Problemas bancários no horizonte?

(Paul Craig Roberts, in Resistir, 14/03/2023)

A falência do Silicon Valley Bank (16º maior banco dos EUA) na sexta-feira passada resultou da retirada de fundos pelos depositantes em resposta a uma queda no valor das carteiras de obrigações do banco, causada pela subida irreflectida das taxas de juro por parte da Reserva Federal. A política sem sentido implementada pela Reserva Federal remedeia a inflação ao produzir corridas a bancos, bancos falidos e desemprego. A Reserva Federal e os economistas neoliberais ainda estão presos ao desgastado pensamento do keynesianismo do século XX.


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A Grande Ilusão 2.0

(Por Raphaël Rossello, in Marianne.net, 28/12/2022, trad. Estátua de Sal)

Como banqueiro de investimentos, contribuí e fui um espectador da construção de uma quimera“. Se é um banqueiro que o diz, deve ser mesmo verdade. Afinal, os banqueiros também têm lugar na Estátua de Sal…


Desde 1987, as economias ocidentais têm andado a enganar-se a si próprias. Quanto à sua capacidade de criar riqueza, quanto ao valor dos seus bens e sobretudo quanto ao montante da sua dívida. Os enormes passivos, formados para sanar múltiplas crises como a da Internet ou a das hipotecas subprime, serão lembrados por consumidores e governos. E os efeitos serão devastadores. Este diagnóstico não é feito por um alter-capitalista, mas por um banqueiro de investimentos que participou na montagem dessa grande armadilha.

Minha posição como banqueiro de investimentos na economia real fez de mim um contribuinte e um espectador da construção de uma quimera. Depois de ter sido fonte de satisfação para um quarto da população ocidental, a iminência da sua revelação mostrará a sua toxicidade, em conformidade com a imagem mitológica de um animal mau.

A descoberta, pela maioria, dessa ilusão que se tornou o único suporte do Ocidente vai minar a democracia, a economia de mercado, o progresso social, o Estado de direito, a fraternidade e a solidariedade humana, de que nos orgulhamos. Os seres humanos e seus governantes sempre esconderam as realidades desagradáveis atrás de um pano de fundo mais lisonjeiro. Logo, não é esse estratagema que me surpreendeu, é a sua magnitude. Essa magnitude é a razão do meu espanto que não posso silenciar.

O “demasiado grande para falir” das horas que antecederam a falência do Lehman Brothers expressa a confiança, para não dizer a certeza, de que o paradigma não pode ruir porque as consequências seriam muito graves. Os políticos, apoiados pelos maiores fazedores de opinião, recusam-se, por cobardia, sequer a considerar que o modelo neoliberal-progressista das últimas três décadas se encontra numa fase irreversível de desintegração. O paradigma desaparecerá pelos mesmos motivos que o tornaram famoso porque o próximo “cisne negro” promete ser mais violento que a falência do Lehman.

De noite e em silêncio, o capitalismo, do qual continuo a ser um fervoroso defensor por todos os seus méritos, metamorfoseou-se no neoliberalismo, cuja nocividade denuncio.

Por razões ainda enigmáticas para a ciência económica e para os apóstolos do neoliberalismo, o crescimento dos ganhos de produtividade, motor do crescimento económico e dos lucros do século XIX e início do século XX, começou a declinar globalmente desde a década de 1970. Embora esse processo esteja mais que comprovado e documentado, ele é tão imediatamente contraintuitivo que é inaceitável. Com efeito, como explicar que a produtividade, fruto da associação entre a tecnologia e o Homem, esteja em regressão justamente no momento em que é mais amplamente difundida e disseminada, e mais facilmente acessível? A complexidade muito particular desse fenômeno obscureceu a sua visibilidade e impediu-me, durante vinte anos, de entender a sua origem e o seu mecanismo, antes de anunciar a ocorrência do seu colapso.

Condorcet e Victor Hugo podiam maravilhar-se com o Progresso que testemunhavam porque se baseava numa abundância crescente e numa prosperidade tangível que podia ser partilhada. Embora os séculos XIX e XX tenham sido marcados por greves, revoltas e revoluções sangrentas, estas foram seguidas de efeitos positivos, uma vez que o tamanho do bolo a partilhar continuou a crescer. Há sessenta anos, este progresso material e social foi rebatizado como crescimento. A história dos factos e o pensamento económico apontam ambos no mesmo sentido: a fase final do crescimento que apoia a democracia, o Estado de direito e a justiça social requer um estado de abundância correspondente à chamada fase do consumo de massas. Esta fase foi, de facto, atingida no final dos trinta anos gloriosos, após a Segunda Guerra Mundial.

Sendo o consumo e os ganhos de produtividade as duas chaves-mestras do crescimento, e este o motor da prosperidade moderna, é essencial apoiar a primeira quando se é impotente para ressuscitar a segunda. Tornou-se então claro que, quanto maior a riqueza das famílias, maior a sua propensão para o consumo. Foi tudo o que foi necessário para serem implementadas políticas que procuravam deliberadamente um aumento artificial da riqueza, indevidamente designado por “efeito riqueza”.

A Grande Ilusão 2.0 é o resultado deste efeito, abertamente assumido pelos homens do dinheiro, os banqueiros centrais como Greenspan, Draghi ou Lagarde, com a bênção dos neo-liberais-progressivos no poder. Além disso, o efeito riqueza é mais eficaz em países onde os ativos das famílias são altamente financeirizados. É o caso dos países anglo-saxónicos onde os sistemas de pensões se fundamentam no princípio da capitalização, sendo geridos por fundos de pensões.

Situo, deliberadamente, o nascimento da Grande Ilusão 2.0 imediatamente após a crise bolsista de Outubro de 1987. Quando, a 19 de Outubro desse ano, as bolsas mundiais perderam quase um quarto da sua capitalização num só dia, pudemos compreender o pânico do mundo financeiro, que está intimamente ligado ao mundo político. Juntos, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para evitar que tais catástrofes se repetissem, pois eram tão prejudiciais aos seus próprios interesses egoístas como ao equilíbrio económico e político global do Ocidente.

Os Estados Unidos da América continuam a ser o motor da economia global graças ao facto prodigioso de metade da população americana responder por quase um quarto do consumo global! Juntamente com os bens imobiliários, as ações e obrigações representam a maior parte da riqueza das famílias americanas. Como resultado, as tendências do mercado bolsista condicionam o sentido desejado de riqueza. A expansão excecional e onírica dos mercados financeiros, desde 1988, explica a persistência dos níveis do consumo americano.

Mas este efeito, dito de riqueza, é o produto de uma gestão anormal da poupança. A anomalia resulta de uma prática que começou nos anos 90 e que continuou a intensificar-se. É a descida voluntária das taxas de juro diretoras pelos grandes bancos centrais, apoiados pelos políticos, para reduzir os custos da dívida, tornando-a quase gratuita. Foi o que aconteceu e estávamos enganados. Pensávamos estar a impulsionar a atividade económica, mas só alimentávamos bolhas sucessivas: a Internet em 2000, subprimes imobiliários em 2007, tecnologia em 2020. Alguns autores, a maioria germânicos, chamaram a esta prática “poupança negativa” ou “tributação da poupança”. Perante a insuficiência de tal medida para sustentar a economia de forma durável, os mesmos propagandistas da taxa de juro zero defenderam deliberadamente a criação monetária. As políticas monetárias acomodatícias floresceram em todo o mundo, desde o Japão até aos EUA, China e Europa. O único efeito destas medidas foi encorajar o recurso ao endividamento sistemático e massivo. Para que as famílias recorram a todas as formas de crédito para liquidar outros créditos e a outras formas de crédito ao consumo. Para que as empresas, regiões e municípios assumam dívidas para apoiar as suas atividades e o valor dos seus ativos.

Essas técnicas, que parecem sofisticadas – e são altamente matemáticas -, mas, na verdade, sempre se baseiam em dívida. Agentes económicos, políticos e sociais de todos os níveis, sejam americanos, chineses, franceses ou ingleses, estão todos no mesmo barco.

Olhando para as sociedades modernas, o mundo da poupança e do investimento procura taxas de rentabilidade cada vez mais altas, enquanto a atividade real é incapaz de as gerar. Para as alcançar, custe o que custar, os profissionais do investimento têm recorrido, desde 1988, ao endividamento crescente de forma irreversível.

Os Estados, preocupados em não revelar aos seus eleitores o estado de regressão económica subjacente, recorrem ao défice de forma deliberada e sistemática. Deficit que é só dívida. Ainda acreditamos que a França é o pior aluno, tendo um deficit permanente há 40 anos. É verdade, mas é, em proporção, menos de metade do crescimento americano que foi fruto exclusivamente de um deficit crónico, quase o dobro do da França, no mesmo período. É, pois, legítimo concluir que o crescimento económico de nações como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França foi a crédito. Mas omite-se dizer, por norma, que sem o recurso a este crédito, estes países estariam em recessão há décadas. Conclusão insana e absurda que muitos considerariam ironia. Mas é a conclusão para a qual a realidade aponta.

Essa observação perturbadora mergulha as nossas certezas num abismo de perplexidade. Tem-se ocultado que, ao contrário das aparências, o tamanho do bolo de riqueza que os cidadãos realmente precisam não aumentou desde 1988 na mesma proporção dos séculos anteriores. Ao contrário da riqueza, criada artificialmente, que não parou de crescer.

Tendo eu participado pessoalmente nessa criação artificial de riqueza, continuo perplexo, estupefato, maravilhado não com o fenômeno, mas com sua magnitude. É concebível que as últimas três bolhas nas ações da Internet, subprime e tecnologia tenham empurrado os preços das ações para 30, 40 ou 50% acima do que chamamos o valor intrínseco. Mas estamos perante uma criação de riqueza, impulsionando valorizações de 300, 400, 500% além de uma lei normal. E pela primeira vez na história.

Quando o cineasta Jean Renoir apresentou sua obra-prima “A Grande Ilusão” observou que a Grande Guerra marcou o fim de um mundo de elegância e refinamento de certas classes sociais incapazes de escapar do seu destino e de se guerrearem. Em comparação com o seu cenário, a versão 2.0 da Grande Ilusão terá uma dimensão trágica para a maioria das pessoas porque esta ilusão é excessiva, extravagante. No espaço de uma geração, o Ocidente perdeu o que o tornou superior: o discernimento.

Como tudo na terra está sujeito à força da gravidade, as pessoas estupefatas testemunharão a verdade escondida por trás do cenário.

A ilusão nasceu da dívida gratuita. A desilusão também surgirá da dívida, mas da onerosa. Quando a taxa de juro aumenta, as famílias reduzem o seu consumo. Mas o mais grave é a desvalorização do património (ou riqueza) formado por ativos financeiros, que seguirão a mesma trajetória.

As tragédias do Ocidente, nos últimos séculos, foram engrenagens mortais, muitas vezes nascidas de mal-entendidos. A tragédia de hoje é ter dado às nações a sensação artificial de beneficiarem, repetidas vezes, da crescente maré do Progresso. Mas nós vamos ser, apesar de todos os esforços e artifícios para a impedir e a ocultar, os espectadores da vazante que mostra a regressão da riqueza útil e necessária à paz social. O inchaço historicamente descomunal e anormal de ativos não conseguiu mudar o curso da história. A vazante das marés do equinócio exporá as carcaças enferrujadas, testemunhas de conquistas passadas.

O efeito dominó vai manifestar-se na queda violenta do consumo americano após a queda no valor dos ativos. É a China, dependente do consumidor americano, que sofrerá mais efeitos e, consequentemente, tal enfraquecerá a economia alemã, que é um dos seus principais fornecedores. No entanto, é a saúde financeira da Alemanha que permite que países europeus como a França assumam novas dívidas a taxas razoáveis ​​para pagar as suas dívidas antigas de taxas baixas.

A paz social no Ocidente foi comprada na Europa por meio de benefícios sociais financiados por dívida. A paz social nos países anglo-saxões foi alimentada pela esperança de todos poderem participar na fortuna tecnológica que, na verdade, era apenas o produto de um enorme endividamento.

O pior não é que os ocidentais sejam forçados nos próximos dois anos a voltar ao caminho de uma economia “centrada no ser humano”. Incapazes de vencer no campo de batalha, devemos temer que os Putins possam vencer no campo das ideias, apontando o dedo para o caos do Ocidente que está por vir. Os nossos governos, prisioneiros da sua certeza de estarem no lado do bem, na verdadeira e na única solução, recusam-se a cogitar uma mudança de 180° nas suas políticas. Não dão os passos para apoiar uma atividade socialmente útil, reconhecidamente incompatível com a criação de unicórnios.

Os poucos remédios possíveis dependem acima de tudo do diagnóstico e da sua rapidez. Nenhum médico pode curar um paciente que se recusa a admitir o estado da sua doença. Os youtubers admitem prontamente o meu diagnóstico. As pessoas da corrente dominante e da ortodoxia recusam-se mesmo a ouvi-la. Mas pode já ser demasiado tarde quando concordarem em fazê-lo, porque o tempo está a esgotar-se.

Fonte aqui


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Porque não podemos desistir de nos indignarmos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/11/2020)

Miguel Sousa Tavares

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1 Uma das muitas coisas que a minha mãe me ensinou em vida foi a olhar bem para a cara das pessoas para adivinhar o que se ocultava atrás delas. Lembrei-me bem disso quando olhava para a cara de Tomás Correia, o ex-presidente do Montepio, quando via as suas estudadas roupas e a sua pose de banqueiro presumido, as suas falinhas mansas de engana-tolos e, no final, o seu desesperado esbracejar para se manter agarrado a um lugar que parecia e imaginava vitalício. Estava ali, à frente daquela espécie de banco mutualista, graças a uma curiosa aliança entre socialistas, maçons e católicos, para além de gente de todas as proveniências e influências — como ficou bem demonstrado na lista de ‘notáveis’ que veio a público apoiar a última recandidatura do Dr. Tomás Correia ao Montepio, decerto retribuindo alguma ‘atenção’ deste recebida a seu tempo.

Porém, já então se adivinhava, mesmo para quem estava de fora, que havia um incêndio a arder em lume brando na casa e que quem de direito uma vez mais fechava os olhos, fingindo não ver nada nem cheirando nada. O Montepio aguentava-se no azul por misericórdia de um crédito fiscal de 800 milhões a favor do Estado, que lá se mantém e que, adivinhem, obviamente nunca será pago. Mas nem seria preciso ser um atento supervisor para, sem sequer cumprir o dever de meter o nariz nas contas da prestimosa agremiação, chamar o Dr. Tomás Correia e, seguindo o ensinamento da minha mãe, dizer-lhe: “O senhor vai-se embora porque a sua cara não me inspira confiança.” Ele acabou por sair, é certo, empurrado por todos os lados, mas com anos de atraso e imagino que bem reformado. E lá deixando homem por si, com o apoio da maioria dos sócios.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Agora, um grupo de associados, valendo-se da sua pretérita condição de minoritária oposição à gestão de Tomás Correia, veio apelar ao Governo para que acorra ao Montepio, onde se verificam, dizem-nos, “dissonâncias financeiras”. Isto, é: está em muito maus lençóis, suponho. Ao que parece, a diferença destas para as “dissonâncias financeiras” que o Novo Banco, sempre escudado nos contribuintes, apresenta invariavelmente todos os anos (acaba de anunciar um novo recorde de 800 milhões, antes mesmo de fechar o ano), são, apesar de tudo, favoráveis à gestão do Montepio: o Montepio perde dinheiro porque não sabe como o há-de evitar; o Novo Banco perde dinheiro vendendo património e, quanto mais vende, mais perde. Se o Novo Banco é um autêntico case study de gestão bancária a nível planetário e um motivo de eterna anedota em matéria de contratos públicos nas Faculdades de Direito, o Montepio era um caso tão previsível como adivinhar a data do Natal todos os anos.

Pelo que, e não existindo desta vez algum contrato escondido de sacrifício dos contribuintes no altar da banca, a solução é evidente e nem merece conversa: deixem-no entregue à sua sorte. Lamento muito pelas excelentes entidades cujas poupanças ficarão a arder. Não duvido que elas existam e que o seu dinheiro tenha custado a poupar. Mas, por isso mesmo, deveriam ter-se ocupado em tomar conta dele antes. Mas, se não o fizeram quando o deviam ter feito, agora os 600.000 sócios do Montepio, as dezenas de notáveis que vieram jurar em público que o Dr. Tomás Correia era um banqueiro de primeira água, os seus amigos de avental e de sotaina, tenham a decência mínima de não vir pedir a um país exangue e a um Estado forrado de dívidas que pague a sua irresponsabilidade.

2 No dia 11 de Março passado, o ucraniano Ihor Homeniuk, de 40 anos de idade, casado e pai de uma rapariga de 14 anos e de um rapaz de 9, entrou em Portugal pelo Aeroporto da Portela, com um visto turístico. Quinze horas depois, morria numa sala do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do mesmo Aeroporto, após ter sido espancado até à morte e em termos de uma cobardia e selvajaria inomináveis, às mãos de três agentes do SEF e perante a cumplicidade e a passividade de mais nove outros elementos. O motivo: ser suspeito de um crime cometido por milhões de portugueses ao longo das últimas décadas, qual era o de querer emigrar para onde encontrasse melhores condições de vida. Desde então, a quadrilha de assassinos (surpreendentemente mantida apenas em prisão domiciliária, com a justificação da covid), remeteu-se a um pacto de silêncio e ao mesmo silêncio se remeteu a directora do SEF, Cristina Gatões.

Esta senhora directora do SEF, como é evidente, não tem a mais pequena condição de dignidade para se manter um dia que seja a mais no cargo que ocupa

Durante oito meses, a responsável máxima por um serviço que durante 15 horas se entreteve a matar à pancada um cidadão estrangeiro não achou necessário dar uma palavra ao país. Uma tentativa de explicação, um pedido de desculpas, uma nota de nojo e de estupefacção, uma garantia de que aquilo não era o habitual nos serviços que dirigia. Mais: nem sequer entrou em contacto com a família da vítima, nem, aparentemente, se incomodou a abrir uma investigação, de alto a baixo aos serviços do SEF no Aeroporto de Lisboa. Ou a instaurar um processo disciplinar e expulsar da função pública aqueles senhores. E agora, que finalmente quebrou o silêncio numa entrevista a Cândida Pinto, da RTP, revelou ainda que nunca falou com os implicados no crime pois que “primeiro quero que lhes sejam assegurados tudo o que são direitos enquanto arguidos”. Ou seja, está mais preocupada com os direitos dos criminosos do que com os da vítima, que já cá não está para os reivindicar, e vai esperar anos até ao trânsito em julgado da sentença judicial para tentar saber de viva voz junto deles como é que aquilo foi possível. Para perceber que cultura de bestialidade e de impunidade era essa que se vivia, ou viverá ainda, no aeroporto de Lisboa, que a sua directora desconhecia e que permitia a três polícias dispor a seu bel-prazer da vida de um ser humano e enxovalhar Portugal aos olhos do mundo. “Achei importante — diz ela agora — manter-me prudentemente em silêncio enquanto as investigações se faziam.” Achou importante? Importante para quê? Para nos deixar mais sossegados, para nos tirar da lista negra do Comité da Tortura da União Europeia? Para ensinar aos senhores do SEF que o nível de um Estado de Direito se começa a medir exactamente pela forma como um estrangeiro é recebido nas fronteiras de um país? Ou para que do seu uivante silêncio os restantes elementos do SEF concluíssem que, antes do mais, ela estava solidária com os direitos de defesa dos assassinos, assim evitando a contestação interna? Para quê e para quem era importante o seu prudente silêncio?

Esta senhora, como é evidente, não tem a mais pequena condição de dignidade para se manter um dia que seja a mais no cargo que ocupa. Quanto mais não seja, pela resposta que deu a essa mesma pergunta: “Nunca poderia demitir-me porque era uma responsabilidade à qual não poderia fugir. Abandonar não adiantaria nada.” Adiantaria, sim, minha senhora. Lisboa ficaria prudentemente mais limpa.

3 Ainda a tempo, porque, de facto, há coisas que não podem passar em vão. A propósito dos atentados de Nice, em que um muçulmano tunisino, recém-desembarcado na Europa via Lampedusa, matou, degolando, três mulheres que rezavam na catedral, twitou D. Manuel Linda, bispo do Porto (sim, os bispos também já pregam no Twitter): “O atentado não é a luta do Islão contra o Cristianismo, é o resultado dos preconceitos daqueles europeus que não só não fomentam o diálogo intercultural e inter-religioso como estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões.” Esta afirmação é infame, não há outra palavra para a definir. Não só o bispo não tem uma palavra de horror e de compaixão para com três fiéis que foram degoladas porque rezavam a Deus (tanto que, depois teve de acrescentar novo tweet a dizer que condenava os ataques), como inocentou o assassino que matou por ódio religioso e acusou da barbárie aqueles que, não tendo religião, jamais alguém poderá acusar de matar por tal motivo. E esquece ou ignora que em França existem mais de mil mesquitas ou madraças onde os muçulmanos ensinam e exercem livremente a sua fé, muitas vezes, porém, fazendo delas escolas de incitamento ao ódio e ao terrorismo. O mundo pode estar de pernas para o ar, mas ainda é suposto um bispo ter a cabeça na terra e a palavra no Evangelho. Eis um bom exemplo que ele dá do tal fanatismo religioso que quer que não se acuse.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia