão tiveram por objetivo destruir a Rússia, mas conquistá-la, ganhar para os seus países as matérias-primas que ela pudesse fornecer, para com elas fortalecerem o seu poder nas suas bases de partida: a Alemanha e a França. Nas duas invasões europeias à Rússia, o objetivo não foi destruí-la, mas explorar riquezas.

Que lógica, ou que racionalidade existiria agora numa decisão da Rússia, dos seus dirigentes, de fazerem uma volta de 180 º na História, apontarem batarias a Ocidente e destruírem a Europa?

Militarmente isso não é possível. A Rússia não tem capacidade militar para isso, como se prova com as dificuldades em ocupar uma estreita faixa de terreno na sua fronteira, o Donbass, na Ucrânia, a não ser com armas nucleares que levariam ao Armagedão, à destruição mútua. Raciocinar com base no pressuposto de que para a Rússia a destruição da Europa faz parte da sua estratégia de defesa de interesses vitais é um absurdo. É absurdo mesmo no sentido figurado de entender a destruição da Europa como a destruição da unidade europeia. Continua a ser absurdo.

A primeira entidade que rompeu essa pretensa unidade foi o Reino Unido, com o Brexit. O euro também não é um exemplo de unidade. As relações muito tensas entre os Estados ocidentais e orientais da EU, nomeadamente com a Polónia, a Hungria, a República Checa a propósito de questões essenciais como o Estado de Direito também não são fatores de coesão que seja indispensável a Rússia destruir vinda de fora.

De facto, lendo a história e as estatísticas, percebe-se que a Rússia é autossuficiente em bens alimentares, energia, terras e minérios raros, em tecnologia desde a necessária aos domínios dos mares, à terrestre e espacial, tem baixa densidade populacional e sofre de entraves ao desenvolvimento interno e à promoção de bem-estar às suas populações. Estas condições não tornam necessário, nem sequer conveniente que a Rússia se expanda a partir do uso da força. A Rússia não necessita de espaço vital, necessita de desenvolvimento interno, de um mercado interno dinâmico.

A afirmação de Ângela Merkel, se foi feita e descontextualizada como surgiu, é preocupante, porque se a mais lúcida e intelectualmente estável dirigente europeia faz esta leitura da situação internacional, nós, os europeus, corremos sérios riscos de nos vermos envolvidos pelos atarantados políticos de Bruxelas num dos vários conflitos que se iniciaram por um caso estúpido, que após milhões de mortes ninguém consegue justificar, como aconteceu com a I Grande Guerra, e até com a Segunda.

Para a Rússia, a Europa é a Alemanha, a França é um intérprete simpático entre a Europa a Alemanha e os países latinos, o Reino Unido é uma colónia dos EUA e os países do antigo Pacto de Varsóvia são uns oportunistas que se vendem a quem tiver mais poder.

A Europa, seja a Europa o quer que seja, não necessita da Rússia para ser insignificante e não vale a pena destruir o que está à nossa mercê. E a Europa está à mercê da Rússia, por muito que custe a alguns europeus que gostariam de viver numa Europa autónoma e afirmativa, que merecesse que a ameaçassem, mesmo a Rússia. Os estados, tal como os indivíduos, também se avaliam pelos inimigos. Angela Merkel talvez quisesse dizer que a Europa necessitava de ser importante para merecer uma disputa com a Rússia…


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Sei onde estiveste no inverno de há vinte anos

(Francisco Louçã, in Expresso, 24/08/2021)

O tempo pode ser cruel quando a memória nos serve: há vinte anos, um jornal de referência titulava a duas páginas “Guerra ao Islão”, os vigilantes admoestavam severamente quem se atrevesse a duvidar da ordem de Bush, “não há mas”, só a obediência total era permitida. Mário Soares e Maria de Lurdes Pintasilgo, entre quem criticou a ideia selvagem da guerra para impor um regime, foram apontados como capituladores e comparados a Chamberlin perante Hitler. No parlamento, Assis admoestava Soares e comparava-se a si próprio a Churchill em nome do “partido da guerra”, para Cabul todos e em força, enquanto os partidos de direita lamentavam que Portugal não tivesse a força operacional para ajudar a ocupar outros países. Foi-nos garantido que o Bem triunfaria sobre o Mal na senda das bombas que iriam civilizar o Afeganistão.

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Vinte anos depois, esta narrativa tropeça na realidade, mas ainda é enunciada nos recônditos da ideologia. Um dos bilhetistas do Correio da Manhã reduz o caso ao anedótico: “As tropas americanas deviam e podem ser uma força para o Bem. E é por isso que a saída atrabiliária de Cabul dói: aos afegãos na carne, pelo abandono; ao mundo, por ver o Bem recuar”, depois de “duas décadas de belíssima liberdade das mulheres afegãs”. Ora, a “belíssima liberdade” foi um raro privilégio para as poucas mulheres que puderam estudar e, para a maioria das adolescentes, a continuação do analfabetismo e do casamento forçado; a “força para o bem” foi a generosa corrupção que permitiu triplicar a área dedicada à produção do ópio. E, se o Bem tanto fazia pela civilização, porque negociou com o Mal e lhe cedeu o país? E logo o campeão do Bem, Donald Trump, e o seu sucessor, Joseph Biden, irmanados na entrega do poder ao Mal?

Como não há nenhum dos chefes do “partido da guerra” que agora venha dizer que continuará a ocupação, soa a falso toda a sua prosápia recente (quem foi que disse Chamberlin?). Diz Merkel que foram cometidos “muitos erros” e que a “comunidade internacional se enganou por completo na avaliação da situação”. A comunidade internacional, aqui, é a Nato, ou seja, ela própria e os seus aliados.

O que ela não nos diz é se a derrota militar e política podia ser evitada, se é possível criar um regime a partir de uma ocupação estrangeira, ou o que queria fazer depois de criado o problema desde esses dias sinistros em que os EUA e o Paquistão financiaram e apoiaram o que hoje chamamos talibãs, naquele tempo em que a “belíssima liberdade” das mulheres não interessava. Os talibãs são filhos do império e do obscurantismo, quando os meios não olhavam para os fins.

Por isso, dizendo ou não dizendo o que querem fazer agora com os “muitos erros”, o que não nos podem pedir é que esqueçamos como andaram nas últimas décadas a destruir aquele país. Chamem-lhe o Bem e o Mal, mas volta-se a descobrir que entre os que se consideram mais civilizados estão os mais selvagens, que usam a guerra como um brinquedo.


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