Pitágoras e Cabul

(Miguel Romão, in Diário de Notícias, 03/09/2021)

Num jornal, em pleno agosto indolente, noticiava-se uma descoberta que em nada abalará o mundo ocidental: o “teorema de Pitágoras” já era, afinal, conhecido e usado nas terras da Babilónia mais de um milénio antes de o dito grego ter nascido… Não deixará de haver teorema de Pitágoras – era o que faltava haver agora um teorema revisionário, babilónio ou iraquiano. O quadrado do comprimento da hipotenusa parece que é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos, haja um triângulo retângulo. Mil anos antes ou mil anos depois. Eu não posso absolutamente garanti-lo, mas há quem seguramente o faça.

Ao mesmo tempo, neste aparente agosto que acabou, a presença norte-americana, ocidental, no Afeganistão, fazia o seu fade out definitivo, com os resultados preliminares conhecidos. Não deixa de ser curioso também que muitos dos que se acaloraram pela presença americana no Afeganistão, há duas décadas, sejam também aqueles que hoje se indignam pela sua saída e pelas suas consequências. Pode, talvez, fazer sentido.

Como me explicou em Washington, há uns anos, um diplomata norte-americano, com graça, há políticas americanas definidas para países amigos, para países inimigos e para países “recentemente ocupados pelos Estados Unidos”. Quando já passam duas décadas da ocupação, as políticas tornam-se mais difíceis de estabelecer e de aplicar, porque fogem à matriz e à previsão…

E o que tem isto que ver com o teorema babilónio?

Alguns podem querer ver a conexão em virtude da obsessão ocidental de que tudo de bom por nós foi criado e oferecido ao mundo, sem mácula e sem dúvida, quer a matemática moderna quer a pacificação aparente e transitória de um território sem paz ou sem essa ideia, ocidental, de Estado. A verdade aqui é o menos importante, até porque ela não existe. O que se vê depende sempre de onde se vê. As grandes explorações marítimas dos portugueses e dos espanhóis dos séculos XV e XVI foram antecedidas pelas grandes explorações marítimas dos chineses, por um ou dois séculos, por exemplo, que pelo Ocidente não são conhecidas, ensinadas, enaltecidas.

Aqui, em poucas palavras, não se pretende apoucar o mundo ocidental e as suas invenções e estabelecimentos civilizacionais. Pelo contrário. Para além da ciência e da tecnologia, este espaço foi decisivamente responsável pela estabilização e a generalização, da forma mais universal que conhecemos até hoje, de direitos fundamentais que não devem admitir retrocesso, de modelos de decisão política com participação geral, da laicização da decisão pública e do expurgo da sua apropriação por alguns iluminados de circunstância. E isso é um património extraordinário e que não deve ser menorizado. Na verdade, o Ocidente descolou do ponto de vista do seu desenvolvimento diretamente retribuído às pessoas “comuns” quando diminuiu a sua dependência de uma cartilha de um poder religioso ou pararreligioso ou construído exclusivamente por uma aristocracia fechada e inerte. Uma opinião. Mas diversos espaços do mundo usam ainda esse mesmo esse modelo de poder e de sociedade, mais ou menos cleptocrático, mais ou menos securitário, mais ou menos repressivo. É útil e funcional para muitos – e terrível para tantos outros.

Declarar e defender direitos das pessoas é distinto de atribuir direitos aos Estados, como o Afeganistão bem ilustra no nosso tempo. O teorema já existia antes do seu reconhecimento. E ainda bem. Ninguém o recordará como tal, é certo. No futuro, notar-se-á que houve, talvez, um detalhe arqueológico em 2021, dir-se-á. Ou nem sequer isso. Mas querer ver o que é como se fosse o que seria é sempre um erro, pelo menos para quem tem alguma tendência pela verdade, exista ela ou não.

O paradigma do Estado está seguramente em crise quando as pessoas são excluídas da equação, como sempre se soube – um Estado como poder, território, povo. E quando não há afinal “território, poder, povo”? Sobram, sempre, as pessoas. E, se houver uma decisão a tomar, ela deveria ser a que melhor as defenda. Mas até de si próprias?

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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Um pensamento sobre “Pitágoras e Cabul

  1. Não que seja excessivamente grave, como dizia o diplomata sueco nas prosas do Eça. Não é propriamente um teorema, mas a constatação de que há grupos de 3 números inteiros que satisfazem as condições para serem as medidas dos lados de um triângulo rectângulo. Tal como seriam 3 os tipos de países para os quais os USA definiam políticas. Mas, tudo muda e, já depois da grande vitória militar sobre a ilha de Granada, sobreveio mais uma categoria: os que tinham deixado de ser amigos. Novos perigos, novas políticas. Perigoso? Well, let us pretend that we continue to be good friends…

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