A economia do medo e suas consequências

(Eugénio Rosa, in Resistir, 01/08/2020)

– Aumento significativo do desemprego
– Redução do apoio aos desempregados
– Queda de 16,5% no PIB do 2º trimestre
– Uma opinião contra a corrente


O INE acabou de divulgar os dados da economia portuguesa referentes ao 2º trimestre de 2020, tendo-se verificado uma quebra no PIB (riqueza produzida no país) de 14,1% quando comparado com a do 1º trimestre deste ano, e de 16,5% quando comparado com o 2º Trimestre de 2019 (menos 8.760 milhões € de riqueza não criada só num trimestre, e menos 3.200 milhões € de remuneração não recebidas pelos trabalhadores). E logo se levantou um coro de surpresas e de críticas quer na comunicação social quer por parte de dirigentes políticos por causa do descalabro económico.

As perguntas que surgem de imediato para reflexão são as seguintes: O que poderia acontecer de diferente quando se fecham empresas e estabelecimentos, se paralisa a economia e se manda para casa quase dois milhões de trabalhadores? O que poderia acontecer de diferente quando se espalha e difunde sem um mínimo de racionalidade e de equilíbrio o medo e o pânico? Quando se assiste ao massacre diário pelos media da população confinada em casa, de manhã à noite, com noticias de mortes e de milhares de infetados, como se não existissem mais doenças e mais mortes em Portugal que, com falta de assistência médica, se multiplicaram, mas de que os media não falam e logo não existem? E quando os números de mortes em Portugal não eram suficientes para aumentar o medo juntava-se os de outros países, com muito mais população? O que poderia acontecer de diferente quando se trata uma crise de saúde desta dimensão sem um mínimo de equilíbrio e de racionalidade? O que estava em jogo era demasiadamente importante e sério, e com consequências dramáticas em todas as áreas da vida dos portugueses, que merecia ter sido tratada de uma forma mais racional, rigorosa, equilibrada e planeada, e não deixada às “caixas” chocantes da comunicação social nem às declarações contraditórias dos “especialistas” e dos responsáveis da Direção Geral da Saúde.

Embora Bernard-Henry Lévy seja um filosofo francês com quem não me identifico, ouso transcrever algumas das suas afirmações feitas numa entrevista recente ao semanário Expresso, correndo o risco de desagradar alguns leitores, pois obrigam à reflexão por serem diferentes das ideias dominantes. Afirmou ele: “acho ignóbil” que se ponha a questão “entre saúde e economia. “A economia ou a vida. A bolsa ou a vida. Voltamos a essa máxima antiga dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia é a vida. É a vida contra a vida. Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, o desemprego leva à miséria, e a miséria leva à morte. Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida”.

Em Portugal tudo isto ganhou uma gravidade maior porque para o combate ao COVID-19, da forma como foi feito, a assistência medica a outras doenças foi reduzida drasticamente, como os números divulgados sobre o numero de consultas, de exames e de operações que se deixaram de fazer provam, o que causou um aumento significativo de mortes que, quando forem divulgadas, chocarão todos os portugueses. E BHL acrescentou: “o medo foi excessivo, havia uma parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico, cujos efeitos sociais não são bons”. Na economia, afirmamos nós, os efeitos são nefastos e dramáticos como os dados do INE já revelam.

Estamos agora com um pais – Portugal – em que o medo e o pânico se alastrou, em que os portugueses têm medo de sair de casa e de regressar mesmo com a segurança possível ao trabalho e em que o teletrabalho, isolado e individualizado na maioria dos casos é trabalho desorganizado (segundo BHL, “o trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do publico e privado, a ideia que não há esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões”). A Administração Pública é um exemplo de improvisação e de incapacidade do governo para dar orientações claras, deixando tudo ao arbítrio das chefias. O teletrabalho tornou-se a panaceia e se criou a ilusão de que o país poderá funcionar e recuperar desta forma. Mas não funciona nem é verdade que recuperará –. os dados do INE acerca do PIB já provam isso

A REDUÇÃO DA RIQUEZA CRIADA NO PAÍS NO 2º TRIMESTRE DE 2020 É DE 16,5%
DESTRUIÇÃO CRESCENTE DO APARELHO PRODUTIVO NACIONAL E DO EMPREGO


Uma das ilusões que o governo e muitos jornalistas estão a difundir é que a crise é passageira (para o ministro Siza Vieira: “já atingimos o pico da crise”) e que o país após a pandemia tem o seu aparelho produtivo intacto (diretor do ECO) e rapidamente recuperará (seria uma saída em o que não é verdade, talvez em ou longos).

Ora tudo isso é uma ilusão, quando não mesmo uma mentira. Com o medo que se instalou na sociedade portuguesa (e o medo tem um efeito enorme na economia pois leva a quebra significativa da produção e do consumo), com a quebra generalizada de rendimentos dos trabalhadores (lay-off, horários reduzidos, e desemprego) e com o fecho de mercados externos, é evidente que a crise vai ser prolongada e vai causar uma enorme destruição de empresas (fecho) que não se aguentarão por falta de vendas (alguns chamam a isso “destruição criativa” pois só se aguentarão as empresas mais fortes) e também uma enorme destruição de emprego que levará muito tempo a recuperar e muitos trabalhadores serão excluídos definitivamente do mercado de trabalho e muitas empresas desaparecerão.

Não compreender isto é estar cego, não tomar medidas imediatas para reativar a economia é suicídio. O aumento do desemprego e o fecho definitivo de muitas empresas que já se verificou é apenas o sinal de uma crise social e económica que não sabemos quando terminará e cuja recuperação será mais difícil devido à desorganização que está a causar em toda a Administração Pública. Esta, um instrumento vital no combate à crise, antes da crise já enfrentava graves deficiências e problemas que a crise só multiplicou (são necessário objetivos claros, decisões rápidas, medidas implementadas urgentemente, investimento, nomeadamente público, elevado, tudo isto era necessário por parte do Estado para vencer a crise mas nada disto está a acontecer nem vai acontecer a breve trecho).

Os dados da evolução do desemprego real em Portugal do INE (quadro 1), que é apenas o sinal inicial da crise que vamos enfrentar, confirmam a gravidade da situação que se procura iludir.

Entre março e junho de 2020, em apenas três meses, o desemprego oficial aumentou em 4.100, mas o desemprego real subiu em 109.600, ou seja, em 26,7 vezes mais. E isto porque o INE não considera para cálculo do “desemprego oficial” todos os desempregados que no período em que fez o inquérito não procuraram emprego, apesar de serem trabalhadores no desemprego (os chamados “inativos disponíveis” que em junho de 2020 já somavam 305.000 quase tanto como desemprego oficial), que incluímos no cálculo do desemprego real, por serem verdadeiros desempregados. O desemprego real atingia, no fim de jun/2020, já 636.200 trabalhadores. O desemprego oficial do INE oculta à opinião pública o desemprego real. O número dos que estão a receber subsídio de desemprego é muito reduzido como mostra o gráfico 1 (Segurança Social).


Em jun/2020, o número de trabalhadores desempregados já atingia 636.200, mas o número destes que recebiam subsidio de desemprego eram apenas 221.701. E entre maio-junho 2020 diminuiu em 3.652 apesar do número de desempregados ter aumentado nesse mês em 20.300. Somente 35 em cada 100 desempregados recebem subsídio de desemprego. E o subsídio médio de desemprego pago neste mês foi, segundo dados da Segurança Social apenas de 504,70€.

É a miséria que se está a alastrar no país perante a inação de um governo que nada faz de concreto para reativar a economia (só promete “bazucas” da UE que continuam sem disparar). Não é com lay-offs, com reduções de horários de trabalho e dos rendimentos dos trabalhadores, e moratórias que se consegue a recuperação. Isso só prolonga a agonia e torna o final muito mais doloroso e destrutivo.


E agora, António Costa?

(José Soeiro, in Expresso Diário, 24/07/2020)

José Soeiro

A sessão legislativa acabou com a medida simbólica que se conhece: o fim dos debates quinzenais (a que se somou a limitação do direito de petição), acordado “em conversas” entre António Costa e Rui Rio. O empobrecimento da capacidade de escrutínio do Parlamento partiu os próprios partidos proponentes, pelo sinal que dá, altamente negativo, de desapego ao debate e ao confronto democrático e à fiscalização do Governo. A discussão de hoje do “Estado da Nação”, que encerra o trabalho do Parlamento antes das férias, é um preâmbulo das escolhas que terão de fazer-se já a partir de setembro. Entre os fundos europeus e a preparação do próximo Orçamento, o tempo que se segue é de definição de respostas estratégicas para a fase seguinte. Dou dois exemplos de opções definidoras que estão em cima da mesa.

Equilíbrio no apoio à economia: empresas com lucros devem poder despedir?

Nos últimos meses, o Governo injetou milhões de euros na economia por via do apoio às empresas. É consensual a necessidade de ter medidas de proteção do emprego e de financiamento da economia em tempos de paragem. Mas o principal instrumento a que o Governo recorreu, e que agora quer prolongar – o lay-off –, tem sido altamente desequilibrado. Por quatro razões principais: i) o financiamento das empresas não teve como contrapartida a manutenção do emprego, no que aos trabalhadores precários diz respeito, protegendo apenas, e por um período limitado, os vínculos efetivos; ii) ele significa um corte de rendimento com óbvios efeitos sociais e económicos, porque a redução de 1/3 de salário penaliza os trabalhadores e conduz a um encolhimento da economia; iii) há uma gritante desigualdade no modo como a medida trata o trabalho e o capital: as empresas ficam dispensadas, por exemplo, de uma parte das contribuições à segurança social; já os trabalhadores, além de terem a redução de salário, mantêm integralmente a sua parte de contribuição; iv) a simplificação do lay-off deu azo a uma vaga de abusos laborais, que o Governo não preveniu no modo como desenhou a lei e que a inoperacionalidade da Autoridade para as Condições de Trabalho não trava, gerando-se um sentimento de impunidade generalizada.

Os sacrifícios imputados a quem trabalha contrastam com a ausência de contribuição exigida às empresas que acumularam lucros. Num contexto em que se mobilizam milhões de dinheiro público para o apoio às empresas e em que centenas de milhares de trabalhadores sofrem cortes salariais e desemprego, como não se exigiu ainda que as empresas com lucros estejam proibidas de despedir? É uma medida elementar de sensatez e de justiça.

Proteção social: a máxima de “não deixar ninguém para trás” é para levar a sério?

A pandemia revelou os efeitos da precarização das relações de trabalho, que o PS não quis inverter até agora. António Costa parece reconhecer o problema: “Esta crise pôs em evidência as fraturas profundas da nossa sociedade e o preço que pagamos pela excessiva desregulação de tudo aquilo a que nos habituamos a chamar de mercado de trabalho“. Foram declarações, no início deste mês, na Cimeira Global da Organização Internacional do Trabalho sobre o impacto da Covid-19 no mundo laboral. O primeiro-ministro foi mais longe, declarando que “deixar desprotegidos em tempos de prosperidade é deixar absolutamente sem proteção em tempos de crise”. Mas foi precisamente essa a escolha que o PS fez na anterior legislatura.

Garantir agora a proteção social implica combater a precariedade, fazer uma alteração estrutural à proteção no desemprego e ter uma proteção social que permita às pessoas sair da pobreza. Ora, as prestações de desemprego, que na última década foram reduzidas em valor e em duração, cobrem hoje apenas cerca metade dos desempregados. E nem os cortes de 2010 (quando o subsídio de desemprego deixou de ter como limiar mínimo o salário mínimo nacional) e de 2012 (a redução drástica na sua duração) foram eliminados.

É certo que houve apoios temporários criados no Orçamento Suplementar, a que o Governo resistiu, mas que o Parlamento acabou por aprovar. Mas estes apoios, além de temporários, têm um problema de fundo: nenhum deles tem sequer como referência o limiar de pobreza. O subsídio social de desemprego tem um valor que é 150 euros abaixo do limiar de pobreza. O novo apoio aos trabalhadores informais e às trabalhadoras do serviço doméstico está muito aquém do limiar de pobreza. E até as medidas que já vêm de trás, como o RSI e Complemento Solidário para Idosos, têm valores que não chegam ao limiar de pobreza. Vamos continuar com remendos temporários que condenam as pessoas apoiadas a permanecer na pobreza, ou estamos dispostos a fazer a transformação estrutural que se exige neste domínio?


Retoma do emprego, mas não dos salários

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 03/01/2019)

abreu

A expressão “recuperação sem emprego” (“jobless recovery”) foi cunhada na década de 1990 para caracterizar a economia norte-americana, que após a recessão de 1990-91 regressou ao crescimento económico sem que o desemprego diminuísse. Algumas das explicações então aventadas para este fenómeno incluíam a deslocalização de partes do processo produtivo para outras partes do globo e os aumentos da produtividade associados às novas tecnologias de automação e informação: ambos os processos tenderiam a aumentar o produto por trabalhador empregado, quebrando a ligação entre as dinâmicas do produto e do emprego.

Hoje em dia, no contexto da recuperação após a Grande Recessão e as diversas ondas de choque que a têm caracterizado, o problema central da recuperação económica nas economias avançadas é de uma natureza diferente. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, a taxa de desemprego caiu fortemente nos últimos anos, encontrando-se actualmente em níveis bastante reduzidos face aos padrões das últimas décadas: 6,8% na União Europeia, 3,7% nos Estados Unidos. Em contrapartida, a evolução dos salários não tem acompanhado a dinâmica de crescimento do produto, e em muitos casos tem até sido negativa. Em vez de uma “jobless recovery”, temos assim o que tem sido apelidado de “wageless recovery”: uma retoma sem crescimento salarial.

O Global Wage Report de 2018/19, publicado recentemente pela Organização Internacional do Trabalho, avança alguns números ilustrativos: entre as economias do G20 (as mais avançadas), por exemplo, o crescimento dos salários foi de apenas 0,9% em 2016 e 0,4% em 2017, apesar da taxa de crescimento do produto nesses anos ter sido consideravelmente mais robusta. O problema é especialmente intenso na Europa, que registou um crescimento real dos salários praticamente nulo em 2017, mas também se faz sentir nos Estados Unidos, onde o crescimento real dos salários foi apenas cerca de 0,7% tanto em 2016 como em 2017.

A recuperação da economia portuguesa nos últimos anos padece do mesmo problema: a criação de emprego e redução do desemprego têm sido verdadeiramente notáveis, mas contrastam fortemente com a estagnação salarial. Por exemplo, a remuneração de base média mensal (valor ilíquido, antes de quaisquer descontos) em Portugal passou de 963 Euros em Abril de 2013 para 973 Euros em Outubro de 2017, o que corresponde a uma contracção em termos reais. Da mesma forma, o ganho médio mensal ilíquido (também antes de quaisquer descontos, mas incluindo horas extra, prémios e outros suplementos) mal se alterou em termos reais, passando, no mesmo período, de 1.125 Euros para 1.151 Euros.

Até certo ponto, o problema da “wageless recovery” é simétrico ao da “jobless recovery”: na primeira temos um crescimento económico extensivo, em que o crescimento do emprego sustenta o crescimento do produto mas não da produtividade ou dos salários; na segunda temos um crescimento económico intensivo, com aumentos de produtividade que apoiam o crescimento do produto mas não a criação de emprego.

Mas esta não é toda a história. Se é verdade que a produtividade tem aumentado menos do que o produto na generalidade das economias avançadas, é também verdade que a evolução dos salários tem na maior parte dos casos ficado aquém da evolução da produtividade: ou seja, a parte dos salários no rendimento nacional tem vindo a diminuir. A explicação para o problema não é apenas a falta de dinamismo da produtividade, mas também um problema distributivo, de deterioração dos rendimentos do trabalho em relação aos rendimentos do capital.

No caso português, a parte dos salários no rendimento nacional tem estado praticamente estagnada nos últimos anos, após ter retrocedido muito fortemente durante o período da Troika e de governação da direita. Não tem continuado a diminuir, como noutras economias avançadas, mas também não recuperou nenhum do terreno perdido durante o retrocesso dos anos anteriores, o que não deixa de ser demonstrativo dos limites da actual governação.

O problema da retoma sem crescimento salarial é em parte estrutural, estando ligado ao problema da estagnação da produtividade e à evolução sectorial da economia, mas é também político, estando ligado à capacidade negocial das partes envolvidas na relação laboral. Quanto a este último aspecto, continuamos a fazer menos do que devíamos para repor os equilíbrios perdidos nos anos anteriores.