As relações comerciais com os EUA

(Por Prabhat Patnaik, 20/05/2019)

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A Grã-Bretanha, quando era o principal país capitalista do mundo, tinha um défice em conta corrente em relação aos países emergentes, como a Europa Continental e os Estados Unidos, no final do século XIX e início do século XX. Na verdade, é da natureza do país líder ter esse défice, uma vez que proporciona a esfera de acção para que outros cresçam dentro do arranjo de moeda internacional presidido pelo país líder. 

Os EUA também têm um défice em conta correntevis-à-vis os países emergentes de hoje. A diferença entre os dois está no facto de que a Grã-Bretanha não apenas cumpria seu défice corrente, mas chegava a fazer exportações de capital para os mesmos países com os quais tinha um défice em conta corrente – e compensava-o pelo excedente da conta corrente engendrado em relação às suas colónias, para as quais fazia exportações “desindustrializantes”, de cujo excedente de exportação adicionalmente se apropriava de modo gratuito para liquidar seus pagamentos. Em suma, a Grã-Bretanha não teve de enfrentar qualquer problema de balança de pagamentos, apesar de ter défices substanciais em conta corrente e na conta de capital em relação aos novos países emergentes daquele tempo. 

Os EUA não têm essa possibilidade em aberto. Embora ainda existam excedentes apropriados das antigas “colónias” por causa dos direitos de propriedade intelectual e outras destas extorsões, estas nada são quando comparadas ao que é necessário para equilibrar os pagamentos dos EUA. A descolonização política tornou impossível aos poderes metropolitanos imporem às suas antigas “colónias” um sistema de transferências gratuitas. Os EUA, portanto, expandiram sua dívida externa por um longo tempo a fim de cumprirem suas obrigações de balança de pagamentos, criando pela primeira vez na história do capitalismo uma situação em que a mais poderosa potência capitalista do mundo também é a mais endividada externamente. Mas agora ela deseja controlar seu endividamento externo. 

Além disso, ela não pode sequer manter seu nível de actividade interno fazendo exportações “desindustrializantes”. Tais exportações podiam ser feitas anteriormente porque a Grã-Bretanha, a potência colonial mais forte, tinha estes mercados coloniais “disponíveis”; ela podia acessá-los à vontade. Mas os EUA não têm mercados coloniais “disponíveis”. 

Confrontado com um declínio na actividade interna e um aumento do endividamento externo, os EUA embarcaram numa nova estratégia, de serem proteccionistas e, ainda assim, de “persuadir” os países emergentes a aceitarem voluntariamente seu proteccionismo unilateral.

Tentaram convencer a China a aceitar o seu proteccionismo unilateral. Deste modo, espera fazer com que outros países suportem o fardo do ajuste, enquanto aumenta o nível de actividade interna e ao mesmo tempo fecha seu défice na balança de pagamentos. Mas não teve êxito em relação à China, uma vez que o governo chinês acaba de aplicar tarifas mais altas a todo um conjunto de exportações dos EUA. 

E agora [o governo dos EUA] está a tentar persuadir a Índia a aceitar seu proteccionismo sem retaliar e se possível reduzir suas próprias tarifas, de modo a que as exportações americanas possam ter mais facilidade para entrar no mercado indiano e deslocar as exportações asiáticas em direcção às quais a Índia se deslocava cada vez mais ao longo da última década ou pouco mais. Em breve uma equipe americana chegará à Índia a fim de tentar convencer o país a aceitar voluntariamente o proteccionismo dos EUA e reduzir a magnitude do défice americano nas relações bilaterais. 

Os dois problemas básicos que os EUA têm em relação à Índia são: primeiro, o substancial saldo de mercadorias a favor da Índia e, segundo, o regime de direitos de propriedade intelectual da Índia que, apesar de ser compatível com TRIPS, não beneficia os Estados Unidos. 

A balança de mercadorias a favor da Índia chegou a US$27,3 mil milhões em 2017; supõe-se ter baixado um pouco, em US$4 mil milhões em 2018, devido ao aumento da procura indiana por uma série de produtos americanos, em particular aviões civis e energia. Mas permanece, no entanto, um número considerável. Um fechamento do hiato escancarado na balança de pagamentos é o que os EUA gostariam. 

Cerca de uma década atrás a participação dos EUA nas importações da Índia era de 8,5%; agora caiu para 5,7%. Ao longo do mesmo período, a participação da China aumentou de menos de 11% para mais de 16%. A Índia, em suma, tem-se movido de fontes americanas para fontes asiáticas nas suas importações e os EUA gostariam de alterar isso. 

Durante a última década os EUA forçaram a Índia a mudar sua atitude em relação a commodities como as maçãs e amêndoas que importou. Da mesma forma, está a remover um certo número de ítens das exportações indianas do Sistema de Preferências Generalizadas. Além disso, também é provável que haja uma mudança nas importações indianas de petróleo provenientes do Irão para, pelo menos em parte, para os EUA, devido à pressão americana para boicotar o petróleo iraniano. O governo de Modi, ao contrário da China, está completamente alinhado com a exigência americana de não comprar ao Irão, apesar de o petróleo iraniano ser mais barato e de os EUA deixarem claro que não venderiam à Índia a um preço mais barato. Em matéria de petróleo, portanto, a Índia simplesmente abandonou sua posição de não ser obrigada a comprar a um preço mais alto. Todas essas áreas, no entanto, embora de alguma importância na perspectiva indiana, ainda não representam muito do ponto de vista dos EUA. 

A outra área em que os EUA pressionarão a Índia é em relação à agricultura, na qual os EUA argumentam há muito que a Índia tem dado subsídios ao arroz e ao trigo superiores ao permitido pela OMC. Apesar de os próprios EUA terem aumentado seus subsídios de US$61 mil milhões quando a OMC foi formada, em 1995, para US$135 mil milhões em 2016, isso é supostamente aceitável, ao passo que os subsídios da Índia, que são dados a uma grande massa de pobres camponeses indigentes, não o são, porque “distorcem preços”. Como nos EUA há muito poucos produtores no sector agrícola, eles podem receber subsídios directamente sem causar quaisquer “distorções de preço”, muito embora esses “subsídios” sejam utilizados para capturar o mercado global. Mas na Índia, onde há milhões de camponeses, subsídios directos não podem ser dados na forma de apoio ao rendimento; os subsídios têm de ser concedidos sob a forma de apoio aos preços e é precisamente isto que tem sido contestado pelos EUA. 

A lei de patentes aprovada na Índia em conformidade com os direitos de propriedade intelectual (TRIPS) foi um golpe para o sector de medicamentos genéricos. Antes disso, a Lei de Patentes indiana fora uma peça legislativa modelar que em certa medida rompeu o monopólio em tecnologia dos países avançados. Mas isso teve de ser abandonado para torná-la compatível com o TRIPS, aumentando a duração das patentes e estendendo as patentes de processo para patentes de produto. Mesmo isso, no entanto, não foi suficiente para os EUA, os quais desde então têm pressionado sistematicamente a Índia para que desencoraje empresas de genéricos. Esta pressão continuará a ser exercida pelos visitantes da delegação comercial americana. 

O que a posição americana demonstra é que o argumento do livre comércio está dependente da existência de colonialismo. Quando o colonialismo reinou supremo, pode-se ser hipócrita sobre o livre comércio, uma vez que as colónias poderiam absorver as mercadorias não vendidas. O livre comércio parecia uma coisa boa, pois nenhum país avançado piorou com isso. Não que alguma vez tenha havido um comércio completamente livre; mas o país líder poderia praticar o livre comércio sem ser incomodado por isso. E as próprias colónias para as quais o excedente era exportado não contavam. Mas quando não há colonialismo, mesmo este argumento entra em colapso. E é isto que o mundo tem estado a enfrentar nos últimos anos. 

A aceitação voluntária do proteccionismo dos EUA por países como a China e a Índia equivaleria a aceitar o fardo de impulsionar a procura agregada na economia mundial. Mas, como eles não podem sequer usar seus respectivos Estados para essa finalidade, como os défices orçamentais não serão permitidos além de um ponto, eles podem usar apenas a política monetária; mas a política monetária será inadequada para promover a procura agregada numa situação de deficiência geral da procura. Em consequência, a deficiência da procura agregada continuará e, portanto, a luta pela captura do maior mercado possível. O esforço americano para tornar seu proteccionismo aceitável para os outros simplesmente não terá êxito. 


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A China leva a melhor sobre a Alemanha

(Por Wolfgang Münchau, in Diário de Notícias, 05/03/2019)

Wolfgang Munchau

Provavelmente, a maior questão geopolítica para a UE atualmente, e especialmente para a Alemanha, são as relações futuras com a China. Na semana passada, uma revista alemã de negócios informou que um alto funcionário da chancelaria de Angela Merkel havia visitado a China para explorar as possibilidades de um acordo de não espionagem. Tais acordos geralmente não valem o papel em que estão escritos. O contexto desta visita foi a proposta da Huawei, fabricante chinês de equipamentos de telecomunicações, para a quinta geração de licenças móveis na Alemanha (sobre a qual uma decisão está prevista para este mês). Um acordo de não espionagem permitiria à Alemanha fingir que afinal a China não constitui uma ameaça à segurança.

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A relação económica entre os dois países é interessante. A Alemanha é ambivalente em relação à China. Precisa de tecnologia chinesa, como a da Huawei. As operadoras de comunicações móveis da Alemanha estão particularmente interessadas na proposta de 5G da Huawei porque já usam o hardware da empresa chinesa nas suas redes.

Mas a Alemanha também está preocupada com as empresas chinesas que adquirem a sua tecnologia. Em dezembro passado, uma nova lei reduziu o limite de participações nas ações que acionam automaticamente uma investigação de fusões. A nova estratégia industrial, recentemente proposta por Peter Altmaier, ministro da Economia, quer proteger setores inteiros das aquisições chinesas – aviões, finanças, telecomunicações, comboios, energia e robótica.

No seu recente livro, Belt and Road, Bruno Maçães, ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus de Portugal, observa que o relacionamento sino-alemão mudou profundamente. Em tempos, a Alemanha via a China como um mercado de exportação de maquinaria com a qual a China desenvolveria a sua base industrial. Hoje, a China está a tornar-se o parceiro sénior no relacionamento.

A indústria automóvel será fundamental. É a fonte do sucesso passado da Alemanha e a prosperidade futura da China, mas os dois lados têm interesses opostos. O excesso de confiança na tecnologia diesel tornou a indústria automóvel alemã um investidor tardio em inteligência artificial e baterias elétricas. Maçães salienta que a China joga um jogo diferente. Os chineses não estão interessados em garantir principalmente as unidades de produção. Eles querem controlar toda a cadeia de valor do carro elétrico. Para isso, a China bloqueou grande parte do suprimento global de cobalto, um metal essencial na produção de baterias.

Os dois países têm muito em comum. Ambas são economias voltadas para a exportação, com grandes excedentes de poupança externa. Mas a estratégia económica da Alemanha não é tão consistente. A preferência política alemã é reduzir a dívida pública. No entanto, o maior problema do país está a ficar para trás na corrida tecnológica. A consolidação orçamental excessiva tem sido a principal causa do subinvestimento em estradas, redes de telecomunicações e outras novas tecnologias.

A Alemanha também está a subinvestir no seu setor de defesa. Ursula von der Leyen, ministra da Defesa, propôs recentemente um plano para aumentar o orçamento de defesa dos atuais 1,3% para 1,5% do produto interno bruto até 2023. Mas Olaf Scholz, ministro das Finanças, opõe-se.

O episódio é sintomático de um problema europeu fundamental: ao contrário da China, a política macroeconómica, a política industrial e a política externa e de segurança são executadas independentemente umas das outras. A proposta de 5G da Huawei mostra que a UE não está bem preparada para lidar com uma conexão entre segurança e política industrial. Os europeus também não prestaram muita atenção ao impacto das suas regras orçamentais, principalmente nas políticas de defesa e segurança. A China, pelo contrário, tem uma abordagem integrada à política económica e externa.

A China está a promover o renmimbi como uma moeda global, com o objetivo final de desafiar o monopólio do dólar como a moeda dos mercados de produtos. Os políticos europeus não estão acostumados a pensar em tais categorias políticas. Os alemães, em particular, nunca quiseram que a zona euro promovesse o euro como moeda global. No passado, o pensamento macroeconómico ultraconservador da Alemanha costumava ser mais ou menos consistente com os seus interesses industriais. Isso já não acontece: a UE está entalada entre duas potências económicas opostas e tem um regime monetário propenso a crises.

A redução da dívida do setor público foi uma escolha política. Se a Alemanha tivesse, ao contrário, investido em defesa e vantagem industrial futura, permitindo que a posição orçamental fosse até onde quisesse, estaríamos hoje num lugar diferente, mas isso exigiria um certo grau de pensamento geoestratégico que está ausente nas discussões políticas em toda a UE.

Talvez os europeus tenham estado tão autocentrados nos últimos 10 anos que não viram o que estava a acontecer. O protecionismo agora emergente, a súbita perceção de uma necessidade de proteção contra aquisições chinesas, são sinais de que a complacência está prestes a transformar-se em pânico.

© The Financial Times Limited, 2019.


Como os defensores da globalização cederam o campo a Donald Trump

(Por Robert Kuttner, in A Viagem dos Argonautas, 12/09/2019)

Quando se trata de compreender a dinâmica da globalização e a reação contra ela, a descrição mediática das guerras tarifárias de Donald Trump mostra que a visão dominante neoliberal sobre o comércio internacional é tão louca à sua maneira quanto Donald Trump é – e em que Trump é o beneficiário da sua miopia. Deixem-me explicar….


Continuar a ler aqui: A responsabilidade da esquerda na trajetória de ascensão do neoliberalismo – algumas grelhas de leitura – 3. A leitura de Robert Kuttner – B. Como os defensores da globalização cederam o campo a Donald Trump | A Viagem dos Argonautas