Já não canto ao frio

(Carlos Coutinho, 07/01/2022)

Faltei às Janeiras na noite e madrugada de ontem, por três razões: porque não estou na minha aldeia, porque nesta cidade nunca vi tal coisa acontecer e, sobretudo, porque não tenho pachorra para alinhar nesse género de rituais. Aliás, mesmo quando era garoto, só uma vez terei participado nessas idas de porta em porta, enfiado numa samarra, cantar “Quem diremos nós que viva? Viva…”

Em Fornelos não se dizia “cantar as Janeiras”, mas antes “cantar os Reis”, porque ontem é que foi o Dia de Reis, um quase feriado que poucos lá observavam, embora quase ninguém falte ainda hoje à antiquíssima Missa de Reis. Neste dia 7, é que, no entanto, vai haver ocorrências seguramente determinantes.

Por exemplo, em 1325, morreu D. Dinis, também rei, além de lavrador e poeta, seguido por Inês de Castro, a amada do seu neto Pedro que andava por Coimbra, onde a foram apunhalar num dia que passou a significar data para todas as lágrimas sem remédio.

Muito mais tarde, já em 1610, o herege Galileu observou as quatro maiores luas de Júpiter, pela primeira vez, ficando por isso conhecidas como luas galileanas – Calisto, Europa, Ganímedes e Io.

Mas os anos mais próximos de nós também disputam hoje as suas efemérides. Contudo, nenhuma delas feliz – no México, morreu, em 1986, um dos maiores escritores da modernidade ocidental que está, segundo García Marquez ‘et alii’ , na génese do realismo mágico. Ou fantástico, como se queira. De seu nome Juan Rulfo, nasceu em Sayula, Jalisco, no ano da Revolução de Outubro.

Do lado de cá do oceano, em Lisboa e em 2017, faleceu Mário Soares, no Hospital da Cruz Vermelha, tal como, anos depois, a sua viúva, Maria Barroso que, não obstante a muito provecta idade, viria a presidir à Cruz Vermelha Portuguesa.

Seria sucedida no cargo por Francisco George, um conspirador irrequieto que eu conheci em Beja, quando ele ainda era um jovem delegado de Saúde e já aspirava a comandar a Federação do Baixo Alentejo do PS. Perdeu a batalha com António Saleiro, o barão de Almodôvar, que era ainda mais ardiloso e até conseguiu ser nomeado governador civil por António Guterres, o famoso conspirador de sótão que ainda manda na ONU onde, finalmente, não se estará a portar nada mal.

O barão, que era homem de negócios, arranjou também na zona um terreno de prenda para António Vitorino (um careca baixote que passou por Macau e foi comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos) e ofereceu outro a Ronald Reagan, para o bluff bem sucedido da Guerra das Estrelas.

Enfim, tudo gente de bem e de boas famílias.

A verdade é que, enquanto a Maria foi extraordinária no teatro, o seu Mário, para nossa desgraça, notabilizou-se especialmente como chefe da contrarrevolução no Portugal de Abril e como coveiro da independência nacional, assinando a seu pedido, com grande pompa e inconfessável circunstância, mas, aparentemente, sem o menor rebate de consciência, o manhoso tratado de adesão que nos encafuou na União Europeia.

É, todavia, amanhã que algo pode talvez ferir mais a sensibilidade dos portugueses, a leitura do acórdão do processo do assalto aos paióis de Tancos, com início marcado para as 10 horas, no tribunal de Santarém. O julgamento abrange 23 arguidos e, como se sabe, entre eles está um tal Azeredo Lopes, que foi chefe de gabinete do presidente da Câmara do Porto, o do caso Selminho, e era ministro da Defesa na altura do furto. Está em causa um conjunto de crimes tão variados como terrorismo, associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, abuso de poder, recetação e detenção de arma proibida.

Entre os réus encontram-se igualmente, o antigo diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM), coronel Luís Vieira, e o ex-porta-voz desta instituição, major Vasco Brazão, além de elementos da GNR de Loulé.

Em alegações finais, o Ministério Público pediu a absolvição de 11 dos 23 arguidos, incluindo de Azeredo Lopes, por considerar, calcule-se, que a conduta do ex-governante se pautou apenas por uma “omissão do ponto de vista ético”, ao não diligenciar no sentido de ser levantado um processo disciplinar aos elementos da PJM.

A pena mais pesada – entre os 9 e os 10 anos de prisão – foi pedida, como de costume, para o mexilhão, que é quem sempre se lixa nestes imbróglios. Chama-se ele João Paulino, também já foi militar e é autor confesso do furto.

Aguardemos calmamente a sentença, que deve ser, sem dúvida, um ofuscante farol para a jurisprudência.

(A sentença de Tancos já saiu hoje. Ver notícia aqui).


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O super-juiz a chapinhar no super-lodaçal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 08/07/2021)

«A conduta de Azeredo Lopes é extremamente grave, uma vez que o mesmo violou a fidelidade reclamada pela sua qualidade de ministro da Defesa Nacional.»

«Foi o aval de Azeredo Lopes, que tudo podia ter denunciado e impedido, que transmitiu confiança a todos os demais arguidos que, também em seu nome, atuaram. A participação de Azeredo Lopes foi essencial a toda a engrenagem.»

«A PJM desenvolveu uma atividade investigatória paralela, clandestina, à margem do processo-crime ocultando a atuação ao MP. Luís Vieira deu instruções para que essa investigação ficasse na esfera da PJM e que não fosse dado conhecimento ao MP. E de tudo isto Azeredo Lopes tinha conhecimento, tendo escutado o desagrado de Luís Vieira e os seus desabafos pela retirada de competência de investigação à Polícia Judiciária Militar e recebido documentos de Luís Vieira com esse desagrado.»

«A atuação extraprocessual que a PJM desenvolveu contou com a cobertura política, o apoio e a concordância do ministro numa investigação paralela e clandestina que implicou a celebração de um acordo de impunidade com os assaltantes para que as armas fossem devolvidas.»

«Não havia outra peça, neste tabuleiro de Tancos, melhor colocada que Azeredo Lopes para denunciar ao MP que Luís Vieira estava a extravasar as suas competências e que a sua conduta estava a afrontar e a desrespeitar uma decisão da PGR. Entre ambos havia uma relação de confiança, o ex-ministro era uma espécie de confidente, um muro de lamentações de Luís Vieira.»

«Bizarro é fazer-se de coitadinho e de irresponsável e escudar-se na confiança institucional ou na ausência de menção a Tancos para branquear aquela que foi a sua atuação e que consistiu em honrar elementos da PJM e da NIC/GNR de Loulé por feitos que Azeredo Lopes sabia que não eram verdadeiros.»

«Todo este lodaçal tem de ser julgado.»

Carlos Alexandre – Despacho de Pronúncia do caso de Tancos


Depois de uma imparável campanha de ódio contra Azeredo Lopes logo a partir do conhecimento do furto, Junho de 2017, campanha essa que contou com a anuência de Marcelo até ao momento em que descobriu que estava em vias de se queimar, o Ministério Público lançou a acusação do caso de Tancos em cima das eleições legislativas de 2019. Nela, os procuradores garantiam que Azeredo Lopes sabia do plano para ilibar os ladrões desde a primeira hora, e que alinhou nele para obter vantagens para a imagem do Governo. Ou seja, a acusação atribuía a motivações estritamente políticas os alegados actos ilegais de Azeredo Lopes, assim envolvendo directa e profundamente na acusação o Governo socialista. Este episódio, pelo conteúdo e calendário, fica como (mais) um monumento à judicialização da política em Portugal.

Rui Rio, em campanha eleitoral, de imediato explorou a oferta do Ministério Público e apontou directamente a Costa, dando como provado o teor da acusação. Costa seria culpado caso soubesse o mesmo que Azeredo, ficando como cúmplice, ou não o sabendo, ficando como incompetente para chefiar Governos, afirmou Rio. Na sua miserável postura, chegou a atacar uma comissão parlamentar de inquérito, colando PCP e BE às calúnias que lançava. Sim, este é o mesmo Rui Rio que tinha jurado jamais vir a fazer tal pulhice, o tal do “banho de ética”.

Azeredo Lopes, na instrução do processo, defendeu não existirem provas jurídicas que sustentassem a acusação. Carlos Alexandre, como se pode ler nos excertos acima, não só considerou o contrário, não só aceitou toda a acusação do MP como válida, foi mais longe. Foi muito mais longe. A linguagem usada destina-se a provocar um espectáculo de humilhação política, cívica e moral de quem exerceu as funções de ministro da Defesa. Mandando Azeredo para julgamento, com acusações de teor político maximalista, e linchando o seu bom-nome num tribunal graças à prepotência com que exerce a soberania que lhe foi confiada pela República, o super-juiz consumava aquele que foi um processo político desde o início, tendo gerado crimes de violação do segredo de justiça em barda e servido como obscena munição eleitoral à descarada.

Agora, porque seria uma bomba institucional estar a condenar a prisão efectiva os militares da PJM, os quais agiram com excesso de espírito de corpo mas cheios de boas intenções castrenses, não se poderia continuar o linchamento de Azeredo. Se a ideia era a de resolver o berbicacho com penas suspensas para os militares que perderam a cabeça, nessa equação penal não dava para uma solução “à Vara” e inventar provas indirectas para prolongar o calvário de mais um alvo socialista. Eis que o procurador do julgamento reconheceu ter Azeredo Lopes razão quando afirmou ser inocente – só que deixando uma gargalhada dirigida lateralmente ao ex-ministro ao justificar o pedido de penas suspensas declarando que a vinda dos militares a julgamento já era castigo suficiente.

Rescaldo: o caso de Tancos produziu provas, confirma-se, mas contra parte do Ministério Público e contra o juiz Carlos Alexandre – useiros e vezeiros na captura de poderes constitucionais exclusivos com que se permitem violar o Estado de direito sem que alguém os consiga punir, sequer controlar.

Abria-se, portanto, uma janela para analisar e questionar todo o processo à luz do seu desfecho. Porque, tal como com Ivo Rosa na Operação Marquês, Carlos Alexandre vê decisões suas que são retintas perseguições políticas a serem revertidas por outros decisores judiciais.

Só que não vai acontecer. E por duas razões: (i) porque não existe imprensa em Portugal (leia-se o quase nada que os impérios mediáticos da direita disseram, e só para continuar a disparar sobre Azeredo, apagando tudo o resto); (ii) porque existe uma parte do Ministério Público fora-da-lei que tem um calendário de acção pleno de oportunismo, tendo avançado ontem com um trunfo farfalhudo a que tiverem de recorrer para soterrarem Tancos na lixeira da cidade. É o dois em um, está esgotada a sua utilidade e abafa-se a imundície.

Fonte aqui


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O estranho caso de Tancos

(Carlos Esperança, 07/07/2021)

(No dia seguinte ao pedido de absolvição pelo MP do ex-Ministro Azeredo Lopes no caso de Tancos, por nada ter conseguido provar contra o homem, a dita “Justiça” tirou da cartola a prisão de Luís Filipe Vieira. Coincidência ou uma tentativa passar para 2º plano a natureza política do caso de Tancos, contra o Governo, por interposta pessoa do ministro? Eu não creio em bruxas, pero que las hay, las hay. Comentário da Estátua de Sal)


Há dois anos, entraram em histerismo os corifeus desta direita e os seus apaniguados, os comentadores com lugar cativo na imprensa, abutres sequiosos de sangue e de desforra, a pedirem a cabeça do ministro da Defesa com a insânia com que tinham apoiado o pior PR e o mais impreparado PM do regime democrático. Nem a imprensa que aspira a ser de referência, se recatou nos editoriais incendiários.

Pensaram que os paióis de Tancos deviam estar guardados pelo motorista do ministro, com a viatura a obstruir a entrada, que as toneladas de armas sensíveis saíram às costas de imigrantes sazonais pelo buraco da rede, e que o Governo devia divulgar o material roubado cujo inventário tinha obrigação de ser do seu conhecimento prévio.

Esta direita não queria apenas o Diabo, desejava ardentemente o Inferno. Sentia-se no ar o cheiro a enxofre, uma semelhança esquisita com o Verão quente de 1975, que deixou estupefacto quem não crê em bruxas.

Basta escrever agora no pretérito o que já escrevi no presente do indicativo. Quando foi montada a operação destinada a extinguir a PJM foi loquaz a PGR Vidal, ora em mudo retiro espiritual, com Azeredo Lopes a ser então, na Defesa, o que é agora Eduardo Cabrita no MAI, acusado de crimes que pediam a sua cabeça e a do PM.

Quem recorda a chinfrineira deste caso da campanha eleitoral das legislativas, não pode alhear-se da tentativa de linchamento do atual MAI durante esta campanha autárquica, sobretudo depois de ver o Ministério Público, sem provas dos alegados crimes, a pedir a absolvição do ex-ministro.

Exige-se um módico de dignidade aos que tentaram então linchar o ministro da Defesa e forçaram o seu julgamento, a começar pelo PR, que disse o que o país gostou de ouvir, e não o que eventualmente sabia, de Marques Mendes e Passos Coelho aos comentadores e jornalistas que entraram em campanha para impedir que o Governo do PS, com apoio do BE, PCP e PEV pudesse repetir-se.

É na defesa da democracia e da genuinidade dos votos expressos, sem constrangimentos e guerra psicológica dos média e dos comentadores encartados que se exige um esforço de memória e a denúncia das velhacarias passadas. E presentes.


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