O futuro era tão lindo

(Francisco Louçã, in Expresso, 06/10/2018)

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Com a desaceleração do comércio mundial, cujo ritmo se reduziu para metade com a crise, e com a produtividade estagnada, resta uma forma de gerar lucros, o sonambulismo financeiro.


Walter Inge, deão da catedral de São Paulo em Londres, terá escrito nos idos de 1229 que, “quando os nossos primeiros pais foram expulsos do Paraíso, Adão disse a Eva: minha querida, vivemos numa época de transição”. “Não é a primeira vez que alguém pega numa pena para escrever estas palavras: ‘os tempos mudaram’”, é agora Agustina no seu “Ternos Guerreiros”. A ideia de uma transição tormentosa assombra todos os tempos de incerteza e hoje não será diferente. A transição é sempre ambiguidade: como é que os tempos mudam? Adão e Eva não sabiam (e, diz o folclore, foi por culpa deles que chegámos aqui). Na verdade, nós também não, a crer nas intervenções recentes de Paul Krugman, um Nobel da Economia e acérrimo crítico de Trump, e, de modo ainda mais surpreendente, de Gordon Brown, que sucedeu a Tony Blair e teve o azar de ser primeiro-ministro entre 2007 e 2010, ao tempo do crash.

SONÂMBULOS

Brown explicou à BBC há um par de semanas que “estamos a caminhar para a próxima crise como sonâmbulos”. Na sua análise, o sistema financeiro voltou aos seus vícios: os ventos da desregulamentação vêm da Casa Branca, os bancos multiplicaram os riscos durante os tempos de juros baixos, relançaram as operações de finança-sombra e continuam na mesma senda. Este pessimismo radical não resulta de uma tentativa de ficar na fotografia dos adivinhadores da crise (Roubini já está a anunciar que a crise será em 2020), mas de uma desilusão profunda quanto aos seus próprios feitos: Brown foi o criador do G20, na expectativa de conseguir uma coordenação da globalização, e saiu-lhe Trump.

Paul Krugman, num artigo recente, “O futuro da economia já não é o que costumava ser”, inventaria algumas das condições para essas dificuldades no futuro próximo. Política orçamental pró-cíclica, ou seja, austeridade agravando as crises, além de erros nos modelos teóricos que produziram previsões ideologicamente enviesadas, tudo se juntou, na opinião dele, para termos uma condução económica perigosa. Como sonâmbulos, então. Mas quais são os tons deste pesadelo?

O primeiro é que a globalização amplificou a crise. Há muitas formas de o constatar, mas todas confirmam o ponto: criaram-se formas de blindagem internacional contra a tributação do capital (os impostos médios sobre lucros nas economias desenvolvidas desceram de 44% na década de 1990 para 27% agora), o que agrava a desigualdade, tanto mais que em regime de livre circulação financeira são impostas fortes restrições às políticas fiscais nacionais, as únicas que são redistributivas. Como, no caso da União Europeia (UE), os instrumentos orçamentais estão limitados por regras restritivas, as autoridades podem fazer tudo menos o que é necessário para responder a uma recessão, e esse é o medo de Gordon Brown, ele teme que na próxima seja o salve-se quem puder.

O AMOR A KIM JONG-UN

O episódio curioso da declaração de amor de Trump a Kim Jong-un é a contrapartida de uma política não menos surpreendente na gestão do comércio mundial. Numa espiral curiosa, a aproximação à Coreia do Norte, a economia mais insignificante da zona e politicamente dependente de Pequim, ocorre ao mesmo tempo que Washington desencadeia uma guerra comercial com a China. Nesse namoro ganha-se pouco e nessa guerra perde-se muito: aparentemente, Trump e os seus conselheiros nem se dão conta de que uma boa fatia das exportações chinesas para os EUA é de empresas estrangeiras (em 2014 eram 60%), ou que as importações dos EUA são em parte o benefício de investimentos norte-americanos no estrangeiro (por exemplo, detêm 44% do stock de capital estrangeiro do México). Assim, a tributação destas importações nem resolve os problemas da balança comercial norte-americana, nem do défice orçamental, que aliás Trump agrava com a redução de impostos sobre os ricos, nem das empresas nacionais (o comércio mundial de bens e serviços intermédios é o dobro do dos produtos para consumo final, pelo que as empresas são as primeiras a perder rentabilidade com as tarifas). Entretanto, o programa chinês de grandes investimento em infraestruturas, no valor de um bilião de dólares, para ser executado em 60 países, é um projeto de dominação para o Pacífico. Assim, a Trump só resta a força bruta: como precisa de atrair capitais para financiar o seu défice, baseia-se no poder do dólar para manter esse fluxo. Um animal ferido é o pior de todos e é o terceiro pesadelo.

Na Europa, pior ainda. Branko Milanovic, da Universidade de Nova Iorque, resumia num tweet a diferença entre a ação económica chinesa e a da UE: “A China faz algo de concreto, estradas, ferrovias, pontes, ao passo que a UE oferece conferências intermináveis dedicadas ao tema da moda em que os consultores da UE embolsam o dinheiro da UE”.

E DISTRIBUIR O QUÊ?

Com a desaceleração do comércio mundial, cujo ritmo se reduziu para metade com a crise, e com a produtividade estagnada, resta uma forma de gerar lucros, o sonambulismo financeiro. É esse o medo de Gordon Brown e de Krugman. Eles sabem que, mesmo havendo diferenças institucionais entre a crise de 2007-8 e a que temem que se aproxime (uma parte da dívida está agora nos bancos centrais, menos propensos a pânicos), a fagulha surgirá da desregulação.

Ora, este sistema baseado no lucro financeiro sustenta um regime que vai produzindo fraturas fundamentais. Ao contrário dos barões industriais, os financeiros estão fora do alcance das contingências democráticas, dominam os governos sendo invisíveis. Para mais, como o seu negócio são rendas, capturam os decisores políticos e criam condições de continuidade de políticas qualquer que seja o governo. Ou seja, como a sua hegemonia social não se baseia em políticas distributivas, ao contrário da história contemporânea das democracias, estamos perante uma forma diferente de exercício do poder. A consequência da não-distribuição são os populismos xenófobos, que estão a destruir a UE a partir do seu partido dominante, a direita democrata-cristã. Mais do que em Itália, o perigo também mora na Alemanha.


DE MEDALHA AO PEITO

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Há um saboroso pormenor na recente entrevista de António Filipe ao “Público”. O veterano deputado comunista, que tem sido apresentado pelo ministro “anónimo” daquele jornal como ministeriável, diz, com a sua graça de sempre, que “impostos com nome de comunistas não é medalha que o PCP queira ter ao peito”. Vinha isto a propósito do “imposto Mortágua”, que tributa casas milionárias num adicional de IMI e que já permitiu cobrar mais de 80 milhões de euros. O valor cobrado é mais do dobro do que o Governo pôs em cima da mesa de negociações para aumentar os funcionários públicos, que vão para dez anos de salários congelados, o que não deixa de ser um argumento razoável para a negociação que ainda anda tão embrulhada.

Quando a proposta desse imposto foi apresentada, o PCP manifestou o seu descontentamento, com o argumento de que seriam necessárias outras medidas fiscais e que as ia apresentar. Depois, naturalmente, votou a favor e das alternativas não se voltou a ouvir falar. Agora, entusiasta do “imposto Mortágua”, até propõe o seu reforço neste Orçamento do Estado com um novo escalão. Teremos portanto o “escalão João Oliveira (foto) no imposto Mortágua”, se tal for aprovado, e seria positivo que fosse. Mas essa medalha do nome, o partido não quer nada a ver com isso.

Fica então a pergunta: se, para combater a evasão fiscal e, neste caso, para tributar a acumulação de capital imobiliário e a sua valorização invisível, são precisos impostos adequados, ninguém os deve propor para não ficar com a mancha da “medalha ao peito”? Ou os impostos são filhos de pai e de mãe incógnitos? O que me parece difícil é querer o resultado e não querer a responsabilidade. Ou antes, duvido que seja política realizadora, essa de desejar que apareça uma medida desde que outrem a proponha, que com impostos não me meto porque só o nome é desagradável.

O facto indesmentível é este: para combater a especulação imobiliária ou financeira, a tributação é o instrumento mais poderoso. Isso chama-se imposto. Será defeito meu, mas aprecio quem tem a inteligência e determinação de propor e fazer aprovar os impostos certos para beneficiar o meu país, e até acho interessante a contribuição de quem, não querendo propô-los por razões estéticas, acaba sempre por aprová-los por serem medidas fundamentais.

Os EUA arriscam perder a guerra comercial com a China

(Joseph Stiglitz, in Expresso, 04/08/2018)

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Os EUA têm, na verdade, um problema, mas não é a China. É interno. A América tem poupado pouco. Trump e muitos americanos têm uma visão tremendamente míope


NOVA IORQUE — O que começou por ser uma escaramuça comercial, com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a impor taxas aduaneiras sobre o aço e o alumínio, parece estar rapidamente a transformar-se numa guerra comercial generalizada com a China. Se as tréguas aprovadas entre a Europa e os EUA se mantiverem, Washington enfrentará quase exclusivamente Pequim, em vez de enfrentar o mundo (e, evidentemente, o conflito comercial com o Canadá e o México continuará em lume brando, dadas as exigências dos EUA que não podem nem devem ser aceites por qualquer um desses países).

Além da afirmação verdadeira, mas agora já óbvia, de que todos perderão, o que podemos dizer das consequências possíveis da guerra comercial de Trump?

Em primeiro lugar, a macroeconomia triunfa sempre: se o investimento nacional dos EUA continuar a exceder as suas poupanças, o país terá de importar capital e de manter um défice comercial assinalável. Pior que isso, devido aos cortes fiscais promulgados no fim do ano passado, o défice orçamental dos EUA está a atingir novos máximos — recentemente, foi previsto que ultrapassasse 1 bilião de dólares até 2020. O que significa que, quase certamente, o défice comercial aumentará, independentemente das consequências da guerra comercial. O único cenário em que isso não acontecerá é se Trump levar os EUA para uma recessão, fazendo os rendimentos diminuir tanto que o investimento e as importações caiam a pique.

A “melhor” consequência da obtusa insistência de Trump no défice comercial com a China seria a melhoria do saldo bilateral, contrabalançada por um aumento correspondente no défice com um qualquer outro país (ou países). Os EUA poderiam vender mais gás natural à China e comprar menos máquinas de lavar; mas venderiam menos gás natural a outros países e comprariam máquinas de lavar, ou quaisquer outros bens, à Tailândia ou a outro país que tenha evitado a colérica ira de Trump. Mas, como os EUA interferiram com o mercado, pagariam mais pelas suas importações e conseguiriam menos pelas suas exportações do que em caso contrário. Em resumo, a ‘melhor’ consequência significa que os EUA ficarão pior do que estão hoje.

Os EUA têm um problema, mas não com a China. O seu problema é interno: a América tem poupado demasiado pouco. Trump, como muitos dos seus compatriotas, tem uma visão imensamente míope. Se tivesse um mínimo de entendimento da economia e uma visão de longo prazo, teria feito o que pudesse para aumentar a poupança nacional. Isso teria reduzido o défice comercial multilateral.

A ‘MELHOR’ CONSEQUÊNCIA SIGNIFICA QUE OS EUA FICARÃO PIOR DO QUE ESTÃO HOJE

Existem soluções rápidas e óbvias: a China poderia, de facto, comprar mais petróleo americano, e vendê-lo, de seguida, a outros países. Isto não faria qualquer diferença, a não ser talvez um ligeiro aumento dos custos de transação. Mas Trump poderia anunciar, então, que teria eliminado o défice comercial bilateral. Mas, na verdade, será difícil reduzir significativamente o défice comercial bilateral de um modo relevante. À medida que diminuir a procura de bens chineses, a taxa de câmbio do renminbi depreciará, mesmo sem qualquer intervenção governamental. Isto compensará, em parte, o efeito das taxas aduaneiras dos EUA; mas, ao mesmo tempo, aumentará a competitividade da China relativamente a outros países. E isso acontecerá mesmo se a China não usar outros instrumentos que detém, como os controlos sobre os salários e os preços, ou se incentivar fortemente aumentos de produtividade. A balança comercial global da China, tal como a dos EUA, é determinada pela sua macroeconomia.

Se a China intervier de forma mais ativa, e retaliar mais agressivamente, a alteração na balança comercial entre os EUA e a China pode ser ainda mais reduzida. A dor relativa que cada um provocará ao outro é de difícil determinação. A China tem um maior controlo sobre a sua economia, e tem procurado orientar-se para um modelo de crescimento baseado na procura interna, em vez de no investimento e nas exportações. Os EUA estão simplesmente a ajudar a China a fazer o que tem estado a tentar fazer. Por outro lado, as ações dos EUA surgem numa altura em que a China tenta gerir uma alavancagem excessiva e uma capacidade excessiva; em alguns sectores, pelo menos, os EUA dificultarão estas tarefas.

Se um país entra numa guerra, comercial ou não, deve certificar-se de que tem bons generais — com objetivos claramente definidos, uma estratégia viável, e apoio popular — no comando. É aqui que as diferenças entre a China e os EUA são importantes. Nenhum país poderia ter uma equipa económica menos qualificada que a de Trump, e a maioria dos americanos não apoia a guerra comercial.

O apoio do público esmorecerá ainda mais à medida que os americanos compreenderem que perderão duplamente com esta guerra: por um lado, os empregos desaparecerão, não apenas devido às medidas retaliatórias da China, mas também porque as taxas aduaneiras dos EUA aumentam o preço das exportações dos EUA e as tornam menos competitivas; e, por outro lado, aumentarão os preços dos bens que compram. Isto pode forçar a descida da taxa de câmbio do dólar, aumentando ainda mais a inflação nos EUA — e promovendo uma oposição ainda maior. A Reserva Federal terá então de aumentar as taxas de juro, originando um enfraquecimento do investimento e do crescimento, e mais desemprego.

Trump já demonstrou como responde quando as suas mentiras são expostas ou quando as suas políticas falham: dobra a aposta. A China disponibilizou repetidamente saídas airosas para que Trump abandonasse o campo de batalha e declarasse vitória. Mas ele recusa aceitá-las. Talvez possamos encontrar esperança em três outras características suas: a sua ênfase na aparência em vez da substância, a sua imprevisibilidade, e o seu carinho pela política de “homem forte”. Talvez, numa reunião grandiosa com o Presidente Xi Jinping, venha a declarar que o problema foi resolvido, com alguns pequenos ajustes de taxas aqui e ali, e alguma nova iniciativa no sentido da liberalização do mercado que a China já tenha planeado anunciar, e todos poderão regressar felizes a casa.

Nesse cenário, Trump terá “resolvido”, de forma imperfeita, um problema criado por si. Mas o mundo que se seguir à sua disparatada guerra comercial continuaria a ser diferente: mais incerto, menos confiante nas normas do direito internacional, e com fronteiras mais rígidas. Trump mudou o mundo, permanentemente, para pior. Mesmo nos melhores cenários possíveis, o único vencedor é Trump — com o seu ego desmedido um pouco mais inflado.


Prémio Nobel da Economia, professor universitário na Universidade de Columbia.© Project Syndicate 1995-2018

Esta guerra não é comercial

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/07/2018)

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Entra Trump na cimeira da NATO e exige aos aliados o pagamento dos 2% prometidos para a defesa, insinuando que há contas atrasadas. Subiu depois para 4%. Para Portugal isso significaria cerca de oito mil milhões por ano (já para conseguir metade o Governo pede financiamento externo). Ao mesmo tempo, o Presidente norte-americano aplica tarifas alfandegárias contra os europeus, como se fossem ameaça para a sua segurança. Entendamo-nos, há aqui uma guerra e não é só comercial. E vai continuar.

O MEU BOTÃO É MAIOR DO QUE O TEU

A estratégia de Trump, alinhavada em tweets e prosápias, tem uma lógica que não deve ser ignorada: afirma o poder militar e político. Desviar recursos de outros países (os tais 4%), mostrando que o meu botão é maior do que o teu, como Trump dizia a Jong-un, é para isso uma política coerente.

Assim, os EUA usam as armas que lhes restam no plano económico, como o dólar, cuja supremacia garante o financiamento da sua dívida nacional, e a capacidade tecnológica e científica de ponta. Mas na produção de massas e mesmo em algumas tecnologias, outras economias já ultrapassaram os EUA e portanto querem o comércio livre. Por isso, aos países europeus, que têm um superavit comercial, Trump exige que paguem as contas da defesa e que restrinjam as suas exportações, e vira-se contra a China com medidas que horrorizam os economistas liberais. Krugman chama a isto a política vudu.

A LEI DA FORÇA

O problema não é novo. Adam Smith, que ganhou os seus pergaminhos estudando a evolução comparada das economias, mostrava com candura que o comércio livre é sempre a vantagem do mais forte: “Quando um homem rico e um homem pobre fazem um negócio, ambos aumentarão a sua riqueza, mas a do homem rico aumentará em proporção maior do que a do homem pobre. Do mesmo modo, quando uma nação rica e uma pobre estabelecem uma relação comercial, a nação rica terá a maior vantagem, e por isso a proibição desse comércio é-lhe mais prejudicial”.

Um século mais tarde, um Presidente norte-americano, o general Ulysses Grant, explicou a um grupo de empresários o que faria o seu país nos séculos seguintes: “Durante séculos a Inglaterra apoiou-se no protecionismo, levou-o a extremos e conseguiu assim resultados satisfatórios. Não há nenhuma dúvida de que foi a este sistema que ficou a dever a sua força atual. Depois de dois séculos, a Inglaterra achou conveniente adotar o comércio livre porque pensa que o protecionismo já não lhe pode oferecer nada. Muito bem, cavalheiros, o meu conhecimento do nosso país leva-me a acreditar que dentro de 200 anos, quando a América tiver tirado da proteção tudo o que esta pode oferecer, também adotaremos o livre comércio”. Bastou meio século. Assim que se tornaram a potência dominante em termos económicos e tecnológicos, e logo depois monetários, os EUA passaram a defender o comércio livre que dominavam. Perdendo hegemonia, voltam ao protecionismo.

A lei é portanto simples: o mais forte defende o comércio livre, o mais fraco resiste. Os EUA procuram agora a guerra comercial porque a sua economia é vulnerável. Assim, esta guerra continuará porque os EUA não voltarão a ter a hegemonia de que beneficiavam até agora. O nosso tempo será de tensão comercial e política.

O PODER DOS FRACOS

Na época dos nossos pais, um economista liberal e defensor do comércio livre, John Keynes, testemunhando perante uma comissão parlamentar nos anos trinta do século passado, reconhecia a evidência que o atormentava: “Tenho muito receio do protecionismo como política de longo prazo, mas nem sempre podemos adotar uma visão de longo prazo (…) a questão, na minha opinião, é até que ponto estamos preparados para arriscar desvantagens de longo prazo para conseguir alguma ajuda na nossa posição imediata”. Ou seja, a dificuldade leva a condicionar o comércio.

A escalada de medidas de Trump contra a China é ilustrativa dessa aflição. Em fevereiro o alvo eram os painéis solares e máquinas de lavar, que valem menos de 10 mil milhões de dólares, em março eram o alumínio e o aço, num total de 46 mil milhões de dólares, em abril a conta subia para 50, em maio para 100 e em junho surgiu a ameaça de atingir os automóveis, no valor de 275 mil milhões. Em julho o alvo duplica. As taxas em vigor desde a última sexta-feira são só o início, mas esta semana a Casa Branca já ameaçou aplicar mais 10% sobre outros 200 mil milhões de dólares de exportações chinesas. Assim, Trump, que parece perdido, só faz o que outros antes dele já defenderam. Só que na história nunca houve uma potência dominante a provocar a guerra comercial. Estamos então a assistir à decadência de uma época. É isso que é perigoso. Trump abre as portas dos infernos.


“Poesia Reunida”, de Manuel Resende

Manuel Resende coligiu na Cotovia a sua poesia de 1983 a 2004, todos os poemas publicados, mais alguns inéditos. São textos de uma cultura, de uma história e de uma revolução que fez esta embrulhada de um país arcaico de repente mergulhado na modernidade, mas também do que se passou nos anos de bruma, depois das desilusões, dos abandonos, da tristeza desses naufrágios nas praias da vida quotidiana. Ou também dos encontros, dos livros, das ideias. Um desses poemas é assim:

Nocturno da Rua da Palma

    Passado tanto tempo, a chamada vida,
Seguimos por essas ruas, vergados à fria bruma,
A nossa verdadeira casa,
Confinados a alguns amigos.
Onde estão as festas de anteontem, os risos e os
espelhos,
Se bem que baratos, retratos feéricos das nossas caras?
Está frio, está frio e, entre amigos,
poucos, vamos
encostando os corpos, que talvez assim se passe o
Inverno.

E o livro levará quem o lê a paragens surpreendentes, do herói do gueto de Varsóvia ao pranto de Bartolomeu, de Rimbaud a Arendt, do Porto, “cidade sem nome”, a Dubrovnik, de Kaváfis (de que M.R. é tradutor) a Ruy Belo e a Adília Lopes, até passando por uma evocação de um aventureiro desconhecido, Raymond Molinier, tudo envolto nessa “oralidade” opressiva que é a dos nossos dias.


Esquerda pequenina

A ‘Catalyst’ é uma publicação da revista “Jacobin”, uma das mais conhecidas publicações da esquerda norte-americana, com leitores em todo o mundo. A polémica em que se envolveu, com a decisão de afastar Robert Brenner da equipa editorial, tem por isso impacto alargado e revela um espírito censório que se suporia interdito numa esquerda defensora da liberdade de opinião.

Robert Brenner, professor da Universidade da Califórnia, é um dos historiadores económicos internacionalmente mais reconhecidos, como autor de “Economia da Turbulência Global”, um dos livros que anteciparam as contradições da financeirização, e outros trabalhos. É editor da “New Left Review”, a mais destacada revista de pensamento de esquerda na Europa. O seu afastamento é um ato de mesquinhez, que revela muito do espírito de seita que sobrevive em alguns coletivos editoriais e políticos.

Vários intelectuais tomaram posição contra esta forma de censura e anunciaram que se recusariam a colaborar com a publicação nestas condições. Foi o caso de Costas Lapavitsas, da Universidade de Londres, de Mike Davis, também editor da “New Left”, ou de Kim Moody, editor de “Labor Notes”, a revista de referência no sindicalismo norte-americano. Têm razão, os debates de ideias exigem responsabilidade e liberdade.


Johan chorou no tribunal

A Associated Press contou a história: no dia 6 de julho, um miúdo de um ano, Johan, foi presente ao tribunal de Phoenix, no Arizona, Estados Unidos. Foi separado dos pais quando tentavam entrar na fronteira e desde então a criança ficou sob custódia policial. No dia do julgamento foi-lhe garantido um advogado.

O juiz John Richardson confessou que estava “embaraçado por ter que perguntar à criança se compreendia os procedimentos legais”. “Não sei como explicar isto, a não ser que imaginasse que uma criança de um ano pode ter estudado a lei da imigração”, acrescentou o juiz. A agência de informação relata que Johan chorou no tribunal.

Há cerca de três mil crianças ainda presas nos Estados Unidos e separadas dos pais. A Administração Trump mantém uma guerra nos tribunais para impedir a alteração destes procedimentos policiais.