A execução do líder da Al-Qaeda no Afeganistão: alerta mofo!

(Carmo Afonso, in Público, 08/08/2022)

Não foi um ataque à estrutura da Al-Qaeda que, dessa forma e do que se sabe, permanece intacta. O que seria uma boa notícia, não aconteceu.


Chamava-se Ayman al-Zawahiri e era considerado o cérebro dos atentados de 11 de setembro de 2001. Era também o líder da Al-Qaeda. Foi morto na semana passada no Afeganistão, em Cabul, por dois mísseis Hellfire, disparados de um drone dos Estados Unidos da América.

O tempo anda muito depressa, mas há coisas que parecem estar sempre na mesma e que são imunes à sua passagem.

Qual foi o propósito declarado da intervenção das forças militares ocidentais, lideradas pelos EUA, no Afeganistão? Desmantelar a Al-Qaeda e retirar-lhe, como base operacional, o território daquele país. Recordar também as palavras de Joe Biden aquando da retirada das tropas no ano passado: “Que interesse temos no Afeganistão, agora que a Al-Qaeda se foi? Fomos para lá com o objetivo expresso de nos livrarmos da Al-Qaeda no Afeganistão. E conseguimos.” Este foi o reduto de explicação que Biden encontrou para a derrota militar, bastante evidente, dos EUA numa guerra da sua iniciativa.

Mas nem a isso se pode agarrar.

O líder da Al-Qaeda vivia uma vida aparentemente tranquila em Cabul. Foi numa ida à varanda do seu apartamento – habitual, de acordo com relatos militares – que foi atingido. A sua família parece residir oficialmente no Afeganistão. Será isto compatível com a declaração de objetivos cumpridos de Joe Biden? Diria que não.

Há quem felicite os Estados Unidos pela execução do líder da organização terrorista, mas deveria haver também quem os interrogasse: afinal para que serviu uma guerra, da qual saíram derrotados, e na qual perderam a vida dezenas de milhares de civis afegãos?

Este assunto tem a importância que lhe quisermos dar e a importância que entendermos merecerem as vidas perdidas no Afeganistão, durante a guerra, sobretudo as dos mais de 60 mil civis. Foi a invasão de um território que nunca mereceu a paixão do mundo ocidental e foram vidas que nunca tiveram a sua solidariedade.

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Aos civis afegãos nunca foi reconhecido, na sua plenitude, o estatuto de vítimas ou de inocentes. O mal já está feito. É tarde para essa justiça e poucos lhe sentem a falta. Quem a tentou fazer, e lembro o jornalista Robert Fisk, foi punido e humilhado por isso. Eram tempos ingratos para quem queria defender os inocentes afegãos. Tudo o que contraditasse ou ofuscasse a legitimidade, que se queria sem limites, de quem tinha sido vítima nos atentados do 11 de setembro, não passava.

Uma execução militar feita, sem julgamento prévio, num país estrangeiro e à revelia deste e, já agora, sem autorização do Congresso. A legalidade desta execução parece não preocupar ninguém. Temos também o líder da Al-Qaeda que afinal residia num apartamento em Cabul. São notícias recentes mas estão impregnadas de mofo. Nada mudou. Também a execução de Ayman al-Zawahiri não determinará o fim da organização. É sabido que estas organizações estão preparadas para perdas deste tipo e para a respectiva substituição. Não foi um ataque à estrutura da Al-Qaeda que, dessa forma e do que se sabe, permanece intacta. O que seria uma boa notícia, não aconteceu.

Depois da invasão do Afeganistão tivemos a invasão do Iraque. Neste caso, muitas vozes se manifestaram contra, mas não as suficientes para serem ouvidas. Não se trata de constrangimento, é absolutamente miserável que tenha acontecido uma intervenção militar relativamente à qual os quatro protagonistas já assumiram em público o seu arrependimento. O lastro de morte aqui foi ainda maior e persiste. Mas a História escreveu-se depressa. Também na Palestina a chacina continua debaixo dos nossos olhos.

Não podemos confiar no nosso sentido de justiça. Ele deixa passar demasiadas atrocidades. Acordou para a invasão da Ucrânia. Ainda bem. Mas é um despertar seletivo e acrítico. Veja-se que não caiu bem o relatório da Amnistia Internacional que aponta falhas graves à defesa da Ucrânia. Assim não é sentido de justiça, é apenas um medíocre torcer pelo lado que se escolheu.

Queremos estar do lado dos bons, mas temos de fechar os olhos para realmente lhes chamarmos bons.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico


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As sanções de Biden contra o Afeganistão: matar um povo à fome, cometer genocídio

(Joaquim de Freitas, in Facebook, 21/03/2022)

(Onde andam e andavam os belicistas indignados com a invasão da Ucrânia quando Biden cometeu este crime bárbaro? Não têm pena destas crianças? Calam-se e enfiam a cabeça na areia como a avestruz? Não se sentem nem se sentiram incomodados? Porquê? Eu não quero acreditar que seja porque estas crianças não têm cabelos loiros e olhos azuis. E fico-me por aqui.

Estátua de Sal, 25/03/2022)


Quando os Estados Unidos roubaram US$ 7 bilhões do Afeganistão em 11 de Fevereiro, não foi um simples roubo.

Foi um crime de guerra e um crime contra a humanidade que provavelmente condena milhões de afegãos à fome. Em suma, o prelúdio do genocídio.

Biden hesita na sua desculpa para este roubo total de fundos afegãos, ou seja, compensação para as vítimas do 11 de Setembro.

Não foi o governo afegão que matou os seus compatriotas da WTC de Nova Iorque.

De facto, em 2001, os Talibã ofereceram-se para entregar os culpados da Al-Qaeda a Washington. Os Estados Unidos recusaram esta oferta e invadiram o país.

A ação chocante de Biden torna todos os americanos cúmplices de atrocidades abomináveis.

Segundo a UNICEF, “mais de 23 milhões de afegãos enfrentam fome aguda, dos quais 9 milhões estão à beira da inanição”.

Em meados deste ano, 97% dos afegãos estarão na miséria, segundo estimativas da ONU.

Dizer que essas pessoas precisam de cada centavo dos seus US$ 7 bilhões é um eufemismo.

Dizer que aqueles que roubam metade são monstros é a única avaliação moral de tal roubo. (A outra metade deve-lhe ser devolvida numa data posterior não especificada).

Biden saiu-se melhor do que os salteadores: “A bolsa ou a vida” é a nova mensagem americana, transmitida em tom de autossatisfação.

Esse roubo em particular representa cerca de 40% da economia afegã e cerca de 14 meses de importações afegãs, de acordo com Mark Weisbrot no Sacramento Bee em 4 de Fevereiro.

Mas Biden já havia imposto outras sanções ao país, como presentes de despedida quando as tropas americanas finalmente deixaram o país após 20 anos de destruição.

No geral, as sanções de Biden significam “mais pessoas morrerão... no ano atual do que o número que morreu em 20 anos de guerra”.

Assim, Biden desfez o bem que havia feito ao retirar as tropas americanas do Afeganistão. Os militares retiraram, mas o presidente americano abriu a porta para a fome. E este assassino entrou sem hesitação.

Esse desastre inteiramente causado pelo homem poderia ser evitado, é claro. Levante as sanções. Devolva ao Afeganistão todo o seu dinheiro e vidas serão salvas. Caso contrário, muitas pessoas morrerão.

Dezenas de milhares de cidadãos afegãos foram forçados a fugir em busca de comida e segurança, cinco milhões de crianças enfrentam fome, morte agonizante e dolorosa, um aumento de quinhentos por cento nos casamentos infantis e a venda de crianças apenas para poder sobreviver, e nem uma única menção sobre isso, nem aqui nem em qualquer lugar, sem cobertura televisiva contínua, sem resposta humanitária de emergência, sem plenários, sem rezas nas igrejas do Ocidente.

Meu Deus, eles devem estar se perguntando o que torna a sua crise humanitária tão sem importância. Onde estao os concertos musicais para lhes vir em socorro? Onde estao as missas ao ar livre por estes humanos? Onde estão os cortejos de oferendas?

É a cor da pele deles, é o facto de não serem brancos? Que eles não são europeus? Será porque a decisão de despojar o seu país de sua riqueza foi tomada por um presidente americano despótico e não por um presidente russo?

Porque meu Deus, todas as guerras são ruins, e todas as vítimas valem a pena apoiar, e até que consertemos isso, não teremos credibilidade.”

Levou 20 anostrilhões de dólares e 4 presidentes dos EUA para substituir o Talibã pelo Talibã. Lindo serviço americano !

A lição a ser tirada da derrota dos EUA no Afeganistão e das sanções resultantes é esta: dane-se se o fizer e dane-se se não o fizer.

Os EUA é o pior perdedor do mundo. Derrotado, ele vinga-se de forma atroz.


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Pitágoras e Cabul

(Miguel Romão, in Diário de Notícias, 03/09/2021)

Num jornal, em pleno agosto indolente, noticiava-se uma descoberta que em nada abalará o mundo ocidental: o “teorema de Pitágoras” já era, afinal, conhecido e usado nas terras da Babilónia mais de um milénio antes de o dito grego ter nascido… Não deixará de haver teorema de Pitágoras – era o que faltava haver agora um teorema revisionário, babilónio ou iraquiano. O quadrado do comprimento da hipotenusa parece que é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos, haja um triângulo retângulo. Mil anos antes ou mil anos depois. Eu não posso absolutamente garanti-lo, mas há quem seguramente o faça.

Ao mesmo tempo, neste aparente agosto que acabou, a presença norte-americana, ocidental, no Afeganistão, fazia o seu fade out definitivo, com os resultados preliminares conhecidos. Não deixa de ser curioso também que muitos dos que se acaloraram pela presença americana no Afeganistão, há duas décadas, sejam também aqueles que hoje se indignam pela sua saída e pelas suas consequências. Pode, talvez, fazer sentido.

Como me explicou em Washington, há uns anos, um diplomata norte-americano, com graça, há políticas americanas definidas para países amigos, para países inimigos e para países “recentemente ocupados pelos Estados Unidos”. Quando já passam duas décadas da ocupação, as políticas tornam-se mais difíceis de estabelecer e de aplicar, porque fogem à matriz e à previsão…

E o que tem isto que ver com o teorema babilónio?

Alguns podem querer ver a conexão em virtude da obsessão ocidental de que tudo de bom por nós foi criado e oferecido ao mundo, sem mácula e sem dúvida, quer a matemática moderna quer a pacificação aparente e transitória de um território sem paz ou sem essa ideia, ocidental, de Estado. A verdade aqui é o menos importante, até porque ela não existe. O que se vê depende sempre de onde se vê. As grandes explorações marítimas dos portugueses e dos espanhóis dos séculos XV e XVI foram antecedidas pelas grandes explorações marítimas dos chineses, por um ou dois séculos, por exemplo, que pelo Ocidente não são conhecidas, ensinadas, enaltecidas.

Aqui, em poucas palavras, não se pretende apoucar o mundo ocidental e as suas invenções e estabelecimentos civilizacionais. Pelo contrário. Para além da ciência e da tecnologia, este espaço foi decisivamente responsável pela estabilização e a generalização, da forma mais universal que conhecemos até hoje, de direitos fundamentais que não devem admitir retrocesso, de modelos de decisão política com participação geral, da laicização da decisão pública e do expurgo da sua apropriação por alguns iluminados de circunstância. E isso é um património extraordinário e que não deve ser menorizado. Na verdade, o Ocidente descolou do ponto de vista do seu desenvolvimento diretamente retribuído às pessoas “comuns” quando diminuiu a sua dependência de uma cartilha de um poder religioso ou pararreligioso ou construído exclusivamente por uma aristocracia fechada e inerte. Uma opinião. Mas diversos espaços do mundo usam ainda esse mesmo esse modelo de poder e de sociedade, mais ou menos cleptocrático, mais ou menos securitário, mais ou menos repressivo. É útil e funcional para muitos – e terrível para tantos outros.

Declarar e defender direitos das pessoas é distinto de atribuir direitos aos Estados, como o Afeganistão bem ilustra no nosso tempo. O teorema já existia antes do seu reconhecimento. E ainda bem. Ninguém o recordará como tal, é certo. No futuro, notar-se-á que houve, talvez, um detalhe arqueológico em 2021, dir-se-á. Ou nem sequer isso. Mas querer ver o que é como se fosse o que seria é sempre um erro, pelo menos para quem tem alguma tendência pela verdade, exista ela ou não.

O paradigma do Estado está seguramente em crise quando as pessoas são excluídas da equação, como sempre se soube – um Estado como poder, território, povo. E quando não há afinal “território, poder, povo”? Sobram, sempre, as pessoas. E, se houver uma decisão a tomar, ela deveria ser a que melhor as defenda. Mas até de si próprias?

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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