Futebol: uma bolha de impunidade

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/04/2021)

Daniel Oliveira

É difícil alguém tocar em qualquer coisa que tenha a ver com futebol sem se queimar. Porque o clubismo, que pode ser tão belo como qualquer paixão, não tem toldado apenas o raciocínio de quem lê (e muitas vezes de quem escreve), também tem toldado os seus valores morais. E o pior é que se instalou a ideia de que alguém só defende verdadeiramente o seu clube se fizer uma jura de amoralidade. Se for “ultra” e recusar que qualquer outra coisa se sobreponha ao amor ao clube. Deixo aqui claro: há, para mim, uma lista infindável de coisas acima do meu clube. Para além das mais íntimas, a Lei, a Justiça, o bem-estar das pessoas, todos os meus princípios morais, os interesses do país, a causa pública… E não sou menos sportinguista por isso.

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Estou totalmente à vontade para falar da relação dos clubes com os jornalistas. Quando, no meu clube, se alimentou o ódio à comunicação social, fui claríssimo na minha posição. E não esqueço, mesmo que cada um aproveite o momento a que assistimos em Moreira de Cónegos para atacar o adversário, que as agressões ou intimidações a jornalistas já aconteceram em todos os estádios ou pavilhões dos principais clubes. Os telhados não são de vidro, são de cristal. Apesar de ter no seu legado o “mítico” guarda Abel e vários episódios muito pouco dignos na relação com a comunicação social, o Futebol Clube do Porto não tem o exclusivo. Nem dos atos, nem das palavras que os legitimam.

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Não confundo críticas com ódio. Eu faço críticas à comunicação social. Muitas e com muita frequência. Não sofro de qualquer vício corporativo e defendo um escrutínio apertado de quem escrutina os outros. Mas aquilo que vemos é uma barreira de ódio que pretende enfiar adeptos fanatizados na bolha de influência das direções dos clubes, dos seus canais de televisão, dos relatos e análises que eles próprios autorizam dos jogos. Isto vem acompanhado por um discurso tóxico, de uma agressividade inaudita, que pretende transformar o que devia ser um prazer e um divertimento em mais uma fratura na sociedade portuguesa.

Não há, na estratégia de comunicação dos clubes, nenhuma diferença em relação a tudo o que podemos ver em trumps e bolsonaros: o discurso de ódio como forma de mobilização de apoiantes, a tentativa de os isolar em bolhas de informação controladas pelos poderes do clube, um apelo difuso à violência e uma cultura de desprezo por todas as instituições que não dominem.

Isto não impede que haja problemas graves no futebol nacional. Nenhum deles será resolvido por incendiários. Resolve-se com dirigentes desportivos capazes de conversarem entre si (o que passa por baixar a temperatura) para impor regras que beneficiariam a competição e, com ela, todos os clubes. Mas esse é outro debate.

Não vou escalpelizar o crime a que assistimos, com um empresário desportivo a alegadamente agredir um jornalista ou, na melhor das hipóteses, a impedi-lo de cumprir a sua função (que não depende de autorização de ninguém). O crime é público e não carece de queixa. É um atentado contra a liberdade de imprensa e, por isso, um atentado contra a democracia. A passividade inicial da GNR e as declarações de Pinto da Costa, que julga que o trabalho da imprensa pode ser “indevido” e interrompido pela força, apenas ilustram a impunidade reinante no mundo do futebol, que se tem transformado num Estado dentro do Estado. Também não vou desenvolver sobre as ligações de Pedro Pinho ao Futebol Clube do Porto. Elas são públicas e evidentes. As circunstâncias em que aquilo aconteceu e o pedido de desculpas do vice-presidente do FCP, Vítor Baía, não permitem desresponsabilizações. Nem é o Porto que me interessa especialmente neste texto.

Com mais ou menos historial, a violência ligada ao futebol é transversal aos principais clubes. E os exemplos de violência partem dos agentes desportivos para as bancadas, transformando-as em lugares infrequentáveis para muitas pessoas. Não precisamos de outra prova: mesmo sem público, temos violência nos estádios. O problema não são os adeptos, são os que lhe dão a violência como padrão de comportamento.

A comunicação social tem responsabilidade no que aconteceu. Foi ela que, em nome das audiências, alimentou o sensacionalismo e escândalo quotidiano em torno do futebol. E foi ela que albergou painéis de debate que ajudaram a este caldo de cultura. Que em vez de discutirem futebol, arregimentaram tribos de fanáticos que queriam ver sangue. Criando um padrão que tende a ser repetido noutros domínios da nossa vida coletiva. Não é por acaso que o pior que a política recebeu veio desse mundo. Muitos desses programas já saíram do ar, mas os seus efeitos perduram.

Não é possível ser difusor do ódio (não confundir com a crítica assertiva) e ficar a salvo dele. Claro que o jornalista agredido, com quem estou solidário, não é responsável por nada disto. Pelo contrário, é vítima. Os canais de televisão é que foram cúmplices deste clima irrespirável.


É racismo ou é racismo no contexto da cultura de violência do futebol?

(José Pacheco Pereira, in Público, 22/02/2020)

Pacheco Pereira

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É tudo mau, sabemos nós, mas não é a mesma coisa responder de uma forma ou de outra. Porque não é o mesmo. Devo, aliás, dizer desde já que não acho que o episódio de Marega seja, em si mesmo, muito significativo do racismo em Portugal. Preocupam-me muito mais incidentes como os que ocorrem em bairros degradados, onde a maioria da população é de origem africana, e que envolvem a polícia, ou os conflitos com ciganos, ou mesmo incidentes de violência individualizados, como o que ocorreu com uma senhora, um condutor de autocarros e a polícia na Amadora. Dito de outra maneira, onde eu penso que são mais graves os fenómenos de racismo é naquilo que se pode chamar conflitos de proximidade, onde comunidades negras ou ciganas vivem em guetos ao lado de populações brancas, muitas vezes unidos pela mesma miséria, pobreza e exclusão.

Os profissionais políticos do anti-racismo querem tirar os insultos racistas a Marega do contexto em que foram proferidos, porque querem marcar um ponto político que é dizer que “Portugal é racista”, e não se querem meter com o futebol porque, por um lado, o futebol é popular e, por outro, porque dá um contexto diferente ao que aconteceu. Esse contexto não minimiza o racismo, mas diminui o seu valor enquanto acto de racismo.

Os adeptos do Guimarães que insultaram o jogador negro, insultos racistas sem dúvida, vivem numa parte do país onde não há esse racismo de proximidade, e onde incidentes racistas são incomuns e mesmo raros. O racismo não caracteriza a vida de Guimarães, mas a violência no futebol caracteriza, como caracteriza o futebol no seu conjunto, onde este tipo de comportamento existe em praticamente todos os grandes clubes que têm claques, e onde o sentimento tribal é acentuado. É a violência tribal no futebol que leva aos insultos e, como o jogador é negro, os insultos são racistas.

Cântico da Juve Leo

Quando os insultos são à mãe de um jogador, gritados por uma pequena multidão, que urra “filho da puta” quando um guarda-redes está para defender um pénalti, ou ao jogador que o vai marcar, eles são exactamente da mesma natureza dos que que fizeram o jogador negro sair do campo. (Devo dizer entre parêntesis que acho que ele fez bem, quem não se sente não é filho de boa gente, e ninguém deve ter complacência com energúmenos.) São insultos, e quer a mãe do jogador, quer a cor da pele, não têm que ser agredidos por uma turba exaltada e utilitária. Porque a função dos insultos é perturbar um jogador ou uma equipa na sua eficácia em campo e, por isso, são inaceitáveis e sancionáveis. Aliás, uma das coisas que vai passar a acontecer ainda mais é a repetição dos insultos racistas com o objectivo de levar jogadores negros de qualidade a abandonarem o jogo, e assim aumentarem as chances da equipa dos insultantes.

Se há questão no que aconteceu, é mostrar o futebol como um dos reservatórios de violência na sociedade portuguesa e, sendo assim, naturalmente contendo o racismo na panóplia dessa violência latente. Quando os adeptos das claques passeados pela rua como um grupo de animais ferozes, numa operação policial com contornos militares, com o dinheiro dos nossos impostos, passam em frente dos rivais, não só gritam todos os impropérios do dicionário e alguns fora dele, como arremessam o que podem. E o mais grave é que se considera isto normal.

O que é que é mais parecido com o que aconteceu em Guimarães? O que é mais ofensivo, chamar a alguém “macaco” ou “filho da puta”? É a mesma coisa, e significa socialmente a mesma coisa. Pode-se alegar que há uma diferença cultural entre insultar a mãe de um jogador ou a cor da pele. Há. Mas o mais provável é que os insultos sejam intermutáveis neste caso e não mostrem um particular ânimo racista. Claro que, tendo em conta mais um sobressalto de indignação colectivo que se tem passado, com muita gente que está farta de ouvir insultos do mesmo tipo nos campos de futebol sem mexer uma palha, a chorar de hipocrisia e indignação, parece quase um crime, racista claro, dizer isto. Mas para quem não tenha uma agenda política que se centra numa certa concepção político-cultural do racismo, é pouco mais do que bom senso. Até porque este tipo de surtos de indignação só favorecem alguns grupos radicais e prejudicam qualquer combate eficaz contra o racismo real.


Os devassos puritanos

(António Guerreiro, in Público, 13/1/2019)

António Guerreiro

Foi esta semana divulgado, com larga difusão, como é habitual sempre que se trata destes assuntos, um inquérito do Centro de Estudos da Federação Académica de Lisboa que apresenta os números (em percentagens) da violência sexual a que os universitários dizem ter sido submetidos. Num item do inquérito é dito (e cito a notícia do PÚBLICO) que “poucos (17,8%) encaram como uma violência continuar a ter sexo quando o/a parceiro/parceira adormece durante o acto”.

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A violência sexual existe e não devemos tolerar que ela seja tratada de maneira displicente ou com eufemismos, e as mulheres de todo o mundo, sobretudo elas, têm razão de sobra para se manifestarem nas ruas e entoar um grito colectivo, como fizeram recentemente as mulheres chilenas: “O violador és tu!”. Mas quando os critérios de classificação da violência são tão alargados que incluem até levar o parceiro a dormir de indiferença ou de tédio e continuar, desperto e solitário, cheio de entusiasmo (prova de que o ser humano, racional e portanto dotado de linguagem, “faz amor” – bela e pertinente expressão! – com os seus fantasmas e o seu imaginário, coisa que estes inquéritos nem por sombras querem admitir), devemos suspeitar que os inquéritos destinados a medir os índices de violência e assédio sexual se destinam a fazer-nos concluir que quase não há sexo sem violência. O que eles não dizem é que, provavelmente, é no seio da conjugalidade que a violência é maior e mais persistente. A mais comum forma de violência sexual no espaço conjugal é a sua forma negativa, isto é, a total ausência de sexo e os interditos discursivos que essa situação cria, para que não se quebre uma união fundada na inércia, outras vezes em razões pragmáticas, e mais raramente noutros afectos respeitáveis que a família cristã exalta porque tem uma sabedoria antiga que lhe diz que ou as coisas tendem para essa pretensa neutralidade (raramente feliz)ou então o desfecho é o divórcio e a delapidação de patrimónios (às vezes, até do património parental). Se estes inquéritos, determinados por um neo-puritanismo, acabam por assimilar boa parte das atitudes e rituais sexuais a formas de violência, mais não seja porque deixam aos inquiridos a liberdade de estabelecerem como violência o que sentem como tal, então eles acabam, sem o saber, por entrarn a lógica da transgressão, do gozo que advém de quebrar as normas; ou então mostram uma embaraçosa cumplicidade com o pensamento de Sade (Sade, mon prochain, que título revelador!) e a sua maneira de enunciar, classificar, racionalizar e articular através de um discurso as práticas sexuais. É o triunfo do plaisir de tête. E assim o neo-puritanismo do nosso tempo revela-se muito mais apto a alimentar as coisas as formas mais extremas de violência sexual do que a permissividade promovida pelos discursos e as práticas da revolução sexual.

Mas os dados deste inquérito mostram bem onde reside a verdadeira obscenidade do nosso tempo: nos números, nas percentagens, nas estatísticas, na mensurabilidade elevada ao estado de apoteose, que permite dizer que 71,1%  dos estudantes entendem como violência “enviar uma SMS sexual fora de contexto”. É a cultura quantitativa da avaliação a funcionar, a “evaluative society” a mostrar os seus requintes. São todos estes dados que servem à “governance” para gerir todos os aspectos da vida social e política. A estatística é o instrumento quase único da governação.

Lendo o que revela o inquérito, uma questão legítima deve o leitor colocar: não é verdade que nas coisas do sexo ninguém diz a verdade? Seja porque queremos estrategicamente ocultar aos outros o que pertence à nossa intimidade, seja porque quase sempre, nesta matéria, mentimos a nós próprios, instalamo-nos na mentira e é preciso um longo trabalho analítico para sair dela. Por isso é que estes domínios são muito mais complexos do que nos querem fazer crer. E andamos nisto desde sempre: ora a ver a Santa Teresa de Bernini em êxtase místico; ora a vê-la a ter um orgasmo. ora temos a santa, ora temos a figura suprema da orgia barroca. A grande questão é que ambas coincidem e o espectador passa de uma a outra mesmo sem mudar de posição e deslocar o olhar.


Livro de recitações

“Pode enfiar as suas questões pelo cu acima”
Peter Handke, em resposta  a um jornalista, citado em Peter Handke; the scandal is not where they say it is, revista online Diacritik

Parece que esta frase (ou melhor, aquela de que esta é uma tradução) citada em vários jornais para dar provas da má educação e do pouco respeito que Peter Handke tem pelas práticas da “racionalidade comunicativa” e pelas instituições democráticas (o que faz dele, em muitos sectores e latitudes, uma figura de misantropo que carrega consigo o “peso do mundo”, uma espécie de escritor-pária a quem a Academia sueca, de maneira ingénua ou imprudente, resolveu outorgar o Prémio Nobel) não foi afinal pronunciada numa das disputas que teve recentemente com jornalistas. Parece que a frase foi pronunciada em Viena, em 1996 e nada tem que ver com o contexto do Nobel. Mas ela dá provas de uma hostilidade antiga, de uma irredutibilidade deste escritor ao sistema mediático. Isso, em si, não faz dele um bom nem um mau escritor, mas tem o mérito de mostrar que a história da literatura, e da arte em geral, está cheia de pessoas impacientes, intolerantes e que nem se importam de ser considerados energúmenos. O terror nas letras é uma virtude que devia ser mais cultivada.