Puzzles, produtividade e clichés

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 02/04/2019)

Paes Mamede

Os enigmas por resolver são a parte mais interessante de qualquer ciência. Nos últimos dois séculos e meio os economistas tentaram responder a uma pergunta fundamental: porque é que as economias crescem? Por estranho que pareça, não existe uma resposta clara. As implicações desta ignorância para o comum dos mortais são maiores do que se possa pensar.

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É fácil perceber que as economias crescem quando se usam mais recursos na produção. Mais pessoas, mais máquinas, mais infra-estruturas, mais terras cultivadas permitem aumentar a quantidade de bens e serviços produzidos e consumidos. Mas isto é apenas uma parte da história. Muitas vezes a parte menos relevante.

Sabe-se desde há muito que as quantidades de trabalho e capital explicam apenas uma parte do crescimento económico. Ao que fica por explicar os economistas habituaram-se a chamar “produtividade” (produtividade total dos factores, para ser exacto). A ideia é fácil de perceber: se as economias crescem a um ritmo superior ao do trabalho e do capital incorporados na produção, tal significa que as sociedades estão a ser capazes de tirar maior proveito dos recursos existentes. O conceito de produtividade remete, precisamente, para essa ideia de eficiência acrescida no uso dos recursos.

Note-se, no entanto, que a produtividade assim definida não corresponde a nada de concreto. Trata-se um mero resíduo estatístico. É, por definição, algo que ficou por explicar. O economista americano Moses Abramovitz chamou-lhe um dia, com propriedade, “a medida da nossa ignorância”.

Desde a década de 1950 que vários economistas desenvolveram modelos teóricos e análises estatísticas que tentam reduzir a nossa ignorância sobre o processo de crescimento. Uma estratégia comum consiste em assumir que o trabalho e/ou o capital não são homogéneos (por exemplo, um trabalhador desqualificado não produz o mesmo do que um técnico altamente especializado). Outra estratégia consiste em assumir que existem mais factores de produção relevantes para além daqueles dois, como o conhecimento científico e tecnológico (medido, por exemplo, pelos investimentos realizados ao longo dos anos em investigação e desenvolvimento).

A introdução na análise daqueles novos elementos explicativos diminui o resíduo estatístico. No entanto, a ignorância persiste. Não é de estranhar. A maior ou menor capacidade de uma economia para, num dado período, produzir riqueza a partir de uma certa quantidade de recursos pode dever-se a uma enorme variedade de factores.

Pode ter que ver com questões básicas de insegurança, incerteza e instabilidade. Pode depender da qualidade das instituições (a justiça, a administração pública, a regulação das actividades económicas, etc.) ou da confiança entre actores sociais. Em muitos casos passa por aspectos mais estruturais, como o perfil de especialização produtiva (que pode ser mais ou menos propenso à introdução de inovações, ou estar mais ou menos sujeito à concorrência internacional) ou a estrutura do tecido empresarial (por exemplo, as empresas de maior dimensão têm geralmente mais capacidade para tirar partido dos recursos disponíveis). A produtividade é também muito afectada pelas flutuações ao longo do ciclo económico: quando há mais procura, as empresas tendem a utilizar ao máximo a capacidade instalada e investem mais em novas tecnologias, o que permite aumentar a produtividade no curto e no longo prazo. Ou pode ser afectada durante vários anos por choques específicos que atingem o país em causa (catástrofes naturais, guerras, descoberta de recursos minerais, grandes fluxos financeiros, etc.).

Perceber quais destes ou outros factores mais contribuem para explicar a evolução da produtividade de um país não é nada fácil, por vários motivos. Primeiro, alguns dos factores não são facilmente mensuráveis (o conhecimento, a confiança, a incerteza, etc.). Segundo, muitos dos factores referidos são causa e consequência uns dos outros, complicando a sua análise empírica. Por fim, os factores que mais promovem ou restringem a produtividade num dado contexto histórico e geográfico não são necessariamente relevantes noutros contextos.

Estas dificuldades recomendam um misto de modéstia e sofisticação a quem intervém no debate sobre os problemas de crescimento económico dos países. Infelizmente, neste tipo de debate proliferam os clichés e as certezas infundadas.

Por incompetência, ingenuidade ou influência de agendas não assumidas, há quem assegure que o mau desempenho da produtividade em Portugal se deve à corrupção, ou à ineficiência do Estado, ou à regulação do mercado de trabalho, ou à cultura dos povos do sul, ou ao que mais a imaginação convidar. Pouco interessa que os dados disponíveis não permitam demonstrar essas afirmações com um mínimo de rigor.

Fica um conselho: quando ouvir alguém jurar que tem a solução para os problemas de produtividade do país, desconfie. Os economistas ainda têm de trabalhar muito – e muito seriamente – para se entenderem sobre o que verdadeiramente importa a este respeito.

Economista e professor do ISCTE-IUL


Retoma do emprego, mas não dos salários

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 03/01/2019)

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A expressão “recuperação sem emprego” (“jobless recovery”) foi cunhada na década de 1990 para caracterizar a economia norte-americana, que após a recessão de 1990-91 regressou ao crescimento económico sem que o desemprego diminuísse. Algumas das explicações então aventadas para este fenómeno incluíam a deslocalização de partes do processo produtivo para outras partes do globo e os aumentos da produtividade associados às novas tecnologias de automação e informação: ambos os processos tenderiam a aumentar o produto por trabalhador empregado, quebrando a ligação entre as dinâmicas do produto e do emprego.

Hoje em dia, no contexto da recuperação após a Grande Recessão e as diversas ondas de choque que a têm caracterizado, o problema central da recuperação económica nas economias avançadas é de uma natureza diferente. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, a taxa de desemprego caiu fortemente nos últimos anos, encontrando-se actualmente em níveis bastante reduzidos face aos padrões das últimas décadas: 6,8% na União Europeia, 3,7% nos Estados Unidos. Em contrapartida, a evolução dos salários não tem acompanhado a dinâmica de crescimento do produto, e em muitos casos tem até sido negativa. Em vez de uma “jobless recovery”, temos assim o que tem sido apelidado de “wageless recovery”: uma retoma sem crescimento salarial.

O Global Wage Report de 2018/19, publicado recentemente pela Organização Internacional do Trabalho, avança alguns números ilustrativos: entre as economias do G20 (as mais avançadas), por exemplo, o crescimento dos salários foi de apenas 0,9% em 2016 e 0,4% em 2017, apesar da taxa de crescimento do produto nesses anos ter sido consideravelmente mais robusta. O problema é especialmente intenso na Europa, que registou um crescimento real dos salários praticamente nulo em 2017, mas também se faz sentir nos Estados Unidos, onde o crescimento real dos salários foi apenas cerca de 0,7% tanto em 2016 como em 2017.

A recuperação da economia portuguesa nos últimos anos padece do mesmo problema: a criação de emprego e redução do desemprego têm sido verdadeiramente notáveis, mas contrastam fortemente com a estagnação salarial. Por exemplo, a remuneração de base média mensal (valor ilíquido, antes de quaisquer descontos) em Portugal passou de 963 Euros em Abril de 2013 para 973 Euros em Outubro de 2017, o que corresponde a uma contracção em termos reais. Da mesma forma, o ganho médio mensal ilíquido (também antes de quaisquer descontos, mas incluindo horas extra, prémios e outros suplementos) mal se alterou em termos reais, passando, no mesmo período, de 1.125 Euros para 1.151 Euros.

Até certo ponto, o problema da “wageless recovery” é simétrico ao da “jobless recovery”: na primeira temos um crescimento económico extensivo, em que o crescimento do emprego sustenta o crescimento do produto mas não da produtividade ou dos salários; na segunda temos um crescimento económico intensivo, com aumentos de produtividade que apoiam o crescimento do produto mas não a criação de emprego.

Mas esta não é toda a história. Se é verdade que a produtividade tem aumentado menos do que o produto na generalidade das economias avançadas, é também verdade que a evolução dos salários tem na maior parte dos casos ficado aquém da evolução da produtividade: ou seja, a parte dos salários no rendimento nacional tem vindo a diminuir. A explicação para o problema não é apenas a falta de dinamismo da produtividade, mas também um problema distributivo, de deterioração dos rendimentos do trabalho em relação aos rendimentos do capital.

No caso português, a parte dos salários no rendimento nacional tem estado praticamente estagnada nos últimos anos, após ter retrocedido muito fortemente durante o período da Troika e de governação da direita. Não tem continuado a diminuir, como noutras economias avançadas, mas também não recuperou nenhum do terreno perdido durante o retrocesso dos anos anteriores, o que não deixa de ser demonstrativo dos limites da actual governação.

O problema da retoma sem crescimento salarial é em parte estrutural, estando ligado ao problema da estagnação da produtividade e à evolução sectorial da economia, mas é também político, estando ligado à capacidade negocial das partes envolvidas na relação laboral. Quanto a este último aspecto, continuamos a fazer menos do que devíamos para repor os equilíbrios perdidos nos anos anteriores.

A tirania da luz

(António Guerreiro, in Público, 08/09/2017)

Guerreiro

António Guerreiro

Um longo e interessante artigo do astrofísico Raul Cerveira Lima, Deixar a Noite Ser Noite, publicado neste jornal no domingo passado, faz-nos perceber, com eloquência analítica, um tipo de poluição que se esconde no seu excesso de visibilidade: a poluição luminosa. É hoje difícil, mesmo em zonas do Alentejo interior, diz Raul Cerveira Lima, encontrar condições para contemplar o esplendor da noite porque a luz artificial das cidades e das vilas propaga-se a todo o lado. Até nos campos, onde quer que exista uma casa, foram disseminados postos públicos de luz. Estamos submetidos a uma tirania da luz, mas essa tirania não começou no nosso tempo nem é explicável apenas como um resultado da urbanização generalizada e da colonização tecnológica: ela tem atrás de si uma longa história filosófica, cultural e política. Goethe, ao morrer, pediu mais luz, “mehr Licht”. E essa exigência, que poderia ser apenas a resistência de um homem de muita idade à extinção, ganhou uma outra dimensão. No pensamento ocidental, um traço fundamental é a relação entre a luz e a razão, e entre a sombras e o irracional. Daí que se tenha considerado a luz, enquanto metáfora da verdade, uma “metáfora absoluta”, instrumento de organização do nosso mundo, como se pode perceber nas palavras e expressões que serviram para designar certas épocas: a Idade Média foi designada durante séculos como Idade das Trevas por se entender que não procurava a claridade racional. E o Iluminismo, ou Idade das Luzes, foi a designação metafórica para uma época que inaugura a razão crítica moderna, com a sua ideia de secularização, de progresso histórico e de emancipação através do saber. Na base da tirania da luz, de que sofremos hoje, está evidentemente o “ocularcentrismo”, um conceito que designa o privilégio epistemológico concedido à visão: ver é o fim — o objectivo — e o critério do pensamento.

Impedir que a noite seja noite tem sido o desígnio alcançado com grande eficiência pelo capitalismo contemporâneo. Dessa conquista, tratou um ensaísta e crítico de arte americano, chamado Jonathan Crary, num livro de 2013 intitulado 24/7. Late Capitalism and the Ends of Sleep. Crary descreve e analisa este mundo que permanece em funcionamento vinte e quatro horas durante os sete dias da semana, para que a produção e o consumo não tenham interrupções. Para conquistar o tempo inútil do sono, para erradicar o shabbath e impor um tempo homogéneo sem feriados nem dias festivos, impôs à noite luzes cada vez mais fortes.

A extinção da noite é um fenómeno das grandes metrópoles, como Nova Iorque, difundido como uma tendência universal. Quem primeiro intuiu o que se estava a passar foi Pasolini, que num célebre texto de Fevereiro de 1975, publicado no Corriere della Sera, atribuiu um significado apocalíptico ao desaparecimento dos pirilampos por causa da poluição química e da poluição luminosa (a claridade dos “ferozes projectores”): tratava-se, nas palavras de Pasolini, da consumação de um “genocídio cultural”. Hoje podemos perceber que a tirania da luz é uma necessidade básica da sociedade da atenção e da mobilização permanentes.

O estado de vigilância (fomentado e garantido por um Estado vigilante e pela governamentalidade que lhe corresponde) e a exigência securitária impuseram-se como imperativos aos indivíduos e às instituições. E isso requer luz, cada vez mais luz. É preciso que todos estejamos acordados e, além disso, não nos ponhamos a olhar para as estrelas, perdendo o pé na superfície acidentada da terra, como aconteceu ao distraído astrónomo e protofilósofo Tales de Mileto.