O Papa Francisco e a Igreja católica

(Carlos Esperança, 24/08/2018)

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Sem maniqueísmo, facilmente se admira o atual Papa e desculpa o passado nebuloso do cardeal Bergoglio, benevolente com o ditador Videla e hostil à presidente Kirchner, em sintonia com os Papas de turno, e a presente sujeição ao Opus Dei na convocação de defuntos para alimentar a indústria dos milagres e a criação de beatos e santos.

A vida de figuras públicas tem zonas claras e escuras, e as circunstâncias moldam mais os homens do que estes as circunstâncias. O Papa Francisco é, no conjunto da sua vida, um homem respeitável e, quiçá, o mais estimável dos líderes religiosos mundiais. Não merecia a catadupa de problemas que desabam sobre ele. O futuro dirá se foi o homem certo na hora errada ou o homem errado que chegou na hora certa ao Vaticano.

Ao receber a tiara, o solidéu branco, a romeira, os sapatos vermelhos, a infalibilidade e a diocese de Roma, que vagara porque o antecessor trocou a santidade pela vida, estaria longe de imaginar as desgraças que desabariam sobre ele.

São do domínio público as ligações do Vaticano à Máfia, que Francisco teve a coragem de cortar, a lavagem de dinheiro no IOR, pseudónimo do banco do Vaticano, a que pôs cobro, e a tentativa de acertar o passo com a modernidade e a ética, numa manifestação de coragem que o nobilita.

Não vale a pena escarafunchar os escândalos que envolvem o clero católico, verdadeiros e infamantes, habilmente aproveitados pela concorrência, mais perigosa e assustadora.

Só quem tem a noção dos séculos de impunidade da Cúria Romana pode apreciar a luta deste jesuíta determinado e corajoso, perante um antro de reacionários e dissolutos.

A ousadia de quebrar a moral da Idade do Bronze, quando o Deus de Abraão foi criado por patriarcas tribais, valeu-lhe a aversão da tralha beata, que se confunde com os mulás e sonha com as Cruzadas e à Inquisição. As suas manifestações de humanismo cativam crentes e livres-pensadores, os que defendem a modernidade e se reveem na civilização herdada do Iluminismo e da Revolução Francesa.

Quando alterou o parágrafo do catecismo da Igreja católica sobre a Pena de morte, que considerou “inadmissível” e fez a rutura com a doutrina tradicional, era de admitir que o avanço civilizacional, que incentivava a abolição em países de influência católica, fosse acolhido pelo clero como um momento alto da história milenar do cristianismo e tivesse o consenso de todo o clero, ressarcido das nódoas que o atingem por um ato que honra a Igreja e, por extensão, a clerezia apostólica romana.

Foi uma ingenuidade, não certamente do Papa, que conhece a Santa Máfia que o rodeia, mas dos incréus que ainda aguardavam o contributo do Vaticano para um mundo mais humanista e alinhado com a modernidade.

Enquanto livres-pensadores saudaram a posição do Papa, agitaram-se as sotainas e, do antro do Vaticano e de sucursais reacionárias, surgiram urros de trogloditas que acusam o Papa de adulterar a palavra do Deus deles, que continua aquele velhaco e cavernícola, à imagem e semelhança dos trogloditas para quem a pena de morte é exigência divina.

Esta Turquia é culpa nossa

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 17/04/2017)

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As instituições europeias não se deviam surpreender com os caminhos para um poder cada vez mais centralizado que a Turquia está a trilhar. Afinal, se bem que não se possa fazer o contrafactual, é de supor que se a Europa tivesse aceite o pedido de adesão da Turquia à União, que há exatamente 30 anos está em cima da mesa, talvez o regime de Ancara não estivesse a tornar-se cada vez menos democrático.

A Turquia apresentou o seu pedido de adesão à então Comunidade Económica Europeia em 14 de abril de 1987 mas já desde o ainda mais longínquo ano de 1963 que Ancara foi tentando desenvolver relações mais estreitas com as instituições europeias. Em 1995 assinou um acordo de união aduaneira com Bruxelas e, a 12 de dezembro de 1999, foi reconhecida oficialmente como candidata. Em 3 de outubro de 2005, foram iniciadas as negociações formais para a plena adesão da Turquia à União Europeia, mas desde aí tem sido manifesta a falta de vontade de alguns países europeus, com a Alemanha à cabeça, para aceitar a Turquia no clube.

Na verdade, os direitos de voto de cada país nas instituições comunitárias estão ligados ao número dos seus habitantes – e a Turquia, com 75 milhões, colocar-se-ia quase no mesmo patamar que a Alemanha (80 milhões) e à frente da França (66 milhões) e de Itália (60 milhões), tendo direito a mais deputados no Parlamento Europeu e a mais votos que Paris e Roma em todas as instâncias comunitárias.

É de supor que se a Europa tivesse aceite o pedido de adesão da Turquia à União, que há exatamente 30 anos está em cima da mesa, talvez o regime de Ancara não estivesse a tornar-se cada vez menos democrático

E assim, por manifesto cálculo político, os governos europeus da União foram encanando a perna à rã, arrastando os pés e o processo, fazendo que andavam mas não andavam, esperando não se sabe bem o quê – que a Turquia desistisse ou que, de repente, ficasse com muito menos população ou que acontecesse uma explosão demográfica nos países da União.

E entretanto, as correntes mais laicas e moderadas turcas iam pouco a pouco perdendo posições para setores mais radicalizados, que se foram cristalizando na sociedade e que ganharam um novo e decisivo avanço com a estranhíssima tentativa de golpe de Estado de 15 de Julho de 2016, esmagada pelas tropas leais ao presidente Recep Erdogan. A partir daí, Erdogan não só eliminou toda a oposição, como encerrou dezenas de órgãos de comunicação e acaba de vencer, embora pela margem mínima e com evidentes sinais de fraude, o referendo que lhe vai permitir eternizar-se no poder até 2029 e reintroduzir a pena de morte.

Ao fazê-lo, Erdogan dá um sinal claro de que desistiu da adesão do seu país à União Europeia, que se fartou do arrastamento do processo e que não acredita que ele algum dia venha a ocorrer. Mais: ele sabe que é uma condição “sine qua non” para que um país seja membro da EU que o seu regime seja democrático parlamentar e que não aplique a pena de morte a quaisquer tipo de crimes.

Ao reafirmar a defesa da pena de morte, o presidente turco está a dar um sinal claro de que deixou de contar com a EU como aliada e que vai procurá-los noutro local do globo. A questão é onde.

Na verdade, apesar da Turquia pertencer à NATO, os Estados Unidos não são um amigo predileto. Com a Rússia as relações também não são sólidas. Nem com Israel. Resta saber para onde se irá voltar Erdogan – e se a tentação do poder absoluto não o levará a ficar pouco a pouco isolado interna e externamente.


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