O apartheid sanitário também mata na Europa

(Francisco Louçã, in Expresso, 03/12/2021)

Cada Governo procura, antes de mais, satisfazer a sua opinião pública, e o caminho mais fácil é induzir medo em vez de prudência, mesmo onde não há campanha eleitoral.


Mia Couto e Agualusa indignaram-se com a punição à África do Sul, depois de ter detetado e revelado a nova variante da covid. É o “apartheid das viagens”, acrescentou António Guterres, com pesar. “Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS-CoV-2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecerem para trabalhar juntamente com os africanos, os Governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos”, afirmam os dois escritores africanos. Acrescenta Agualusa: “Os números da pandemia são muito melhores em África do que na Europa. Em Moçambique, os mortos não chegaram a dois mil. Na Nigéria, cuja população é do tamanho da do Brasil, foram três mil. Países africanos, como o Botsuana, que pagaram pelas vacinas, verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.” A ciência fica, assim, refém da política, a mais estúpida das escolhas.

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Como seria de esperar, cada Governo procura, antes de mais, satisfazer a sua opinião pública, e o caminho mais fácil é induzir medo em vez de prudência, mesmo onde não há campanha eleitoral. Assim, muitos Governos europeus, se não todos, têm reagido segundo o padrão do apartheid, para usar o termo de Guterres. Assim, se se registam alguns casos em África, fecham-se os aeroportos, o que não aconteceria com as viagens da Holanda ou da Alemanha, onde também surgiram casos Ómicron. No caso de viagens de origens europeias, são exigidos testes, ao passo que, sendo África, se levanta o muro da interdição.

Acresce que a responsabilidade das farmacêuticas e do imperialismo das vacinas impediu os países africanos de acederem aos medicamentos, tendo sido violados os compromissos estabelecidos: a COVAX, o programa da OMS para distribuir vacinas pelo mundo, disponibilizou somente um quarto das que tinha prometido para 2021 (537 milhões, em vez de dois mil milhões). Por isso África só tem 6% da população vacinada, e mesmo a África do Sul, um dos países com melhor cobertura sanitária, só chega a 24%. Os países da Europa e das Américas têm 10 vezes a média africana, ou mesmo, no caso de Portugal e Espanha, mais de 80%. O efeito deste apartheid está agora à vista: a replicação do vírus em grandes populações desprotegidas facilita as mutações que criam novas variantes, que depois põem em causa a proteção antiviral nos outros países.

Há nisto um padrão. Ainda há semanas os Estados mais pobres o indicavam na Cimeira de Glasgow: foi possível mobilizar 20 biliões de dólares num ápice para vacinar os países ricos, mas nunca tem sido cumprido o objetivo, estabelecido desde a Cimeira do Clima de 2009, de contribuir com 0,5% daquele valor para financiar a adaptação climática do Sul do planeta, com efeitos igualmente trágicos para toda a Humanidade. África não é só o continente esquecido, depois de ter sido o paraíso colonial. Continua a ser a terra do apartheid. Mas o apartheid tem um preço e, como se vê, somos todos as suas vítimas.


O ralhete da OCDE

As recentes projeções da OCDE para o crescimento da economia portuguesa confirmam a hipótese de recuperação e, apesar das incógnitas (o que será o turismo em 2022?), antecipam que no próximo ano se voltará aos níveis do PIB de pré-pandemia, continuando um crescimento mais reduzido no seguinte. Feitas estas contas, acrescenta a instituição que “é importante evitar que se revertam reformas do mercado de trabalho efetuadas no passado, já que podem minar uma recuperação substancial”.

Quem frequenta estes relatórios não se surpreenderá nem com a doutrina, frequentemente repetida pela OCDE ao longo dos anos, nem sequer com a altivez desta recomendação, que é tomada como as Tábuas de Moisés por diversos governos, incluindo o nosso. A expectativa de um ralhete da OCDE, que continua apostada em garantir a preservação das mudanças legislativas negociadas com a troika no sentido da liberalização das relações de trabalho, é temida pelos nossos governantes como uma condenação ao último círculo do inferno ou, pior ainda, como um possível pretexto para que o Governo holandês questione alguma tranche do abençoado PRR. Isto vale o que vale, é um eficiente condicionamento político, mas não decorre de qualquer sombra de rea­lidade. A alegação ameaçadora de que novas leis laborais protetoras do emprego “minariam” o crescimento económico é uma fraude. É até do domínio do patético: esgrimir que mais três dias de férias (como ocorria antes da ‘troikização’) ou que o pagamento das horas extraordinárias, recuperando o padrão secular, poriam em causa a vida das empresas, ou que os contratos coletivos perturbam o investimento, é simplesmente grotesco. Como se verificou em Portugal nos últimos anos, pelo contrário, o aumento do salário mínimo e a recuperação de alguns direitos foram poderosos incentivos ao crescimento e ao emprego.

Há, no entanto, uma razão para a pressão tão arrogante da OCDE, como também para a submissão de vários governos à sua agenda: o que estes “peritos” nos dizem é que há uma prioridade acima de todas, reforçar a disciplina social e a subjugação do trabalho. É só isso que está em causa. O mandamento da OCDE é que o salário tem de viver com medo.


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A “reconfiguração da direita”

(José Pacheco Pereira, in Público, 06/03/2021)

Pacheco Pereira

Sem o doublespeak orwelliano, esta expressão não significa outra coisa senão capturar o PSD para a direita dos tempos da troika.


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A ocultação pelas palavras e a manutenção do poder pelo controlo sobre as palavras estão na essência do 1984. Orwell descreveu a linguagem do ingsoc assente no doublespeak e o que é mais que actual no seu livro é a percepção de que, mais do que a repressão directa, era o controlo do que se dizia e como se dizia que explicava o poder do Big Brother. Acrescia a esta percepção a também muito actual situação de o Big Brother proibir todos os anos um certo número de palavras, o que, empobrecendo o vocabulário e a sua capacidade expressiva, condenava os seus servos a uma linguagem gutural e pouco comunicativa. Não nos diz nada num mundo dominado pela restrição de caracteres no Twitter e as abreviaturas da linguagem gutural dos SMS?

Por cá temos muitos exemplos do doublespeak orwelliano. Recordo-me de um exemplo típico nos anos (que parecem saudosos a alguns) da troika, quando o Governo Passos-Portas-troika anunciou uma série de “cortes”. Algum “comunicativo” explicou que chamar “cortes” aos cortes era uma asneira e no dia seguinte todos os ministros, secretários e demais pessoal político passaram a falar de “poupança”. Ontem eram “cortes”, hoje são “poupanças”. Mas a prática continuou.

Um exemplo dos dias de hoje é a célebre “reconfiguração da direita”, expressão que muita gente usa descuidadamente como se fosse unívoca. Vamos por partes, começando pela “direita” e acabando na “reconfiguração”. Já disse cem vezes, e repito mais uma, que os termos “direita” e “esquerda” são muito inadequados para uma análise da complexidade da vida política contemporânea, mas, mais uma vez, por maldita comodidade vou usá-los. No entanto, com a redução da política a um grau muito próximo do zero, talvez passe de novo a ter algum sentido. Só que esta “esquerda” e esta “direita” já não são o que eram – são outra coisa, são expressões que são hoje tribais, num período de radicalização que varre tudo o que não seja pertença de uma tribo outra. Estamos no reino dicotómico da esquerda-direita, e tudo o que não se reconheça numa das tribos é visto como traidor por uma delas. Na verdade, a tribalização hoje é mais evidente à direita do que à esquerda, porque a agressividade identitária é muito maior, quer pelas forças, a principal das quais é a aliança com o populismo antidemocrático, quer pelas fraquezas, em particular nas urnas. Por isso, na nossa frase orwelliana da “reconfiguração da direita”, a direita de que se fala tende a não ser a direita democrata-cristã, nem conservadora, nem liberal, mas a direita tribal que vem para regular as contas com o “socialismo”, que parece ser o seu alvo, mas não é.

Vamos então à “reconfiguração da direita”, uma expressão que não significa outra coisa senão capturar o PSD para a direita dos tempos da troika. Para esta direita tribal, o PSD é o seu objectivo principal, não é o PS. Sem o PSD, toda esta direita tribal é grupuscular, quem tem os votos é o PSD, sem eles não se acede ao governo e esse acesso, principalmente em tempos de “bazuca”, é estratégico. O seu inimigo principal não é Costa, é Rio, que cometeu o crime de querer recentrar o PSD e tirá-lo da forte deslocação à direita que se deu no Governo Passos-Portas-troika. Daí a nostalgia do regresso de Passos Coelho, a criação de Relvas, cuja memória é todos os dias objecto de lavagem, também num sentido orwelliano. Um dos instrumentos dessa lavagem é a atribuição das políticas mais impopulares à troika, quando os ditames da troika foram consentidos, desejados e ultrapassados, indo “para além da troika. Na parte em que houve obrigação, isso deveu-se a que o descalabro orçamental de Sócrates foi seguido por vários meses de políticas idênticas, até aos célebres cortes do Natal, que seriam únicos e para não se repetirem (já ninguém se lembra), porque chegavam. O problema nem sequer foi apenas os cortes, mas o alvo dos cortes, o ataque aos mais velhos, a “peste grisalha”, e à baixa classe média, aos direitos laborais, a sistemática tentativa de fazer políticas anticonstitucionais, num ambiente de revanchismo social contra todos os que tinham saído da pobreza por via do Estado, na educação, na saúde, na administração pública. E a coisa acabou com o varrer para o tapete, com a conivência da União Europeia, de tudo o que ficou por resolver como a crise na banca, que ainda hoje pagamos.

Terminando com a “reconfiguração da direita”, sem doublespeak, e traduzindo, significa afastar Rio, trazer Passos ou um qualquer clone de Passos, capturar o PSD para a tribo, colocar o PSD à cabeça de uma “frente de direita” (algo que Sá Carneiro não quis que a AD fosse), e voltar à austeridade com os mesmos alvos do passado, “os que viviam acima das suas posses”, que não eram os que sempre viveram das nossas posses.


Acontecimento nacional da década: a troika

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/12/2019)

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Quando a crise de 2008 rebentou a nossa divida pública estava em linha com a média europeia. Era a dívida externa, que junta a pública e a privada, que estava bem acima. As razões têm a ver com o euro e o que ele fez à já pouco saudável balança comercial, com a falta de capital nacional, com o processo de privatizações que obrigou a recorrer a capital externo, com a ausência de um mercado de arrendamento que leva ao endividamento das famílias, com dezenas de outras razões, algumas bem antigas. Seja como for, isso expunha-nos (e expõe-nos) especialmente a qualquer crise externa.

Entre 2009 e 2011, a fragilidade da nossa economia e a inação da União Europeia (ou mesmo a sua indecisão, que disse aos Estados para injetarem dinheiro na economia para depois os mandar recuar) teve um efeito brutal nos juros da dívida pública. Não foi apenas em Portugal. Por todo o lado, foi isto e o resgate aos bancos que transformou a crise do subprime em crise das dívidas soberanas. Depois, como sabemos, os Estados foram obrigados a minguar, mas o despautério da banca continuou. Convencer os povos que o problema estava nos serviços que os Estados lhes prestam foi fundamental para que o poder financeiro não tivesse de mudar nada.

Voltando a Portugal, ache-se o que se achar de José Sócrates, e é difícil achar alguma coisa de bom, não havia Sócrates na Grécia, na Irlanda, em Espanha ou em Itália.

Desde que entrámos no euro, as crises e recuperações da nossa economia devem-se muito mais ao que se passa na Europa do que ao que tenha feito Sócrates, Passos ou Costa. E a troika em Portugal foi uma escolha política de Bruxelas e Berlim. Assim como não ter existido uma intervenção direta em Espanha e Itália o foi.

A intervenção da troika foi uma catástrofe cujas dimensões ainda não podem ser medidas em toda a sua extensão. Foram 29,4 mil milhões, que corresponderam a 17% PIB, que a austeridade arrancou ao país. A dívida passou dos 108% do PIB, em 2011, para mais 130% no fim do período da troika. Foram destruídos 450 mil empregos, o desemprego ultrapassou os 20% (35% nos jovens). 120 mil a 150 mil pessoas emigraram por ano. Um quarto dos portugueses (eram 20% em 2009) passou a viver abaixo do limiar de pobreza, ao mesmo tempo que as grandes fortunas aumentavam 13% e surgiram mais 350 milionários em Portugal. No resgate à banca, fizeram de Portugal uma cobaia com efeitos desastrosos.

Não foi feita qualquer reforma estrutural da economia e do Estado. Todos os problemas estruturais do país estão intactos, porque resolver nunca foi o objetivo da intervenção externa. O objetivo era garantir o pagamento da dívida através da sua transferência da banca para as instituições com capacidade de cobrança. De resto, apenas mais umas privatizações, mais umas mudanças nas leis laborais, cortes no rendimento e um emagrecimento cego e irresponsável do Estado cujos efeitos se sentirão por muito tempo, porque é mais difícil reconstruir do que destruir. O único ganho foi a descida das taxas de juro, com acesso facilitado ao crédito. O que poderia ter sido conseguido com uma intervenção atempada da UE e do BCE, logo no início da crise grega, que desse confiança aos credores.

Só fomos poupados às repercussões políticas mais graves a que assistimos noutros países. Ao contrário de outros, tivemos a sorte de terem sido dois partidos de esquerda, que algumas pessoas gostam de comparar à extrema-direita, a absorver o descontentamento e, com esses votos, contribuírem para uma solução governativa. O efeito político mais duradouro foi mesmo à direita, especialmente no PSD, que perdeu o voto dos reformados, vítimas de uma austeridade que lhes cortou rendimento num período da sua vida em que a adaptação é mais difícil. Um preço que os social-democratas ainda estão a pagar. Veremos com que efeitos para o regime.

Mas houve uma coisa em que aqueles três anos tiveram efeitos profundos: animaram, com a ajuda do discurso autopunitivo contra um povo que tinha vivido acima das suas possibilidades e a aceitação rastejante de uma intervenção estrangeira, o pior da nossa identidade coletiva. Uma identidade desenhada por meio século de ditadura e marcada pelo medo e a subserviência. Ela está muito viva. E ainda serve ao poder político e económico.