A política como um estágio para outras carreiras

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/03/2016)

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                        Daniel Oliveira

É certo que a Arrow Global teve uma fortíssima intervenção no mercado bancário português, na compra de crédito mal parado. É uma das empresas com maior litigância no País e, no relatório de 2014, conhecido no ano passado, deu bastante destaque ao nosso mercado. As coisas correram-lhe bem. A empresa tinha, em 2015, 6,8 mil milhões de euros de ativos sob gestão em Portugal.

É certo que esta empresa comprou créditos de vários bancos intervencionados pelo Estado. É certo que o fez no Banif, através de empresas que entretanto adquiriu em Portugal. É certo que à medida que se empurrou com a barriga uma solução para o Banif a sua situação se degradou e que isso obviamente terá tido repercussões (tendencialmente positivas) no negócio. E que isto aconteceu quando o Estado tinha a maioria do capital do banco.

É certo que enquanto a empresa crescia em Portugal quase exclusivamente intervindo no sector tutelado por Maria Luís Albuquerque e num dos momentos da nossa história em que o Estado mais se viu obrigado a tomar decisões na banca privada (se não fosse por outras razões, porque injetou dinheiro em muitos deles), a deputada era secretária de Estado e ministra. Ou seja, a sua relação com o negócio que esta empresa desenvolveu nos últimos anos no País está longe de ser distante. A coisa é, aliás, um pouco mais grave. Maria Luís Albuquerque foi responsável pela reestruturação da banca nacional, segundo objetivo da intervenção da troika. Do fracasso dessa reestruturação dependia o negócio da Arrow Global, que vive do crédito malparado. Na realidade, quanto pior corressse (e corra) a vida aos portugueses melhor corre a esta empresa. E é para ela que a ex-secretária de Estado e ex-ministra das Finanças que acompanhou todo este difícil período vai trabalhar? Não consegue a deputada perceber o simbolismo sórdido disto tudo?

Não seria sério eu dizer que a ministra tomou decisões que tivessem ajudado esta empresa, que se as tomou elas foram conscientes e muito menos que está de alguma forma a ser premiada por qualquer coisa que tenha feito. Não sabemos, provavelmente nunca saberemos, e por isso temos sempre de partir do princípio que não sucedeu. Mas nem me parece que isso seja o mais relevante.

Também não é certo que haja uma violação do artigo 5º do Regime de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos: “Os titulares de órgãos de soberania e titulares de cargos políticos não podem exercer, pelo período de três anos contado da data da cessação das respectivas funções, cargos em empresas privadas que prossigam atividades no sector por eles diretamente tutelado, desde que, no período do respectivo mandato, tenham sido objecto de operações de privatização ou tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual.” Inclino-me a dizer que não viola a lei, já que a Arrow Global operou em empresas que receberam dinheiro público mas ela própria não o recebeu. Ou seja, não aconteceu com Maria Luís Albuquerque o que aconteceu com o seu marido, que passou de uma redação de um jornal para a EDP depois do processo de privatização que ela concluiu como secretária de Estado.

Devo dizer que não tenho a certeza de concordar com a alteração legislativa proposta pelo Bloco de Esquerda, que quer proibir que ministros trabalhem no sector que tutelaram nos seis anos posteriores a ocuparem o cargo. Levado à letra, um médico que fosse ministro da saúde não poderia regressar à medicina (ou pelo menos à medicina privada) e um professor que fosse ministro da Educação não poderia regressar à escola (ou pelo menos a uma universidade privada). O que significa que estaríamos condenados aos políticos profissionais. Confrontada com isto no Fórum TSF, a deputada Mariana Mortágua viu-se obrigada a propor mais debate. Porque há uma contradição entre regimes de exclusividade muitíssimo apertados e a defesa de que a política não pode ser uma carreira. A verdade é esta: na política, como noutras coisas, não há lei que resolva a falta de ética.

Pode-se defender Maria Luís Albuquerque, como se defendeu Maria de Belém, e antes delas Pina Moura, Jorge Coelho ou Ferreira do Amaral, dizendo que ao aceitar este cargo não viola a lei. Como já disse, também estou inclinado para achar que não. Mas a ética republicana não se resume à lei.

Pode a deputada garantir que nunca beneficiou esta empresa. Mas a promiscuidade não se verifica apenas quando há decisões com impacto direto numa empresa. E, para além disso, nunca teremos como o saber. Pode garantir que não vai ter funções executivas, o que me parece totalmente irrelevante. Não imagino é como pode alguém que tutelou de forma tão ativas vários bancos pode passar para a administração de um importante cliente desses bancos, poucos meses depois de abandonar o cargo, e ainda por cima manter-se como deputada. Se decide trabalhar no sector financeiro logo depois de deixar de ser ministra das Finanças manda o mais elementar dos pudores que ao menos abandone a vida política.

Maria Luís Albuquerque chega administradora da Arrow Global sem ter qualquer experiência em empresas financeiras. Antes de ter sido levada pelo seu aluno Passos Coelho para o governo todo o seu percurso foi feito como técnica superior do Estado, em empresas públicas e como uma obscura docente. A ida de Maria Luís Albuquerque para uma empresa que compra créditos malparados a bancos é mais um caso de contratação de um político com uma agenda de contactos interessante. E com um conhecimento pormenorizado dos ativos dos bancos que será posto ao serviço desta empresa. lbuquerque entra no grupo seleto de ministros que aceitaram ir para empresas que tiveram uma relação muitíssimo direta com a área que eles próprios tutelaram. E fá-lo num tempo quase recorde. O que quer dizer duas coisas: que a política foi, para ela, um mero estágio para outra carreira e que percebeu que Passos é capaz de ficar na liderança mais tempo do que supunha. Para ela, esse lugar ficou-lhe vedado esta semana. Como se viu com Maria de Belém, há coisas que os cidadãos já não aceitam com a mesma facilidade do passado.

Porque é que Carlos Costa deve demitir-se

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 18/02/2016)

nicolau

O governador do Banco de Portugal é praticamente inamovível. Só pode ser demitido por falha grave mas isso passa por um processo complicado, onde o BCE tem uma palavra muito importante a dizer. Mas Carlos Costa devia demitir-se, porque se fizer um exame de consciência perceberá que falhou de mais em dossiês demasiado importantes, perdeu o respeito da comunidade financeira, escondeu informação a outros supervisores e o seu consulado tem sido marcado por uma enorme opacidade.

O que é que Carlos Costa e Julien Lopetegui têm em comum? O segundo nunca deu uma entrevista a um jornal, rádio ou televisão portuguesa durante o ano em que foi treinador do FC Porto. O primeiro também nunca deu uma entrevista a um meio de comunicação social português desde que se encontra à frente do Banco de Portugal – e já lá vão cinco anos.

Carlos Costa não aceita ser confrontado com as suas decisões. Não aceita que lhe perguntem diretamente se os 700 milhões de euros que obrigou o BES a constituir para salvaguardar as aplicações que muitos investidores fizeram em papel comercial do GES não queriam exatamente significar que essas aplicações estavam salvaguardadas. Não aceita que lhe perguntem porque é que, sabendo o que se estava a passar no GES, guardou durante largos meses essa informação para si, sem a partilhar com a CMVM. Não aceita que lhe perguntem se concordou com a estratégia de Vítor Bento para o Novo Banco (recuperá-lo num prazo de três a cinco anos) ou se pura e simplesmente mudou de repente de opinião e decidiu que o banco tinha de ser vendido em seis meses. Não aceita que lhe perguntem se essa sua mudança de opinião não teve a ver com o interesse do Governo PSD/CDS em encerrar o dossiê antes das eleições de 4 de outubro de 2015. Não aceita que lhe perguntem como é que havia 17 interessados no Novo Banco e depois apenas três e depois a venda falhou de forma clamorosa. Não aceita que lhe perguntem porque passou três emissões de dívida sénior do Novo Banco para o BES “mau” em vez de fazer um corte igual de 16% para todas as emissões. Não aceita que lhe perguntem como foi possível o caso do Banif ter chegado ao beco sem saída a que chegou. Não aceita que lhe perguntem o que fez o Banco de Portugal perante as oito propostas de resolver o problema que foram entregues em Bruxelas, todas chumbadas. Não aceita que lhe perguntem porque pagou 300 mil euros à BCG para avaliar a atuação do supervisor no caso BES e agora se recusa terminantemente a divulgar as conclusões do relatório. E não aceita que lhe perguntem como não foi ele a impedir a venda de uma sucursal do Novo Banco em Cabo Verde a uma empresa ligada a José Veiga (só o fez agora) e sim o Ministério Público, que ordenou a detenção do empresário quando o negócio estava prestes a ser assinado.

A imagem do Banco de Portugal está hoje seriamente afetada. Foi arranhada com o caso BPP. Foi severamente atingida com os casos BES e Banif. E tem sido drasticamente desgastada com a opacidade sobre a má atuação ou a inércia da instituição em sucessivos casos de supervisão. Por isso, o Banco de Portugal é hoje desrespeitado: pelos clientes bancários, que não acreditam nele; pelos banqueiros, que fazem o que querem, ignorando as ordens do banco central; e pelos políticos que consideram que há muito o governador deixou de lado a sua independência para tomar posição por um dos lados.

Carlos Costa vai acabar por sair do Banco de Portugal como Cavaco Silva da Presidência da República: ignorado pela maioria, desrespeitado por alguns, contando apenas com alguns dirigentes do PSD para o defenderem – o que prova que se tornou o banqueiro central de uma fação.

Seguramente com a melhor das intenções, Carlos Costa não só passou uma enorme fatura para o bolso dos contribuintes (entre BES e Banif vão mais de seis mil milhões de euros) como afetou severamente a imagem externa de Portugal. É muito, é de mais, é imenso. O governador devia perceber que se está a tornar progressivamente um pária. E atuar em conformidade.

Por que é que se pode acabar com tudo menos com os bancos?

(José Pacheco Pereira, in Público, 26/12/2015)

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Pacheco Pereira

Valia a pena ser mais economicamente liberal com os bancos e menos com as pessoas, mas isso hoje parece radicalismo.


 

A história do Banif é exemplar dos tempos que correm. Ela mostra tudo o que está errado nas políticas europeias e nacionais, se é que se pode falar ainda de “políticas nacionais”. Aliás, o caso do Banif revela até que ponto os governos aceitam ser geridos pela burocracia europeia não eleita, em decisões objectivamente contrárias ao interesse nacional e à sua própria vontade, eles que são eleitos. Este é um dos aspectos mais preocupantes da actual situação política portuguesa e europeia, a utilização muitas vezes abusiva e excessiva, das chamadas “regras” europeias para impor políticas ideológicas conservadoras e soluções que correspondem a interesses particulares de outros países, de outras bancas, de outras economias, a Portugal. Ou pensam que é tudo neutro e “técnico”?

Chegados à porta da burocracia europeia, – e as decisões tomadas sobre o Banif são tomadas pela burocracia de Bruxelas que acha que sabe melhor governar Portugal que o voto dos portugueses,  encontramos uma entidade que não é neutra, que serve os interesses políticos e económicos dos maiores países europeus em que não ousa tocar nem ao de leve, e cujo afã de “uniformização”, sendo típico das burocracias, leva a aplicar critérios que nem a banca alemã cumpre, a economias debilitadas como a portuguesa. Ao impedir a incorporação do Banif na CGD, – que, lembre-se, Passos Coelho queria privatizar, – actuou contra o interesse nacional legitimamente interpretado por um governo eleito. Seria bom que o senhor Presidente da República nos falasse então do “superior interesse nacional”.

A história do Banif mostra também o modo como se transformou um conjunto de interesses económicos parciais numa lei de bronze da economia e da política que deriva não de opções políticas, ou, como diriam os marxistas, de “classe”, numa emanação sem alternativa da “natureza das coisas”, da “realidade”. Estes anos de “ajustamento”, que nada “ajustou” a outra coisa que não fossem certos interesses presentes na economia e na política, também mostra como se desbaratou a já escassa “boa-fé” do Estado, como se está a destruir a democracia e o controlo dos conflitos que ela permite, e como se fez ascender ao poder uma mistura de ideólogos radicais de direita, de aparelhos partidários de grande incompetência e que nada sabem do seu país, de gente medíocre que se tornou salvífica pelo serviço que prestaram a interesses particulares presentes na economia. Não à “economia”, mas a certos interesses presentes na economia e que condicionam e capturam as políticas europeias e nacionais.

O que mostra o Banif? Que os bancos podem falir como qualquer outra empresa, mas que as consequências dessa falência são pagas sempre pelo dinheiro público. Ou seja, podem falir, mas não podem falir. São intangíveis a tudo aquilo que é para o comum dos cidadãos o “ajustamento”, não fecham, não se liquidam, essa interessante palavra, os contratos são de natureza diferente daqueles que se podem romper com toda a gente, menos com… os bancos.

Com eles pode-se gastar milhares de milhões de euros sem pestanejar, nem ter que estar sempre a responder à pergunta “quanto custa” que os jornalistas repetem ad nauseam sempre que se fala de salários, pensões e reformas. A pergunta é feita uma vez, por descargo de retórica, e depois a lógica dos debates é sempre de natureza diferente daqueles que a mesma pergunta suscita se se tratar de aumentar o salário mínimo, ou de repor pensões de centenas de euros. A banca é sempre uma excepção e contestar essa excepção, – a da “saúde” do sistema financeiro que claramente está acima da saúde dos portugueses, é “ideologia” como disse o Presidente da República numa das suas mais ideológicas intervenções em nome da “realidade”.

Outro aspecto da ideologia que se esconde na “realidade”, é pouca gente se perguntar que estragos maiores faria ao país, se o Banif fechasse. O governo diz que seria mais caro, mas eu estaria mais à vontade em pagar um preço mais caro (hipótese sobre a qual tenho dúvidas), do que oferecer mais um banco português pago regiamente com o nosso dinheiro a um banco estrangeiro que o recebe de graça e ainda com um bónus. Para além disso, percebe-se muito bem que o mecanismo de “resolução”, que em condições normais atribuiria os custos da falência do Banif aos outros bancos, já não está em Portugal em condições de funcionar porque esses mesmos bancos não estão dispostos ou não tem capacidade para suportar os custos da falência de um “irmão” seu. No papel é muito bonito e aparentemente justo, mas pura e simplesmente não funciona, como se viu no Banif e se verá no Novo Banco, ou no banco que se segue.

O Banif falido colocaria em causa a “confiança” no sistema financeiro, faria estragos na economia das ilhas, provocaria mais desemprego no sector bancário, onde ele é já elevado, perderia o estado o dinheiro que lá colocou numa decisão que o governo anterior tem que explicar muito explicadinha? Acredito que sim, várias destas consequências negativas verificar-se-iam, mas os depósitos até 100.000 euros seriam honrados, acima disso seriam perdidos. Não sei quem retirou o dinheiro no dia negro que se seguiu à “notícia” da TVI, mas acredito que muitos estariam na condição de ter mais de 100.000 euros, porque se há coisa que as pessoas hoje “sabem” é do risco de perderem o dinheiro que tem nos bancos.

Não penso também que a solução encontrada garanta os postos de trabalho em termos significativos, nem que as agências nas ilhas e emigração se mantenham como estão e que o Santander seja muito sensível à “economia” dos Açores e da Madeira. É um pouco como os acordos com os compradores da TAP, como aconteceu já com outras empresas privatizadas: tudo é prometido, para aquietar as dúvidas nas vendas a privados, e depois pouco é realizado.

Não sou contra as privatizações, mas há interesses nacionais que só o carácter público garante, até porque para uma empresa privada não são rentáveis e esse mesmo critério não existe numa empresa pública. Sim, os contribuintes pagam para haver bancos portugueses na Venezuela, para haver voos para a Guiné-Bissau, como pagam o Instituto Camões e a RTP África, porque se considera que o “superior interesse nacional” assim o exige e o Estado não é uma empresa.

Já tenho todas as dúvidas que o argumento da “confiança” no sistema financeiro, seja válido. Perguntem aos emigrantes que colocaram as poupanças de uma vida no BES, e cujas biografias não são distintas dos emigrados da Madeira na África do Sul, se tem muita confiança no sistema financeiro. A “confiança” do sistema financeiro já anda pelas ruas da amargura e a transparência de uma falência a sério de um banco podia ajudar mais do que prejudicar.

Há muita coisa a esclarecer no que aconteceu ao Banif, mas parece-me difícil evitar a constatação de que Passos, Portas e Maria Luís Albuquerque, com a colaboração de um Banco de Portugal que nunca esteve tão encostado a um governo como com o actual Governador, fizeram uma gestão danosa que nos vai custar caro. Infelizmente está a acontecer o que previ, de que as privatizações e as operações com a banca, seriam para o governo Passos-Portas o equivalente das PPP e contratos swap no governo Sócrates.

O governo de António Costa fez bem em ser expedito, mas as críticas que o BE e o PCP e muitos portugueses lhe fazem de não ter rompido com os privilégios especiais da banca pagos com o erário público, tem sentido. Ficou a promessa de que será o último caso e, quando o Novo Banco regressar à mesa do orçamento, espero bem que não se repita o que se passou com o Banif.

Tudo isto, não é “técnica”, nem emanação da “realidade”, é política. O que foi feito no governo Passos-Portas e no governo Costa com o Banif, é o resultado de opções políticas e, ao sê-lo, ideológicas. Mas qual é o problema? Acaso em democracia duas pessoas identicamente informadas decidem o mesmo? Não, decidem de forma diferente, conforme os seus interesses, a sua visão do mundo, a sua… ideologia. Ainda bem.

É que para sairmos desta lama que nos tolhe temos que pensar diferente, falar diferente, e fazer diferente. Nem que seja pouco diferente, visto que, como isto está, basta um pouco de diferença para parecer uma revolução. Por isso, ó ideólogos, valia a pena ser mais economicamente liberal com os bancos e menos com as pessoas, mas isso hoje parece radicalismo.