Quem fica com os coletes salva-vidas no alto mar da globalização?

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/10/2016)

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                        Daniel Oliveira

Os valões foram a votos para referendar o acordo comercial entre os EUA e o Canadá (CETA – Comprehensive Economic and Trade Agreeement). Como cada uma das regiões belgas tem direito de veto sobre este tipo de decisões do país, o chumbo do CETA obrigaria a uma oposição da Bélgica, que por sua vez bloquearia o acordo da União. Ao que parece, a Valónia terá já tido garantias de algumas alterações no acordo, sobretudo em relação aos “tribunais arbitrais” que protegiam, na prática, as multinacionais das leis e dos tribunais nacionais. Terá também conquistado algumas garantias para os agricultores.

Seja como for, isto foi apenas um aviso. Estou convencido que o TTIP, o acordo com os EUA com um impacto incomensuravelmente maior, entrará em fase semelhante, quer deste quer do outro lado do Atlântico. E alguns acordos assinados pelos EUA, todos com resultados maus para a economia norte-americana, poderão vir a ser revistos. Depois de algumas décadas, pode ser que os principais Estados, por pressão eleitoral, comecem a recuar no caminho que fizeram. Este recuo inclui apenas democracias, o que deixa de fora ditaduras como a chinesa e a União Europeia, caso esta decida retirar aos Estados nacionais, únicas entidades verdadeiramente democráticas na Europa, o direito de vetar este tipo de acordos.

Não surpreendentemente, ouviram-se, antes de ultrapassado o impasse, algumas vozes alemãs dizer que se deveria arranjar-se forma de impedir que um só país pudesse bloquear estes acordos (ficando, no entanto, sujeito a eles). Na prática, como estes acordos retiram soberania aos Estados em matérias tão centrais como as da justiça (por causa dos “tribunais arbitrais” que substituem os comuns para proteger os interesses dos investidores), isto levaria a uma federalização forçada. A integração na União nunca implicou, em qualquer tratado assinado, uma tal perda de soberania. Se os Estados passassem a estar obrigados a aceitar acordos internacionais extracomunitários, mesmo que não os quisessem assinar, entraríamos numa nova fase antidemocrática desta União. Não seria, num entanto, um passo estranho à deriva que a União tem seguido.

Acontece que este referendo não foi motivado por antieuropeístas. Pelo contrário, um dos maiores partidários do “não” foi o ministro-presidente da Valónia, um socialista e militante desta União. Só que a pressão política à esquerda não lhe tem facilitado a vida. Se fosse à direita, como acontece em França, os imigrantes estariam em maus lençóis. Como é à esquerda, o debate não atingiu os mais fracos, mas peixe mais graúdo.

Sempre que estão em causa acordos comerciais internacionais (NAFTA, TPP, TTIP, CETA e tantos outros) reduz-se o debate à dicotomia entre globalização e protecionismo. Isto permite esconder o conteúdo dos acordos e reduzir a conversa a axiomas morais: os protecionistas são contra a modernidade, têm medo da concorrência e do mundo, querem proteger privilégios. E assunto encerrado.

Mesmo que estivesse em causa o protecionismo, esta conversa seria um pouco tonta: todas as pessoas, sociedades, nações ou empresas se protegem. Só uma sociedade suicida dominada por fanáticos que ignoram as consequências práticas das suas posições ideológicas é que considera errado que as lideranças protejam, dentro de determinados valores morais, os o que o elegeram. A ideia de que a globalização é um processo de desproteção das economias que permitiu um jogo justo entre todos só não precisa de ser desmentida porque, tirando meia dúzia de miúdos deslumbrados, ninguém realmente acredita nela. Todas as economias continuam a proteger-se. A questão é saber o que protegem. E esse é que o debate que interessa.

Se estivesse apenas em causa o comércio livre estaríamos a debater o fim de barreiras alfandegárias objetivas e das taxas a elas ligadas. Se não fosse seletiva seria, na minha opinião, uma irresponsabilidade. Mas seria outra conversa. Só que a visão que hoje se tem de barreiras ao comércio livre ultrapassa em muito as taxas aduaneiras ou coisa semelhante, que são quase irrelevantes nos grandes blocos económicos. Essa visão inclui todas as leis dos Estados e todas as políticas determinadas pelos governos.

Para investir, as grandes empresas exigem proteção. Proteção contra mudanças de políticas determinadas pelo voto. Por isso mesmo podem, ao contrário do que acontece nas economias nacionais, ser ressarcidas por perdas de lucros espectáveis caso os parlamentos aprovem leis ou os governos tomem medidas que mudem os pressupostos em que fizeram os seus investimentos. Para isso, são-lhes garantidos a mecanismos de arbitragem, à margem do sistema de justiça, que estão vedados aos cidadãos. Basta que as suas expectativas “legítimas” sejam defraudadas.

Em nome da liberdade de comércio, acordos como o CETA ou o TTIP também protegem as vantagens concorrenciais das empresa que operam com leis ambientais, laborais ou de segurança que lhe são mais favoráveis. E através desta concorrência, que deixa de ter qualquer regra que equilibre o comércio livre com outros valores, cria-se a pressão suficiente para que todos sejam obrigados a nivelar por baixo.

Sim, a oposição a muitos destes acordos internacionais é protecionista. Porque pretende proteger os direitos do consumidor, a segurança alimentar, o direitos laborais e o ambiente. Da mesma fora que os grandes investidores, que têm tido a primeira a segunda e a terceira palavra nestes acordos, querem ser o seu investimento protegido das políticas e das leis nacionais. Cada um trata de proteger os seus interesses, como seria de esperar.

Estes acordos fazem escolhas. Não servem apenas para abrir as fronteiras. Servem para as abrir garantido total proteção a quem investe e nenhuma a todos nós. Na globalização somos todos atirados para alto mar. O que estes acordos fazem é distribuir coletes salva-vidas a meia dúzia, garantindo que a democracia nunca interfere nos seus negócios. O que faz é pôr na lei a lei do mais forte, anulando a função moderadora da democracia. O que faz é proteger uns dos imprevistos enquanto deixa a larga maioria entregue a si mesma.

TTIP: a porta dos fundos para assaltar a democracia

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/05/2016)

ttip

A Parceria de Comércio e Investimento Transatlântico (TTIP) será sempre vendida, como são todos os tratados comerciais internacionais, como uma oportunidade para as economias envolvidas. E todos os que a ela se oponham serão tratados como isolacionistas, inimigos do futuro e da globalização. Neste caso, os números conhecidos não ajudam: a previsão de mais um milhão de desempregados na Europa em troca de um aumento do PIB de 0,06% até 2027 é pouco animadora para os europeus.

Este guião tem a enorme vantagem de permitir não debater o conteúdo do tratado propriamente dito. No caso do TTIP, a vantagem não é pequena, já que aceder ao seu conteúdo é muitíssimo difícil, apesar dele ser determinante para o futuro de todo o continente. A informação disponível é filtrada e, ao contrário do fácil acesso de alguns dos principais interessados económicos a esta negociação, tudo tem sido feito para afastar os cidadãos europeus e norte-americanos de um assunto que, antes de tudo, é a eles que diz respeito. Do lado da Europa as coisas são um pouco mais graves, já que a Comissão Europeia, responsável por esta negociação, não tem, pelo menos do meu ponto de vista, legitimidade democrática para negociar em nosso nome.

A fuga de documentos, tornada possível por várias organizações alemãs, “El Pais” e Greenpeace, mostra que, apesar de uma forte pressão de lobies das grandes empresas norte-americanas para que a Europa agilize, por exemplo, o “princípio da precação” na permissão de venda de produtos que podem ser nocivos para o consumidor, as negociações não estão propriamente em bom estado. O que é uma boa notícia para todos nós, consumidores e trabalhadores.

O que está em causa neste tratado não são obviamente as irrisórias taxas alfandegárias. Desse ponto de vista, o comércio transatlântico não encontraria grandes problemas. O problema, e é quase sempre este o problema que alguns destes tratados tentam ultrapassar, são as diferentes legislações que, aos olhos dos investidores, travam o comércio livre. Falamos de legislação alimentar, de saúde, ambiental, laboral, de privacidade, de regulação financeira ou do papel dado ao Estado na saúde, educação, energia, água, transportes ou audiovisual. Resumido assim, estamos a falar de praticamente tudo o que são políticas públicas. Não é empreitada pequena um acordo internacional querer destruir ou refazer quase tudo o que os Estados andaram, durante décadas, a construir.

São, segundo um artigo bem estruturado do “The Independent”, seis os temas quentes do TTIP: serviços nacionais de saúde, segurança ambiental e alimentar, regulação bancária, privacidade, emprego e a questão democrática, em geral.

No que toca ao Serviço Nacional de Saúde, há, obviamente, um enorme interesse das empresas norte-americanas do sector em entrar no prodigioso mercado europeu. Um interesse que se estende à educação e à água. Na realidade, o que aqui está em causa é, acima de tudo, o grau de presença do Estado e dos serviços gratuitos que oferece. Na lógica que preside ao espírito do TTIP, são, à partida, uma forma de distorção do mercado.

Por ser das áreas onde, na União Europeia (sobretudo nos países mais ricos), há uma sociedade civil mais dinâmica, as questões ambientais e de segurança alimentar têm sido as mais polémicos. Com uma fortíssima presença de transgénicos na sua agroindústria e uma baixa regulação ambiental e alimentar, os investidores norte-americanos esbarram com a legislação europeia, das mais restritivas do mundo nestas matérias. A lógica europeia é a da precaução, a norte-americana é a da liberdade comercial. Um exemplo dado pelo jornal “The Independent”: a União Europeia proíbe 1200 substâncias em produtos cosméticos, os Estados Unidos apenas 12. Como em tudo o resto, o caminho parece estar apontado para a regulação por baixo. O que implicaria um recuo sem precedentes na proteção do ambiente e na segurança dos consumidores. O que agora foi conhecido das negociações levanta legitimas preocupações sobre o poder que as empresas norte-americanas terão na limitação a nova legislação sobre saúde e segurança alimentar.

Na regulação bancária o problema é exatamente inverso. Depois de 2008 os EUA deram alguns passos na regulação financeira. A Europa, como se viu por tudo o que sucedeu depois, não fez o mesmo. A poderosa City londrina (mas não só) tem sido uma eficaz resistente a qualquer mudança. O receio é que Wall Street veja no TTIP uma oportunidade para recuperar a posição de impunidade em que viveu. Mais uma vez, nivelar por baixo.

No que toca à privacidade, há o receio que regressem muitos dos elementos mais polémicos do Acordo Comercial Anticontrafação (ACTA), que tinham, entre outras coisas, a ver com a monitorização das nossas atividades na Internet. Como em muitas outras áreas, teme-se que o TTIP sirva para conseguir num acordo o que já foi rejeitado pelo voto dos deputados de muitos parlamentos nacionais.

Quanto ao emprego, é a própria União Europeia a reconhecer o impacto negativo do TTIP e a aconselhar a políticas para apoiar os novos desempregados. Como se o desemprego não fosse já um dos principais problemas europeus. São conhecidos os efeitos deste tipo de acordos. A NAFTA resultou na perda de milhões de empregos nos EUA. Isto para além de se aplicar às normas laborais a mesma lógica que se poderá vir a aplicar às regras de segurança e ambiente: qualquer avanço nestas matérias é uma alteração nas expectativas dos investidores que tem de ser compensada.

Por fim, a questão democrática. É aquela que já tratei mais vezes aqui no Expresso para tentar explicar o que considero serem os maiores riscos do TTIP. Os Investor-State Dispute Settlment (ISDS) são uma espécie de tribunais arbitrais internacionais. Este tipo de instrumento nasceu como uma garantia dos investidores em países de grande instabilidade política e legislativa. Mas rapidamente foram alargados a outras latitudes, tendo passado a ser um poderoso instrumento de chantagem sobre as democracias e criando uma espécie de sistema judicial mercenário, acima das garantias jurídicas e democráticas dos Estados.

Este tribunal arbitral é composto por representantes dos investidores e do Estado, a que as empresas, e só elas, podem recorrer. Sem as garantias de transparência e equilíbrio dadas por um tribunal comum, podem obrigar os Estados a compensar financeiramente qualquer investidor que tenha sido lesado por legislação ou medida que afete o seu lucro, real ou esperado. Os ISDS são muitas vezes usados em acordos bilaterais. Conhecem-se por isso muitíssimo bem os seus efeitos. Foi por causa deles que o Egito foi processado por empresas europeias por ter aumentado o salário mínimo. Que a Austrália foi processada pela Philip Morris Asia por ter imposto a colocação de imagens chocantes em maços de cigarros. Que El Salvador foi processado pela Pacific Rim por ter fechado uma mina de ouro que contaminava as reservas de água. Que o Canadá foi processado pela farmacêutica Eli Lilly por os seus tribunais terem revogado duas patentes suas. E que a Alemanha está a braços com o processo de uma empresas de energia por ter mudado a sua política em relação à energia nuclear.

O que se vai sabendo do acordo que está a ser desenhado permitirá às empresas norte-americanas recorrer ao este sistema judicial privativo para processar os Estados por perdas caso estes aprovem novas leis que aumentam exigências sociais ou ambientais. Isto chegaria, por mim, para ser contra o TTIP. Da mesma forma que hoje os portugueses sentem limitada a sua capacidade de exercer a democracia por constrangimentos impostos por estruturas europeias não eleitas, isto passará a acontecer por empresas que recorram a estas estruturas de “regulação” para impedirem decisões políticas que consideram afetar os seus interesses. E tudo isto se passará fora de qualquer enquadramento jurídico sólido, transparente e democrático.

Quem, em representação dos cidadãos, desiste de defender os seus interesses em nome do princípio geral do livre comércio não está a representar quem o elegeu. Está a representar, muitas vezes, outros interesses mais poderosos. Mas, apesar de ser importante não embarcar em discursos ingénuos sobre a globalização, como se ela não dependesse hoje e sempre do poder relativo de cada Estado, o problema do TTIP não é abrir mais as fronteiras comerciais entre a Europa e os EUA. O problema é que a barreira relevante ao comércio transatlântico são as diferentes legislações em matérias como o papel do Estado nos serviços públicos, a segurança ambiental e alimentar, a regulação financeira, a defesa da privacidade dos cidadãos e os direitos laborais.

Este acordo implica uma harmonização de realidades tão distantes que só se fará com uma regulação por baixo, destruindo décadas de conquistas sociais e de cidadania, de garantias para o consumidor e de defesa do ambiente. Dando, depois disto, um poder desmesurado a qualquer investidor que se sinta prejudicado por qualquer novo avanço nestas áreas. E tudo isto, que abala os alicerces da Europa que conhecemos, está a ser feito sem qualquer cautela democrática ou garantia de transparência.

O TTIP, cujo estado de acordo e desacordo ficou mais claro graças à fuga de informação ontem, será mais uma forma de conseguir pelas traseiras de negociações opacas aquilo que não se conquistou no voto. Será mais uma machadada na democracia e no modelo social europeu. Saber que as negociações estão mal encaminhadas é uma boa notícia. Mas não isenta os cidadãos europeus de pressionar os Estados para que os representem.

A Nova Geoeconomia

(Joseph E. Stiglitz, in Expresso, 16/01/2016)

Autor

Joseph Stiglitz

COLOMBO, SRI LANKA — O ano passado foi memorável para a economia global. Não só o desempenho global foi dececionante, mas também ocorreram alterações profundas, tanto para melhor como para pior, no sistema económico global.

O caso mais notável foi o acordo de Paris sobre o clima, alcançado no mês passado. Por si só, o acordo é longe de ser suficiente para limitar o aumento do aquecimento global ao objetivo de 2 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais. Mas pôs todos de sobreaviso: o mundo está a mover-se, inexoravelmente, para uma economia verde. Num dia não muito longínquo, os combustíveis fósseis serão principalmente uma coisa do passado. Por isso, qualquer pessoa que invista hoje em carvão estará a fazê-lo por sua conta e risco. Com mais investimentos verdes a desenvolver-se, aqueles que os financiam irão, esperamos, contrabalançar o lóbi poderoso da indústria do carvão, que está disposta a colocar o mundo em risco para fazer valer os seus interesses mesquinhos.

Na verdade, o repúdio de uma economia com elevadas emissões de carbono, em que normalmente dominam os interesses sobre o carvão, o gás, e o petróleo, é apenas uma das várias mudanças importantes na ordem geoeconómica global. Muitas outras são inevitáveis, dada a parte crescente da China na produção e procura globais. O Novo Banco de Desenvolvimento, fundado pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, e África do Sul), foi inaugurado durante este ano, tornando-se a primeira instituição financeira internacional importante liderada por países emergentes. E, apesar da resistência do Presidente dos EUA, Barack Obama, o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas, liderado pela China, foi também fundado, e deverá começar a funcionar este mês.

Os EUA agiram com maior sabedoria no caso da moeda da China. Não impediram a admissão do renminbi ao cabaz de divisas que constituem os ativos de reserva do Fundo Monetário Internacional, os Direitos de Saque Especiais (DSE). Além disso, meia década depois de a Administração Obama ter concordado com pequenas alterações nos direitos de voto da China e de outros mercados emergentes no FMI (um pequeno aceno às novas realidades económicas), o Congresso dos EUA aprovou finalmente as reformas.

Em 2016, esperamos a derrota da Parceria Transpacífica e o início de uma era de acordos que não recompensemos poderosos

As decisões geoeconómicas mais controversas do ano passado dizem respeito ao comércio. Quase despercebida, depois de anos de conversações incoerentes, a Ronda de Doha da Organização Mundial do Comércio, iniciada para corrigir desequilíbrios em acordos comerciais anteriores que favoreciam os países desenvolvidos, recebeu um enterro discreto. A hipocrisia da América, defendendo o comércio livre mas recusando-se a abandonar os subsídios sobre o algodão e outros produtos agrícolas, colocou um obstáculo intransponível às negociações de Doha. Em vez de conversações globais sobre o comércio, os EUA e a Europa montaram uma estratégia de dividir para reinar, baseada em blocos e em acordos comerciais que se sobrepõem.

Como resultado, o que se pretendia que fosse um regime global de comércio livre deu lugar a um regime comercial regulamentado e discordante. O comércio para a maioria das regiões do Pacífico e do Atlântico será governado por acordos, com milhares de páginas e repletos de complexas regras de origem que contradizem os princípios básicos da eficiência e da livre circulação de mercadorias.

Os EUA concluíram negociações secretas sobre aquilo que poderá vir a tornar-se o pior acordo comercial em décadas, a chamada Parceria Transpacífica (PTP), e enfrentam agora uma difícil batalha para a sua ratificação, já que todos os principais candidatos presidenciais democratas e muitos dos republicanos se lhe opõem. O problema não é tanto com as cláusulas comerciais do acordo, mas com o capítulo do “investimento”, que restringe gravemente a regulação ambiental, de saúde e de segurança, e até mesmo a regulação financeira com impactos macroeconómicos significativos.

Em particular, o capítulo proporciona aos investidores estrangeiros o direito de processarem os governos em tribunais internacionais privados, quando acreditarem que os regulamentos governamentais são contrários aos termos da PTP (inscritos em mais de 6000 páginas). No passado, esses tribunais interpretaram o requisito de que os investidores estrangeiros recebem “tratamento justo e equitativo” como motivo para atacar novas regulações governamentais, mesmo que estas sejam não-discriminantes e sejam adotadas simplesmente para proteger os cidadãos de danos notórios recentemente descobertos.

Embora a linguagem seja complexa, convidando a custosos processos judiciais opondo corporações poderosas a governos com problemas de financiamento, até os regulamentos que protegem o planeta de emissões de gases que promovem o efeito de estufa estão vulneráveis. Os únicos regulamentos que parecem seguros são os que envolvem cigarros (as ações movidas contra o Uruguai e a Austrália por solicitarem uma rotulagem discreta sobre os malefícios para a saúde despertaram demasiada atenção negativa). Mas permanece uma série de questões sobre a possibilidade de processos numa miríade de outras áreas.

Além disso, uma provisão de “nação mais favorecida” garante que as corporações podem exigir o melhor tratamento oferecido em qualquer tratado em que participe o país anfitrião. Isto irá nivelar por baixo, exatamente o contrário do que prometeu o Presidente Barack Obama.

Até o caminho que Obama defendeu para o novo acordo comercial mostrou como o seu Governo está tão desligado da realidade da economia global emergente. Referiu repetidamente que a PTP determinaria quem (América ou China) escreveria as regras comerciais do século vinte e um. A abordagem correta é chegar a essas regras coletivamente, ouvidas todas as vozes, e de um modo transparente. Obama tentou perpetuar o figurino habitual, em que as regras que governam o comércio e o investimento globais são escritas por corporações dos EUA para corporações dos EUA. Isto deveria ser inaceitável para qualquer pessoa comprometida com os princípios democráticos.

Aqueles que procuram uma maior integração económica têm uma especial responsabilidade de serem fortes defensores de reformas globais na governação: se a autoridade sobre as políticas nacionais for cedida a órgãos supranacionais, então a conceção, implementação, e aplicação das regras e regulamentos deve ser particularmente sensível às preocupações democráticas. Infelizmente, esse não foi sempre o caso em 2015.

Em 2016, devemos esperar a derrota da PTP e o início de uma nova era de acordos comerciais que não recompensem os poderosos e castiguem os fracos. O acordo de Paris sobre o clima pode ser um arauto do espírito e da mentalidade necessários para sustentar uma cooperação global genuína.

(Prémio Nobel da Economia, professor universitário na Universidade de Columbia. © Project Syndicate 1995–2014)