Corria o ano 2000, se a memória não me falha, quando vi uma senhora a entrar num autocarro, ali para os lados de Union Square, em Nova Iorque. Tinha o aspecto de quem fazia da rua o telhado de casa. Numa mão carregava uma garrafa embrulhada num saco de papel, e na outra um gorduroso Big Mac. Lembro-me de ter pensado que aquela coisa, cuja utilidade nunca percebera nos filmes, o saco de papel à volta da garrafa, existia mesmo…
(Por Thomas Fazi, in a Viagem dos Argonautas, 08/10/2022)
Biden é o Padrinho… 🙂 Este excelente texto tinha que ser acompanhado por um excelente cartoon – in Resistir, 09/10/2022
Todos os olhos podem estar postos nos resultados das eleições italianas desta manhã, mas a Europa tem problemas muito maiores nas suas mãos do que a perspetiva de um governo de direita. O Inverno está a chegar, e as consequências catastróficas da crise energética europeia autoimposta já estão a ser sentidas em todo o continente.
À medida que os políticos continuam a elaborar planos irrealistas de racionamento energético, a realidade é que o aumento dos preços da energia e a queda da procura já fizeram com que dezenas de fábricas numa gama diversificada de indústrias intensivas em energia – vidro, aço, alumínio, zinco, fertilizantes, químicos – cortassem na produção ou encerrassem mesmo, provocando o despedimento de milhares de trabalhadores. Até mesmo o New York Times pró-guerra foi recentemente forçado a reconhecer o impacto “paralisante” que as sanções de Bruxelas estão a ter sobre a indústria e a classe trabalhadora na Europa. “Os elevados preços da energia estão a atacar a indústria europeia, forçando as fábricas a cortar rapidamente a produção e a colocar dezenas de milhares de trabalhadores em licença”, relatou o New York Times.
Os cortes na produção de zinco, alumínio e silício (que representam uns espantosos 50% da produção) já deixaram os consumidores das indústrias siderúrgica, automóvel e da construção europeia a enfrentar graves carências, que estão a ser compensadas por remessas da China e de outros países. Entretanto, as fábricas de aço em Espanha, Itália, França, Alemanha e outros países – mais de duas dúzias no total – estão a começar a abrandar ou a parar completamente a sua produção.
A indústria de fertilizantes, que depende fortemente do gás como matéria-prima chave, bem como fonte de energia, está em dificuldades ainda maiores. Mais de dois terços da produção – cerca de 30 fábricas – já foi interrompida. A importante empresa química alemã BASF encerrou temporariamente 80 fábricas em todo o mundo e está a abrandar a produção em mais 100, uma vez que planeia novos cortes de produção, dependendo do que acontecer aos preços do gás. Para piorar a situação, as sanções da UE também limitaram as importações de fertilizantes russos.
A diminuição do fornecimento de fertilizantes está também a ter um efeito de arrastamento dramático sobre os agricultores europeus, que estão a ser forçados a reduzir a sua utilização de nutrientes chave. Isto significa preços mais elevados para uma menor produção, e as consequências são inevitavelmente sentidas muito para além das fronteiras da Europa, provocando potencialmente uma escassez alimentar global.
Mas a escassez de fertilizantes não é o único problema enfrentado pelos agricultores europeus. Em toda a Europa do Norte e Ocidental, os produtores de vegetais estão a ponderar a suspensão das suas atividades devido aos custos energéticos paralisantes – em alguns casos dez vezes superiores aos de 2021 – necessários para aquecer as estufas durante o Inverno e manter as colheitas refrigeradas, para além do aumento dos custos de transporte e embalagem. O grupo da indústria das estufas Glastuinbouw Nederland diz que até 40% dos seus 3.000 membros já se encontram em dificuldades financeiras. Isto ameaça ainda mais o abastecimento alimentar – e levará certamente a preços ainda mais elevados dos alimentos que, juntamente com o aumento das contas de energia, é provável que leve milhões de europeus à pobreza. Por outras palavras, a crise europeia da energia e do custo de vida está em vias de se transformar numa crise humanitária.
No Reino Unido, prevê-se que 45 milhões de pessoas enfrentem a precaridade energética até Janeiro de 2023; como resultado, “o desenvolvimento de milhões de crianças será prejudicado” com danos pulmonares, stress tóxico e desigualdades educativas cada vez mais profundas, à medida que as crianças lutam para acompanhar o trabalho escolar em lares gelados. Perder-se-ão vidas, alertam os especialistas. Entretanto, no distrito alemão de Rheingau-Taunus, as autoridades realizaram uma simulação do que tal apagão significaria para elas, e os resultados são chocantes: mais de 400 pessoas morreriam nas primeiras 96 horas. E isto num distrito de apenas 190.000 habitantes.
Ora, estes números podem estar sobrestimados, mas o governo local não pode dar-se ao luxo de os ignorar. De facto, Gerd Landsberg, director-geral da Associação Alemã de Cidades e Municípios, exortou os residentes a armazenarem água e alimentos para 14 dias. Gerd Landsberg diz que a Alemanha não está “de forma alguma” preparada para tal cenário.
O que é importante compreender é que esta não é uma crise temporária em que tudo o que precisamos de fazer é ranger os dentes durante o Inverno, após o que as coisas voltarão ao normal. A realidade, como o Diretor executivo da Shell deixou claro recentemente, é que se os governos europeus insistirem em dissociar a Europa do abastecimento russo, o continente enfrentará escassez de gás “suscetível de durar vários Invernos”. É uma verdade amarga, mas simplesmente não há alternativa a curto prazo ao gás da Rússia. De facto, a Comissão Europeia prevê que os preços do gás e da eletricidade “permaneçam elevados e voláteis até, pelo menos, 2023”.
Dito de forma simples, se se mantiver no seu rumo atual, a Europa está a ter pela frente anos de contração económica, inflação, desindustrialização, declínio do nível de vida, empobrecimento em massa e escassez – e isto sem ter em conta a perspetiva aterradora de um confronto militar direto com a Rússia. Como pode alguém pensar que a Europa pode sobreviver a isto sem mergulhar na anarquia?
A loucura da situação torna-se ainda mais evidente quando consideramos que, na sua tentativa de reduzir a sua dependência do gás russo, a UE está a aumentar a sua dependência dos fornecimentos de países como a China e a Índia – que, ao que parece, estão simplesmente a revender à Europa gás que vem da… Rússia (a um preço mais elevado, claro). Se a vida das pessoas não estivesse em risco, tudo isto pareceria uma piada de mau gosto.
É verdadeiramente um sinal da fraqueza dos políticos europeus que, apesar da proximidade do precipício, ninguém se atreva a afirmar o óbvio: que as sanções têm de acabar. Não há simplesmente qualquer justificação moral para destruir o sustento de milhões de europeus simplesmente para dar uma lição a Putin, mesmo que as sanções estivessem a ajudar a atingir esse objetivo, o que claramente não estão.
E assim, de forma bastante deprimente, a única voz da razão parece ser a do primeiro-ministro da Hungria, Victor Orbán. Há semanas que ele e outros membros do seu governo têm vindo a alertar sobre a calamidade económica que a Europa enfrenta. “As tentativas de enfraquecer a Rússia não tiveram sucesso”, disse ele recentemente. “Pelo contrário, é a Europa que poderia ser posta de joelhos pela inflação brutal e pela escassez de energia resultante de sanções”. Esta é uma afirmação de facto, não uma simples opinião. Mas ninguém parece querer ouvir.
Em resposta, os tecnocratas em Bruxelas estão a provar ser tão insensatos quanto são os dirigentes nacionais. Não só a delirante abordagem da UE à Rússia é uma das principais causas da presente crise, como a sua liderança continua a deitar gasolina na fogueira. Ainda este mês, Josep Borrell, o Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, disse que “a estratégia contra a Rússia está a funcionar e deve continuar” – e prometeu novas sanções.
Pior ainda, a UE não está sequer a fazer nada para ajudar a amortecer os efeitos da crise que ajudou a criar. Depois de abandonar a ridícula proposta de limitar apenas o preço do gás russo – o que teria levado ao corte imediato deste último – Bruxelas está agora a ponderar um limite a todas as importações de gás, o que até o Ministro de Estado alemão para a Europa advertiu que poderia levar a uma grave escassez.
A proposta também não tem em conta um facto básico: não são os exportadores de energia que estão a aumentar o preço do gás; este último está hoje ligado ao preço a que o gás é comercializado em mercados comerciais virtuais, como o TTF em Amesterdão, onde especuladores têm vindo a aumentar os preços durante meses, obtendo enormes lucros. Além disso, no mercado liberalizado de hoje, que se baseia no chamado preço de custo marginal, o preço final da energia é fixado pelo combustível mais caro necessário para satisfazer todas as exigências – neste caso, o gás. Isto significa que à medida que os preços do gás sobem, também a eletricidade, mesmo que mais barata, contribui para a mistura total.
Assim, se a UE levasse a sério a questão dos preços da energia, dissociaria o preço do gás dos mercados comerciais especulativos e reformularia o sistema de preços de custo marginal. Mas isso iria contra a ideologia fundamental dos tecnocratas europeus: a ideia de que os preços deveriam ser fixados pelos mercados. De facto, a UE estava entre os mais fervorosos apoiantes, contra o conselho de Putin, (n.t. – explicado num artigo da CNBC americana) da mudança de negócios de gás de preço fixo a longo prazo para um sistema em que o preço é fixado por mercados comerciais virtuais.
Dada a improbabilidade de uma reforma radical, o que fará Bruxelas a seguir? Muito provavelmente contentar-se-á com soluções mal cozinhadas – tais como um teto sobre o excesso de receitas feito pelas centrais elétricas que não são de gás e um imposto excepcional sobre os lucros excedentários – bem como com aquilo que faz melhor: aplicar a austeridade. Entretanto, o BCE, em vez de anunciar uma nova ronda de compras de obrigações para proporcionar aos governos o dinheiro de que necessitam para proteger os cidadãos e as empresas da subida dos preços do gás e da energia, começou a reduzir os seus programas de flexibilização quantitativa e a subir as taxas de juro, fazendo com que o spread entre as obrigações do governo a 10 anos emitidas pela Itália e Alemanha se alargasse aos seus níveis mais elevados desde que a pandemia começou. Isto poderia facilmente precipitar uma nova crise da dívida, que é a última coisa de que a Europa precisa.
Sem o apoio dos bancos centrais, os governos da UE têm sido essencialmente deixados à sua sorte. Mais uma vez somos recordados do que significa para os países do euro terem abdicado do poder de emitir o seu próprio dinheiro; não é coincidência que o Reino Unido por si só tenha alocado mais que 50% do que foi reservado pelo conjunto da UE.
Isto já está a conduzir para políticas que remetem para as costas dos outros os custos da resolução dos nossos problemas (beggar-thy-neighbour): países, como a Alemanha, que podem contar com os mercados financeiros para angariar o dinheiro de que necessitam para ajudar os cidadãos e as empresas, e nacionalizar ou socorrer os serviços públicos de energia em dificuldades, irão inevitavelmente ultrapassar os países mais fracos que já enfrentam dificuldades nos mercados obrigacionistas, como a Itália. De facto, isto já está a começar a acontecer, uma vez que cada vez mais países se envolvem no que só pode ser descrito como protecionismo energético.
Em teoria, a segurança do gás na Europa é regida por um regulamento adotado em 2017, que torna obrigatória a solidariedade entre os países europeus. Mas os países da UE nem sempre cumprem essas regras quando confrontados com uma crise de aprovisionamento. Assim, por exemplo, o jornal italiano La Repubblica noticiou recentemente que a Itália tinha recebido uma notificação escrita da EDF, empresa pública estatal francesa, relativa a uma potencial paragem de dois anos nas exportações de energia como parte dos planos de poupança de energia da França. Um porta-voz do Ministério da Transição Ecológica italiano confirmou mais tarde a reportagem do jornal, embora tenha sido negada pela EDF. Do mesmo modo, a Croácia e a Hungria anunciaram ambos que tencionam implementar medidas para limitar as exportações de gás natural para os países vizinhos. Enquanto a Noruega, que suplantou a Rússia como a maior fonte de abastecimento de gás da UE, obtendo lucros gigantescos à custa de preços de gás mais elevados, recusou-se assim a apoiar um limite de preços nas suas exportações de gás.
No entanto, embora lamentar tal “falta de solidariedade” entre os Estados europeus seja fácil, também é ingénuo. Afinal de contas, é simplesmente assim que o capitalismo funciona. Apesar de toda a conversa sobre “capitalismo global”, as nações individuais – ou melhor, as suas respetivas elites capitalistas – ainda estão envolvidas em competição entre si. Enquanto as classes dirigentes de países individuais estão mais do que felizes em colaborar na prossecução dos interesses do capital em geral à custa dos trabalhadores – basta olhar para a União Europeia – os seus interesses concorrentes ressurgem inevitavelmente em tempos de crise.
Na realidade, a UE, longe de encorajar a solidariedade entre países, torna a concorrência inter-capitalista ainda mais feroz, ao privar os países dos instrumentos económicos básicos necessários para lidar com choques externos. Não importa se o continente está a sofrer um colapso financeiro, uma pandemia global ou uma escassez de energia. Na Europa, as políticas de exportar os seus problemas para as costas dos outros não são uma exceção à regra – elas são a regra.
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O autor: Thomas Fazi é escritor, jornalista e tradutor. É autor de The Battle for Europe: How na Elite Hijacked a Continent (Pluto, 2014) e o seu último livro, em co-autoria com Bill Mitchell, é Reclaiming the State: a Progressive Visiono f Sovereignty for a Post-Neoliberal World (Pluto 2017).
(David Dinis e Sofia Miguel Rosa in Expresso, 23/09/2022)
Portugueses reduzem consumo. Um terço teve de cortar em bens de primeira necessidade e 19% em despesas de saúde. Prestação da casa é risco para 57%.
Se já são 48% os portugueses que dizem viver com dificuldade com os seus atuais rendimentos — mais sete pontos do que há seis meses —, como é que todos se estão a adaptar à subida histórica da inflação? A maioria com cortes em despesas de lazer, mas também muitos com cortes em produtos essenciais para o dia a dia, conclui a sondagem realizada pelo ICS/ISCTE para o Expresso e a SIC.
A primeira resposta faz parte de todos os livros de história económica: é no lazer que as famílias cortam primeiro quando têm de controlar os gastos. Assim, 72% dos portugueses admitem ter lidado com o aumento de preços evitando “despesas com atividades de lazer, tais como passeios, refeições fora de casa, hobbies, cinema ou espetáculos”.
Mas não chega. Em cima disto, 62% dos que responderam ao inquérito dizem ter “diminuído o uso de eletricidade, gás e/ou água em casa”, num contexto de aumento generalizado dessas contas. É também uma maioria, demonstrando como o aperto já chega a grande parte da classe média.
Os dados detalhados provam isso mesmo: entre os que têm diminuído estes consumos encontram-se 54% dos que assumem ainda viver de forma confortável ou satisfatória, também 54% dos portugueses com qualificações superiores e 67% dos que estão em plena idade laboral, entre os 45 e os 64 anos. E quase dois terços dos reformados — 63% — têm reduzido estes consumos, que se distribuem de forma igualitária entre simpatizantes do PS ou do PSD, eleitores de esquerda ou de direita.
Mas há quem tenha sido obrigado a fazer mais: 37% dos que responderam à sondagem dizem ter já reduzido o “consumo de alguns produtos de necessidade” — mais de um terço dos portugueses. Ao passo que cerca de um em cada cinco, 19%, afirma ter cortado “em despesas de saúde, tais como consultas ou medicamentos”. Os dados são consistentes com o número de respostas desiludidas com as medidas anunciadas pelo Governo para fazer face à alta de preços (ver texto nestas páginas).
Olhando para a frente, cerca de dois terços dos inquiridos dizem-se “muito” ou “algo” preocupados com a possibilidade de deixarem de conseguir pagar as contas de luz, de água ou de gás. E 57% exprimem o mesmo grau de preocupação “de conseguir pagar a renda ou a prestação da casa”. Subdividindo, são 26% muito preocupados com esse cenário e 31% “algo” preocupados com ele. O que se sabe é isto: o Banco Central Europeu fez dois aumentos sucessivos dos juros de referência nos últimos meses e prepara-se para fazer outros nos próximos meses.
Mais distante, mas já nos 43%, está o medo de perder o emprego no futuro próximo: 22% dos inquiridos dizem mesmo ter “muito” medo disso, 21% “algum”. Mas mais de um terço – 37% – diz que não tem não está “nada preocupado” com a possibilidade de perder o emprego e 17% dos inquiridos estão só “um pouco preocupados”. Isto quando vários organismos internacionais já admitem que o país (e a Europa) está a caminho de uma recessão.