(Daniel Oliveira, in Expresso, 01/08/2020)

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Em pleno boom imobiliário, o Novo Banco vendeu 5552 imóveis e 8719 frações por quase metade do preço. Mesmo sabendo que este tipo de venda se afasta sempre da avaliação inicial, o desconto de 42% é exagerado. Na altura, Helena Roseta explicou a falta que aquelas casas àquele preço fariam para políticas de habitação de um Estado que despejou milhares de milhões no BES. O dinheiro que perdeu com a liquidação total de bens quando o imobiliário estava em alta será em grande parte coberto pelo Fundo de Resolução. Ou seja, por nós. O resto, emprestou o Novo Banco a quem comprou. E assim transformou 13 mil problemas em crédito fresco. Pode? Desde que o comprador não esteja ligado à Lone Star, sim. Não está? Não sabemos. Como quem lhe comprou foi a Anchorage, uma empresa com um fundo sediado nas Ilhas Caimão, com registo no Luxemburgo e com donos por nós desconhecidos, não foi logo divulgado. O Banco de Portugal, que tem como única função confiar na banca, confiou que não. Quando o negócio se fez, um dos vice-presidentes da Lone Star era David Bartlett. Depois foi contratado para diretor da Anchorage. Em Portugal, o negócio foi executado por cinco imobiliárias com sede na loja 19 do Shopping Columbia, compradas pela filial luxemburguesa da Anchorage. Com um historial de €200 de lucro fizeram, de uma assentada, o segundo maior negócio ibérico dos últimos anos. A expressão “cheira a esturro” usa-se para coisas menos evidentes.
Nada do que nos foi contado pelo jornalista Paulo Pena é ilegal. A fuga aos impostos no Luxemburgo, anónimos a comprar 13 mil casas, o banco que empresta dinheiro ao seu comprador, o Estado que banca um desconto de 42% em tempo de boom imobiliário… tudo seria crime se fosse feito por cidadãos que têm de provar e pagar para comprar uma casa. Com eles não é. Não estou a falar dos poderosos. Isso é conversa para quem procura inimigos fáceis. Já quase não há poderosos desses. Há um poder sem limites de uma massa anónima a que chamamos finança, constituída por meia dúzia de fundos gigantescos. Foi esse poder que transformou o crime em legalidade, tecendo uma malha que torna risível qualquer regulação. Que usa a chantagem para transformar o uso decente de recursos públicos num ato revolucionário. Que estoira o dinheiro da economia e dos impostos no casino.
Ricardo Salgado foi um pilha-galinhas vindo do tempo em que a banca tinha rostos e famílias. Teve azar e foi apanhado a fazer o que se faz quando tudo corre mal. Estou a generalizar, dizendo que a banca se dedica hoje ao crime? Estou.
Não há bancos bons. E não é porque os banqueiros sejam maus. É porque permitimos que se erguessem gigantes opacos impossíveis de controlar. E sem controlo e limites qualquer um se torna monstro. Henry Ford terá dito que se as pessoas soubessem como funciona a banca haveria uma revolução.
Sabemo-lo no bolso, e a revolução não chegou. Proponho uma: assumir que o que a lei não pode controlar devem os Estados possuir. Parece excessivo? A léguas da náusea deste assalto diário. Podemos culpar Salgado, a UE, o Banco de Portugal, Carlos Costa, Centeno, Passos Coelho ou António Costa. Mas a maior ingenuidade é a de quem acredita que o BES pode não repetir-se. Ele nunca deixou de acontecer.