(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 20/12/2020)
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Se calhar já não se lembra deste nome, Abu Ghraib. É o de uma prisão a 32 quilómetros da capital do Iraque, Bagdad, na qual ocorreram várias violações de direitos humanos no início da invasão daquele país em 2003. Incluíram tortura, violação e homicídio e foram conhecidos publicamente graças a fotografias obtidas pelos media – fotografias que soldados americanos tinham guardado como recordação e que acabaram por ir parar à cadeia de TV CBS.
Na altura, o governo de George Bush filho certificou tratar-se de “casos isolados”, que não refletiam a política da administração americana. Dezassete soldados e oficiais foram afastados das Forças Armadas, 11 deles levados a tribunal marcial e condenados.
A sentença mais alta foi de dez anos; Janis Karpinski, a responsável por todas as instalações prisionais no Iraque ocupado, foi despromovida a coronel mas vários outros soldados e oficiais envolvidos não foram sequer acusados. Em 2004, Bush pediu desculpas públicas pelo caso.
Não é que houvesse grandes dúvidas, mas o que se sabe desde então sobre os métodos usados pelas forças armadas e sobretudo pelos serviços secretos americanos na chamada “guerra ao terror” permite concluir que a violação sistemática dos direitos humanos dos prisioneiros não era um desvario ocasional de gente malformada e criminosa mas um método.
Claro que, e isso é da história, quando há poder não sindicado de pessoas sobre pessoas, quando esse poder é exercido em instituições ou locais que primam pela opacidade e nos quais as eventuais vítimas não têm forma de recorrer a auxílio ou veem esse auxílio extremamente dificultado, com as garantias do Estado de direito a serem-lhes negadas com a cumplicidade dos próprios representantes desse mesmo Estado de direito – como é o caso, nunca demais repeti-lo, dos juízes que deferem por mail ou fax extensões de prazo de detenção aos estrangeiros colocados nos centros de detenção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras sem sequer os verem, não sabendo pois se estão vivos ou mortos, espancados ou ilesos (quando a extensão da detenção de Ihor Homeniuk foi deferida, este já teria sido alvo das agressões que viriam, segundo a acusação, a causar-lhe a morte; se o juiz tivesse exigido vê-lo, tê-lo-ia provavelmente salvado) -, acontecem abusos, maiores ou menores. Não é preciso um mestrado em psicologia organizacional para saber isso.
E no entanto não o sendo e havendo há anos alertas de várias organizações de defesa dos direitos humanos, assim como da Provedoria de Justiça e do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura (que funciona na provedoria sob a égide das Nações Unidas) nada se fez quanto a isso. Até que finalmente aconteceu uma morte (pelo menos uma, já que há pelo menos outros dois casos revelados pelo ministro Eduardo Cabrita, um em 2014 e outro em 2019, atribuídos a “rebentamento” de bolotas de droga) e agora, de repente, se anuncia que tudo ou quase tudo o que era denunciado vai finalmente ser resolvido.
Acontece que o que foi denunciado é o motivo do que aconteceu. É o motivo da morte de Ihor Homeniuk. É o motivo das agressões a todos os ali agredidos, dos maus-tratos e desumanidades ali perpetrados, das humilhações ali sofridas. O que significa que quem em tempo e perante as denúncias não resolveu, como quem sabendo do que se passava não denunciou, é responsável pelo que aconteceu. E os responsáveis são muitos.
Mas vamos primeiro ao que foi denunciado. Desde logo, a total opacidade dos locais de detenção, sobre os quais até agora pouco se sabia publicamente quanto ao modo de funcionamento e gestão. O isolamento das pessoas ali colocadas, a quem eram retirados os telemóveis e apenas permitido o uso de telefone uma vez de forma gratuita e por escassíssimo tempo (as testemunhas falam de dois minutos) ou através de um cartão telefónico, e a quem não eram permitidas visitas.
A dificuldade de acesso para advogados e mesmo para instituições do Estado como a provedoria – num dos relatórios sobre estes centros, é dito que os seus representantes estiveram horas à espera de que lhes fosse permitida a entrada no Espaço Equiparado a Centro de Instalação de Lisboa. O medo que os detidos demonstravam, e que é relatado nos mencionados documentos da provedoria, nos quais há até referência a denúncia de agressões físicas que depois quem denunciou acabou por não confirmar. A inexistência de tradução/intérpretes que aliás a própria lei admite, ao dizer que se deve comunicar com o estrangeiro “numa língua que ele presumivelmente compreenda” – e, conclui-se, se não perceber paciência, estudasse -, daí que no papel dado aos detidos com informação, de resto bastante cifrada, sobre os seus direitos e deveres, esta só viesse em português, espanhol, inglês e francês.
Foi até denunciado que a lei de 1994 que cria estes eufemisticamente denominados “centros de instalação” remete para um diploma de 1979 revogado, atinente aos presos preventivos – os quais têm decerto muito mais direitos do que aqueles que eram até agora reconhecidos aos “instalados” -, deixando assim aqueles espaços num limbo legal que favoreceu a criação do território de exceção que a provedora Maria Lúcia Amaral apelidou, numa entrevista de 2018 ao Público, de “terra de ninguém”.
Um lugar sem lei, literalmente, onde mandavam os que lá estavam – e quem lá estava em permanência eram funcionários de uma empresa de segurança privada que agiam a seu bel-prazer, o que se comprova pelo facto de manietarem pessoas (fizeram-no a Ihor) como se fossem autoridade pública – e sem que qualquer dos inspetores do SEF que isso constataram os tivesse admoestado ou denunciado, querendo dizer que para eles estava OK e não era sequer novidade.
Perante esse crime – porque é de crime que se trata, apesar de o Ministério Público não o ter tratado como tal, já que não acusou os fautores – e a sua aceitação pelos vários polícias que com ele conviveram, é impossível não concluir que aquilo que ali se passava, como o que se passou concretamente com Ihor e, de acordo com os vários testemunhos recolhidos pelo DN (e também pelo Expresso desta sexta-feira), com outros estrangeiros – refiro-me às agressões que seriam perpetradas na “salinha” onde não havia câmara de vigilância -, era do conhecimento de todo o SEF do aeroporto de Lisboa. Não era possível não ser, já que qualquer inspetor podia ali entrar a qualquer momento. E custa a crer que o não fosse da direção regional de Lisboa e da própria direção nacional.
Diga-se de resto a esse respeito que caso a direção nacional do SEF não soubesse dos concretos crimes perpetrados no EECIT, assim como da forma totalmente inaceitável como as pessoas eram, mais uma vez a crer nos testemunhos, tratadas nas “entrevistas”, tal não a isenta de responsabilidade: é uma manifestação de total incompetência não saber o que se passa sob o seu comando no principal aeroporto do país.
E o mesmo se aplica à tutela governamental e à Inspeção-Geral da Administração Interna. Esta, que tem a atribuição de fiscalização do SEF, nunca fez, de acordo com o que o DN conseguiu saber, uma inspeção sem aviso prévio ao SEF do aeroporto da capital. E das inspeções que terão sido feitas e recomendações delas resultantes não deu até agora conhecimento público, apesar de o DN já lho ter solicitado várias vezes.
Apesar do escândalo público, ainda há quem esteja a reter informação, concluindo-se daí que ou não houve inspeções a sério e recomendações condizentes ou, havendo, não foram acatadas. De todo o modo, o que se sabe de certeza é que perante os alertas e recomendações da provedoria – que, já agora, poderia ter sido bem mais vocal na sua atuação em prol dos direitos humanos dos detidos pelo SEF – o ministério da Administração Interna não se mexeu. Não pugnou por alterar a lei e os procedimentos, não chamou à pedra a direção do SEF. Deixou andar.
E isso, lamento, ministro Eduardo Cabrita, não é a atuação de um paladino dos direitos humanos. Não é mesmo.
Como não é a dos sindicalistas do SEF que agora vêm certificar que o problema são umas maçãs podres e não toda a força policial. Os sindicalistas que nunca souberam de tanto abuso e ilegalidade. Que nunca repararam que havia colegas com armas proibidas – refiro-me aos bastões que dois dos acusados pelo homicídio de Ihor Homeniuk tinham consigo e que um deles empunhava quando entrou na sala onde o cidadão ucraniano estava, e que de acordo com testemunhos de inspetores à PJ muitos mais possuem e ostentam diariamente. Que nunca ouviram falar das ameaças a advogados, das entrevistas “musculadas”, das agora denunciadas tareias no EECIT de Lisboa e das conduções em cadeira de rodas para os aviões. De tudo o que de tão errado e tão chocantemente contra todas os princípios do Estado de direito e dos direitos humanos que como polícias são supostos defender e representar ali se passava.
Não há volta a dar: quando as coisas chegam a este ponto não é de casos isolados que falamos, é de um método. O SEF tornou-se uma máquina de humilhação e de agressão, uma escola de crime. E tornou-se isto porque lho permitiram. Porque quiseram que o fosse. Foi esse método, não o acaso, não o desvario de maçãs podres, que matou Ihor Homeniuk.
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