Carlos Costa – não, infelizmente não foi só a Caixa

(João Gabriel, in Jornal i, 21/02/2019)

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(Este artista bem pode ficar de mãos postas, rezar e penitenciar-se pela sua incompetência (dolosa ou não) que já custou milhões ao país. Enquanto administrador da Caixa não viu nada, não ouviu nada, não disse nada, não assinou nada, era um zombie, segundo quis fazer crer na entrevista à SIC. Pergunta-se então o que estava lá a fazer se era uma espécie de homem invisível… 🙂

Comentário da Estátua, 2102/2019)


Carlos Costa tem a credibilidade manchada e a sua autoridade diminuída, e a bem da instituição a que ainda preside devia ser ele a tomar a iniciativa de sair.


Causa estranheza que só nove anos depois de ter sido nomeado governador do Banco de Portugal, a ética, a competência e a idoneidade de Carlos Costa comecem a ser questionadas. A auditoria à CGD apenas revelou um pouco mais do que já se sabia, e o que se sabia não era bom. As offshores do BCP e o plano ruinoso de expansão da Caixa em Espanha teriam sido, só por si, razões suficientes para impedir a sua ascensão à liderança do Banco de Portugal. Inexplicavelmente, tal não aconteceu!

Depois, foi o que sabemos: uma boa gestão da imagem e a cumplicidade de muitos jornalistas que simplesmente abdicaram de avaliar de forma séria e objetiva a justeza e os méritos da sua ação enquanto governador. Entre a produção de aparências e a quantidade de desinformação produzida passaram nove anos e, como vivemos tempos em que a perceção se torna realidade mesmo que a realidade nada tenha a ver com a perceção criada, Carlos Costa foi sempre retratado como o governador competente e idóneo que nunca foi.

Além da sua competência técnica e credibilidade, a força de qualquer governador reside na coerência das suas decisões, no valor da sua palavra, no seu carisma e percurso.

Como diria Ortega y Gasset, o homem é o homem e a sua circunstância. A circunstância, neste caso, mostrou as fraquezas do governador e a sua ética ficou comprometida muito antes de chegar ao Banco de Portugal.

O percurso já denotava falhas e, quanto ao carisma, foi muito mais o que recebeu do que aquele que emprestou à instituição a que preside.

Mas, passados nove anos, os prejuízos causados pelo governador ao erário público enquanto ainda era só Carlos Costa, nas suas passagens pela Caixa e pelo BCP, são pequenos quando comparados com os prejuízos que Carlos Costa, já governador, causou ao país com a resolução do BES.

Em pouco mais de um mês (julho de 2014), o Banco de Portugal de Carlos Costa, por ação ou omissão, distorceu o valor dos prejuízos do BES, inflacionou as suas provisões, impôs um presidente de comissão executiva, fez perder a garantia soberana de Angola, ignorou propostas de fundos privados para recapitalizar o banco, nunca tentou usar a linha de recapitalização pública que estava disponível e, apesar de tudo isto, conseguiu passar a ideia, com a ajuda dos mesmos jornalistas, de que aquela tinha sido a melhor solução. Não foi! A resolução foi uma má e injustificada decisão.

Hoje sabemos, por exemplo, através da carta do então vice-governador do Banco de Portugal, Pedro Duarte Neves, para Vítor Bento, datada de 29 de julho de 2014, que o Banco de Portugal sabia desde dia 27 desse mesmo mês quais eram as contas que a KPMG iria apresentar ao conselho de administração três dias depois. A verdade é que o regulador não pode substituir-se à administração de nenhum dos bancos que supervisiona, nem pode orientar as contas que estes vão apresentar, mas aconteceu.

No Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, em Santarém, Rui Silveira, ex-administrador jurídico do BES, afirmou que “Sikander Satar (presidente da KPMG) explicou que as provisões (que distorceram as contas do primeiro semestre de 2014) foram feitas de acordo com o Banco de Portugal”. Esta carta de Pedro Duarte Neves dá-lhe razão.

Desde o dia 27 de julho que o regulador sabia das contas que a KPMG iria apresentar. Mesmo assim, a 29 de julho reitera em comunicado “a solvência do banco”, garante haver propostas privadas para reforço do capital e, “no limite”, adianta haver uma “linha de recapitalização pública criada no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira, que poderá ser utilizada para suportar qualquer necessidade de capital”.

Ou seja, quando este comunicado foi emitido, o Banco de Portugal sabia exatamente quais seriam as contas a aprovar no dia 30 de julho pelo conselho de administração do BES. Como é que, no dia 3 de agosto, Carlos Costa pôde invocar surpresa perante os resultados do BES no primeiro semestre e apresentar esse álibi para resolver o banco? Como é que, ao contrário do que o Banco de Portugal disse em comunicado, não recorreu à linha de recapitalização pública? Como é que, sete meses depois de o BES ser cadáver, mais de 1,3 mil milhões de euros de provisões foram revertidos para balanço do Novo Banco, demonstrando com isso a completa adulteração das contas que serviram de justificação para liquidar o banco? Houve ou não concertação entre Carlos Costa e a KPMG na preparação das contas do BES do primeiro semestre de 2014?

A teia de contradições cresce ao mesmo ritmo que os custos da resolução.

Afastar Salgado não tinha de significar destruir um banco que representava um alicerce fundamental da economia nacional e que devia ter continuado a existir apesar de Salgado. O BES não devia ter desaparecido.

A fatura engorda a cada dia que passa e, hoje, já poucos se lembram que o governador prometeu que a resolução do BES se tornaria um case study. Acertou, mas não pelas razões que ele imaginou. O “custo zero” de Carlos Costa vai ultrapassar os 10 mil milhões.

Ricardo Salgado terá de responder pelas práticas que levaram o BES até uma encruzilhada em que era preciso fazer prova de vida, mas Carlos Costa terá também de ser chamado pelo Ministério Público para explicar a autoria material de uma decisão arbitrária e injustificada.

Vamos levar décadas a pagar a fatura da ação negligente ou dolosa, só o tempo nos dirá, de Carlos Costa, antes e durante o seu tempo no Banco de Portugal, mas ele, até hoje, nunca assumiu como sua uma única responsabilidade. As culpas foram sempre de outros, antes e durante o seu tempo como governador. Nisso revela coerência!

Na entrevista à SIC, e em relação ao BES, Carlos Costa mentiu. Fê-lo quando afirmou que o Banco de Portugal nunca exigiu o aumento de capital de junho de 2014. Exigiu e há testemunhas! Mentiu, ainda, quando afirmou que a partir de 15 de julho houve factos novos que justificaram a “bomba atómica”!

As contas adulteradas do primeiro semestre do BES e o desaparecimento da garantia soberana de Angola de 5,7 mil milhões de dólares, de que o próprio Vítor Bento, escolha de Carlos Costa para presidir ao BES, o aponta como responsável, são duas “gavetas” que o governador, a todo o custo, quer manter fechadas.

Carlos Costa tem a credibilidade manchada e a sua autoridade diminuída, e a bem da instituição a que ainda preside devia ser ele a tomar a iniciativa de sair. Não o fará, terá um fim de mandato penoso, como penoso será para o Banco de Portugal continuar a ser liderado por alguém com este lastro.

A boa imprensa de Carlos Costa vai continuar a defender a bondade e a competência do governador. A História, porém, encarregar-se-á de mostrar o desastre que ele representou para o sistema financeiro português.

Não, infelizmente não foi só a Caixa, nem só o BCP. Também foi o BES e, já agora, o Banif!

Gente acima de qualquer reparo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 16/02/2019)

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Miguel Sousa Tavares

Do longo e influente currículo bancário de Carlos Costa ressaltam três situações comprometedoras: a) a Resolução do BES, experiência pioneira no sistema bancário europeu, e de cuja entusiástica execução (incluindo a leviana gestão do dossier BESA, com a correspondente perda quase total da garantia do Estado angolano sobre 4000 milhões de euros), se mantém uma conta-corrente em aberto de vários milhares de milhões para os contribuintes; b) a fracassada supervisão da banca privada, enquanto governador do Banco de Portugal, incluindo o próprio BES, o BPN, o BPP, o Banif, e a Caixa; e c) a sua própria participação, enquanto gestor da Caixa, nos prejuízos por esta sofridos em créditos no mínimo aventurosos.

O que se descreve na alínea c), longamente ocultado, só agora veio a público, mas o resto de há muito se sabia e era suficiente para se perceber que Carlos Costa era um sério candidato à medalha de homem que, directa ou indirectamente, mais danos causou aos contribuintes portugueses nos últimos largos anos.

Se, apesar disso, ele conseguiu até aqui passar incólume entre os pingos da chuva, isso ficou a dever-se apenas a duas razões: porque ficou para a história como o homem que, com o apoio de Passos Coelho, derrubou o império BES e Ricardo Salgado, o que lhe trouxe uma popularidade instantânea e inquestionada; e porque, quando as coisas começaram a fiar fino e sentiu o cheiro a pólvora, soube respaldar-se em jornalistas influentes, a quem passava informações a troco da construção do perfil de guardião impoluto do sistema bancário. Isso durou até agora, até se saber que também ele lá tinha estado, do outro lado da barricada, do lado indesmentivelmente feio da história. Agora, com os seus aliados de ontem ocupados em exercícios de contorcionismo dignos do Cirque du Soleil, resta-lhe fazer de morto-vivo, qualidade que não lhe é de todo estranha. Como escreveu Cesare Pavese, está morto, mas não sabe. Ou, mais provavelmente, sabe, mas é-lhe indiferente.


2 Ciclicamente, sou levado a ler nos jornais um desabafo de algum oficial militar, prudentemente na reserva, dando conta da sua indignação perante as malfeitorias de que serão alvo por parte do poder político — as quais sempre e sempre têm que ver com questões de natureza pecuniária e jamais de outra ordem ou grandeza. Inevitavelmente também, vêm elas acompanhadas de um comovente relambório sobre a dureza da “condição militar” (que, por si só, justifica um subsídio de vencimento com o mesmo nome), e uma exaltante descrição do heroísmo putativo de quem “permanece 24 horas ao serviço da Pátria, pronto a dar a vida por ela”. Este tipo de considerações sofre de três erros básicos de análise. Em primeiro lugar, pressupõe que só sendo militar se serve a pátria e que tendo o peito coberto de medalhas ganhas por simples subida de posto ou desempenho de funções burocráticas se tem mais mérito do que tantos que fazem muito mais com muito menos alarido e fanfarras. Em segundo lugar, porque e felizmente, há cinquenta anos que nenhum militar português morre em combate e tal deve-se, também e em parte, à diplomacia do poder político: em breve teremos a segunda geração seguida de oficiais que terão entrado na Academia Militar e saído no final da carreira como generais ou almirantes sem nunca terem estado debaixo de fogo real. E, em terceiro lugar, porque, numa atitude que hoje parece estar a tornar-se comum entre todos os servidores do Estado, se acha legítimo eles viverem a queixar-se da profissão que livremente escolheram e que livremente podem abandonar — assim não lhes falhasse a coerência e a coragem para tal.

Porém, não me interpretem mal: eu não sou, de modo algum, anti-Forças Armadas. Sou antimás FA e anticorporações, no que elas têm de pior, e sejam elas militares ou civis. E confesso que, dentro das FA, tenho francamente mais respeito pela Marinha e pela Força Aérea do que pelo Exército. Mas seguramente que não é culpa minha se, ultimamente sobretudo, o Exército se tem encarregado de arrastar a sua imagem pelas ruas da amargura. As mortes criminosas dos instruendos dos comandos, fruto de um exibicionismo militarista gratuito e desumano, foram intoleráveis. O roubo de mercearia, organizado e existente durante anos nas messes do Exército e FA, é uma vergonha. Saber que há oficiais do Exército que subalugam no mercado as casas de função que lhes são atribuídas, é escandaloso para quem tanto se reclama de uma honra à parte. Mas nada, nada, pode igualar a inacreditável história do roubo das armas de Tancos, uma inimaginável novela de amadorismo, incompetência, desresponsabilização e, sim, ausência de vergonha.

Porque se já era inimaginável que fosse tão fácil assaltar um quartel e logo um que guardava um paiol; que ele estivesse protegido por uma simples vedação; que o sistema de videovigilância estivesse inoperacional há anos; que houvesse rondas quando calhava e que não eram efectivamente controladas; e que os oficiais que tinham o quartel à sua guarda dormissem sossegados sabendo tudo isto, é ainda mais grave a suspeita de cumplicidade interna no assalto e a tentativa da PJM de encobrir os assaltantes e as pistas do roubo com uma operação montada de falsa descoberta das munições roubadas. Depois, ouvir contar na CPI da Assembleia da República que os oficiais suspensos preventivamente e reintegrados ao fim de 15 dias, o foram apenas para acalmar a opinião pública e “manter as aparências” (ou seja, que tiveram um castigo de 15 dias de férias pagas), e ficar a saber-se que o coronel de chefia ao quartel até foi destacado para um curso de promoção a oficial-general, tudo remete para uma cultura de desresponsabilização e tropa-fandanga que toca as raias do despudor.

Pior ainda, um a um, têm-se sucedido na CPI os oficiais superiores do Exército ligados, directa ou indirectamente, ao caso de Tancos, e o que vêm dizendo é de se ficar estarrecido. Houve o tal comandante do quartel, mestre de semântica, que afirmou que, embora “as directivas (de segurança) não tivessem sido cumpridas”, tal não significava que “as ordens não tivessem sido obedecidas”. E houve um general, ex-chefe do Estado-Maior do Exército que afirmou “ter atacado o assunto”, no seu tempo de chefia, com 400 mil euros para a vedação, porque, explicou, “o dinheiro não abunda para estas coisas”. Hoje, embora já retirado, o general jurou ter-se sentido tão mal com o caso que teve de ir a um cardiologista e começar a tomar remédios para a tensão (olha, que boa vida que teve até lá!). E, embora “defensor da transparência e da liberdade de expressão”, o que incomoda o general é que a CPI decorra à porta aberta, permitindo aos cidadãos acompanhar as justificações dos militares e ao Ricardo Araújo Pereira fazer sketches cómicos com o assunto. “Não havia necessidade, pá”, concluiu o senhor general. Não havia, não. Levará anos a limpar esta nódoa do historial do Exército. Porque, ocorrido o impensável, eles, pá, desde a primeira hora não souberam comportar-se com o sentido de responsabilidade e de honra de que tanto se arrogam. Pá.


3 Enquanto em Varsóvia o vice-presidente americano, Mike Pence, e o secretário de Estado, Mike Pompeo, juntos com o primeiro-ministro de Israel, o polaco e uns príncipes do Golfo, se reuniam numa ridícula frente destinada a sabotar o acordo de desarmamento nuclear assinado com o Irão, os Presidentes do Irão, da Turquia e da Rússia reuniam-se com uma agenda muito mais simples e letal: a partilha da Síria, de onde Trump anunciou retirar-se. Mas antes de recambiar os últimos 3000 soldados americanos enviados para a Síria para combater o Daesh (coisa que nem o Irão, nem a Turquia, nem a Rússia ou Assad estão interessados em fazer), os Estados Unidos fizeram um derradeiro pedido aos curdos, os verdadeiros vencedores da guerra contra o Daesh: que esmagassem as últimas bolsas de resistência deste em território sírio. E os curdos assim fizeram, na esperança de que Trump não os deixe entregues nas mãos sanguinárias de Erdogan. Como seria a História se não fosse essencialmente escrita por cínicos?


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Uma caixa sem fundo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 26/01/2019)

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Tenho de recuar aos tempos do primeiro governo de Cavaco Silva para me lembrar de quando comecei a indignar-me com o comportamento dos senhores administradores da “nossa” Caixa-Geral de Depósitos. Foi quando resolveram construir a sua nova e monumental sede, que orgulhosamente apresentaram como “a maior sede bancária da Europa” — como se aquele fosse o maior banco da Europa ou nós fossemos o país mais rico da Europa. O monstro, erguido junto ao Campo Pequeno, tornou-se um verdadeiro símbolo do novo-riquismo desses tempos e da sem-vergonha com que um banco público aproveitava o estatuto privilegiado que tinha junto do Estado para espatifar o seu dinheiro — o nosso dinheiro. Um banco, cuja razão de existência nos diziam ser apoiar o desenvolvimento do país, nomeadamente financiando as pequenas e médias empresas que não obteriam crédito dos bancos privados e competir também com estes no crédito à habitação, proporcionando melhores condições a quem queria comprar casa. Afinal, revertidas as nacionalizações do 11 de Março de 1975, aberta a concorrência à banca privada, nacional e estrangeira, verificou-se que nem uma nem outra coisa eram verdade: nem as empresas tinham o seu melhor parceiro na Caixa nem os particulares encontravam lá os melhores pacotes de crédito à habitação. Mas a maior e mais luxuosa sede bancária do país, e não sei se ainda da Europa, essa ficou. E só em ar condicionado gabaram-se de ter gasto na altura e na moeda de então cinco milhões de contos — uma fortuna que, longe de os envergonhar, foi exibida como uma proeza. Foram os tempos do “oásis” e do “Portugal está na moda”.

Com o correr dos anos, a Caixa passou a imitar os bancos privados, copiando-lhe os vícios, mas sem a mesma competência, como se veria em negócios ruinosos como os seus investimentos em Espanha. Não admira, se os seus administradores eram escolhidos preferencialmente entre os desempregados dos partidos — sobretudo os dois do bloco central e mais tarde com algumas ofertas ao CDS. Alguns saltavam episodicamente para o privado, apenas pelo tempo de confirmarem a sua incurável incompetência, daí regressando à casa-mãe, que para todos tinha sempre um lugar de acolhimento, fosse na administração fosse nas inúmeras direcções. Outros, caídos em desgraça no governo ou na política, encontravam ali abrigo seguro, continuando alerta para ali servir o partido, em caso de necessidade: Armando Vara foi o caso mais notável, mas não único. A Caixa deixou de ser um banco do Estado para ser um banco dos partidos e desse clube muito especial dos gestores públicos: era coisa sua, que lhes servia para colocar os seus, para ensaiar jogadas de economia subterrânea e para intervir no xadrez empresarial privado. O cúmulo do despudor foi o assalto ao BCP, congeminado por um governo PS e pelos rapazes do “Compromisso Portugal” e financiado por uma administração PS da Caixa, com o PSD a ser calado em troca da administração do banco público. Essa operaçãozinha custou à Caixa 540 milhões de prejuízos directos na compra de acções do BCP e uns dois a três mil milhões de prejuízos indirectos no financiamento dos conjurados do assalto ao BCP. Através do relatório da Ernst & Young confirmámos agora que esses conjurados, grandes comendadores da República, compraram acções do BCP com empréstimos concedidos pela Caixa a troco de nenhuma garantia — o que hoje lhes permite dever centenas de milhões à Caixa e ostentarem um património imobiliário milionário. Mas se um qualquer trabalhador pedisse um empréstimo para compra de habitação própria, a primeira coisa que lhe exigiam era a hipoteca da casa.

A história da Caixa choca não apenas por ser tão escandalosa, mas também por ser tão continuada e sabida. Como é que tantos puderam brincar com o dinheiro público durante tanto tempo e todos consentiram?

Entre 2010 e 2015, a Caixa-Geral de Depósitos custou aos contribuintes 1,2 mil milhões de euros em créditos malparados, concedidos contra o parecer dos serviços de crédito internos ou sem esse parecer. Mas, de facto, o prejuízo é bem maior pois o relatório da E&Y pára em 2015 e os grandes prejuízos, que obrigaram o actual Governo a injectar lá 4,9 mil milhões, só foram reportados em 2016. Para trás e durante os anos da troika, a Caixa foi perdendo dinheiro todos os anos e todos os anos o Estado lá teve de injectar capital, com a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque (agora muda deputada), incapaz de encontrar uma solução e incapaz de fornecer uma explicação para a sua falta de solução. E, como sempre, o Banco de Portugal e o seu governador, Carlos Costa, não deram por nada e a única gestão prudencial que levaram a peito foi a de tudo fazer para que nem os deputados nem os portugueses soubessem jamais o nome dos tais grandes devedores da Caixa. Isso, disseram-nos, não só violava o sigilo bancário (o tal a que as Finanças agora vão ter acesso livre desde que se tenha mais de 50 mil euros na conta), como causava alarme no sistema bancário. Ou seja: que o banco público, o maior do país, tenho tido de lavar uma injecção de dinheiros públicos igual à do BES/Novo Banco para não ir à falência, depois de anos de incompetência larvar e de aventuras dolosas com o dinheiro dos contribuintes sem que o regulador desse por nada, isso não causa alarme no sistema bancário; o que causa alarme é que os que têm de pagar a conta com os seus impostos pelo menos possam saber quem é que lhes fica a dever dinheiro. Mas também não admira, visto que o próprio Carlos Costa também passara pela Caixa, estivera sempre associado àquela gente em trânsito entre o BCP e a Caixa e aparece no relatório ligado à ruinosa operação de Espanha, juntamente com o gestor bancário-modelo, o honorável Faria de Oliveira — ora presidente da Associação Portuguesa de Bancos, um lugar que lhe assenta como uma luva.

Sim, este relatório tem um grande e raro mérito: estão lá os nomes. Não só dos que beneficiaram dos empréstimos sem os pagar, como também de quem lhes emprestou sem garantias e de quem deveria ter visto e não viu. O BdP e o Ministério Público já têm o relatório há meses. De Carlos Costa, não há nada a esperar: é parte implicada. Mas ao MP resta-lhe cumprir o seu dever. Para que, no mínimo, não ande de crista levantada quem devia andar cozido de vergonha. Se é que a têm…

Sem vergonha nenhuma também, vi os deputados do PS e do PSD a acusarem-se mutuamente das responsabilidades do passado e a livrarem-se das próprias nesta escabrosa história. Estava num estabelecimento público e não aguentei ver aquilo muito tempo. Tive vergonha alheia, como se fosse minha. Senti verdadeiro nojo.

Eu sou daqueles que ainda acreditam na política, nos partidos e na democracia parlamentar. Mas estes deputados brincam com o fogo: eles julgam que as pessoas não percebem que a história da Caixa é, em grande parte, a história do pior do regime democrático nos últimos trinta anos? Que é isto que destrói as democracias, abrindo o caminho para os salvadores das pátrias?


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia