A questão não é existir uma foto de João Rendeiro no momento da captura. Diz-se que é hábito no mundo anglo-saxónico para defesa do detido. O relevante é ela ter sido divulgada para gáudio popular, permitindo a devida pena de humilhação do condenado. Se a foto era necessária, ficava onde tinha de ficar. Porque Rendeiro não perdeu o direito à sua imagem, só o direito à sua liberdade.
Não sei quem divulgou a imagem. Para o que escrevo aqui, são indiferentes os crimes que João Rendeiro cometeu. É até indiferente a forma como gozou com a Lei e, por essa via, com as vítimas dos seus crimes e com o Estado português. A superioridade da Justiça mede-se pela forma como nunca permite que aqueles que julga e pune percam a dignidade.
Sei que aquela imagem, por despojar o milionário de todo o seu poder, terá dado gozo a muita gente. É o lado medieval que nos resta. Aquele que nunca se contenta com a burocrática justiça das instituições e precisa de uma dose de humilhação suplementar. Se o homem for poderoso e rico dá um pouco mais de prazer. Mas, com esta foto, não é Rendeiro que se rebaixa, são as instituições.
Recordo-me de uns fugitivos, suspeitos de furtos a idosos no Grande Porto, que depois de serem algemados e sentados no chão foram fotografados. Foi em 2018. Um desses novos “sindicatos” de polícia dominados pela extrema-direita divulgou a imagem nas redes sociais. Um ato vil que não sei se terminou na expulsão de alguém. Fotografar a humilhação de um detido é como bater numa pessoa algemada: um ato de abjeta cobardia que torna o seu autor igual a quem é detido. Como Rendeiro, abusa do seu poder e está convicto da sua impunidade.
Não faço qualquer distinção entre João Rendeiro e os três foragidos do Porto. Todos têm direito à mesma dignidade e imagem e a todos o Estado deve esse respeito. E não deixo de fora a comunicação social, que divulgou a foto. Não há nada mais desresponsabilizador e menorizador do jornalismo do que o apelo sonso para não atacarem o mensageiro. Um jornalista não é um carteiro. É alguém que trata com sentido critico a informação que recebe. Ao divulgar uma foto de Rendeiro de pijama, recolhida sem o seu consentimento num momento em que não era livre para o dar, participaram na indignidade.
A tentação de divulgar aquela foto não é outra coisa que a tentação de fazer justiça pelas próprias mãos. De dar a canelada em quem já está no chão. Não levem a mal, mas prefiro um burlão a um justiceiro cobarde. Pelo menos o burlão não finge que está do lado do bem.
Mas num país em que Manuel Pinho, que vai pelo seu pé a um interrogatório, é detido para não fugir ou não destruir prova – há alguma prova intacta que ainda não tenha sido recolhida – ao fim de nove anos de investigação enquanto um condenado que gritava que ia fugir foi deixado com passaporte, talvez o pijama seja um pormenor. Quando, ao fim de 11 anos de investigação das PPP, há quem fique sob eterna suspeita por prescrição, talvez tenhamos que concluir que para a Justiça garantir a dignidade dos cidadãos tem de começar por tratar da sua.
1 Uma das muitas coisas que a minha mãe me ensinou em vida foi a olhar bem para a cara das pessoas para adivinhar o que se ocultava atrás delas. Lembrei-me bem disso quando olhava para a cara de Tomás Correia, o ex-presidente do Montepio, quando via as suas estudadas roupas e a sua pose de banqueiro presumido, as suas falinhas mansas de engana-tolos e, no final, o seu desesperado esbracejar para se manter agarrado a um lugar que parecia e imaginava vitalício. Estava ali, à frente daquela espécie de banco mutualista, graças a uma curiosa aliança entre socialistas, maçons e católicos, para além de gente de todas as proveniências e influências — como ficou bem demonstrado na lista de ‘notáveis’ que veio a público apoiar a última recandidatura do Dr. Tomás Correia ao Montepio, decerto retribuindo alguma ‘atenção’ deste recebida a seu tempo.
Porém, já então se adivinhava, mesmo para quem estava de fora, que havia um incêndio a arder em lume brando na casa e que quem de direito uma vez mais fechava os olhos, fingindo não ver nada nem cheirando nada. O Montepio aguentava-se no azul por misericórdia de um crédito fiscal de 800 milhões a favor do Estado, que lá se mantém e que, adivinhem, obviamente nunca será pago. Mas nem seria preciso ser um atento supervisor para, sem sequer cumprir o dever de meter o nariz nas contas da prestimosa agremiação, chamar o Dr. Tomás Correia e, seguindo o ensinamento da minha mãe, dizer-lhe: “O senhor vai-se embora porque a sua cara não me inspira confiança.” Ele acabou por sair, é certo, empurrado por todos os lados, mas com anos de atraso e imagino que bem reformado. E lá deixando homem por si, com o apoio da maioria dos sócios.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
Agora, um grupo de associados, valendo-se da sua pretérita condição de minoritária oposição à gestão de Tomás Correia, veio apelar ao Governo para que acorra ao Montepio, onde se verificam, dizem-nos, “dissonâncias financeiras”. Isto, é: está em muito maus lençóis, suponho. Ao que parece, a diferença destas para as “dissonâncias financeiras” que o Novo Banco, sempre escudado nos contribuintes, apresenta invariavelmente todos os anos (acaba de anunciar um novo recorde de 800 milhões, antes mesmo de fechar o ano), são, apesar de tudo, favoráveis à gestão do Montepio: o Montepio perde dinheiro porque não sabe como o há-de evitar; o Novo Banco perde dinheiro vendendo património e, quanto mais vende, mais perde. Se o Novo Banco é um autêntico case study de gestão bancária a nível planetário e um motivo de eterna anedota em matéria de contratos públicos nas Faculdades de Direito, o Montepio era um caso tão previsível como adivinhar a data do Natal todos os anos.
Pelo que, e não existindo desta vez algum contrato escondido de sacrifício dos contribuintes no altar da banca, a solução é evidente e nem merece conversa: deixem-no entregue à sua sorte. Lamento muito pelas excelentes entidades cujas poupanças ficarão a arder. Não duvido que elas existam e que o seu dinheiro tenha custado a poupar. Mas, por isso mesmo, deveriam ter-se ocupado em tomar conta dele antes. Mas, se não o fizeram quando o deviam ter feito, agora os 600.000 sócios do Montepio, as dezenas de notáveis que vieram jurar em público que o Dr. Tomás Correia era um banqueiro de primeira água, os seus amigos de avental e de sotaina, tenham a decência mínima de não vir pedir a um país exangue e a um Estado forrado de dívidas que pague a sua irresponsabilidade.
2 No dia 11 de Março passado, o ucraniano Ihor Homeniuk, de 40 anos de idade, casado e pai de uma rapariga de 14 anos e de um rapaz de 9, entrou em Portugal pelo Aeroporto da Portela, com um visto turístico. Quinze horas depois, morria numa sala do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do mesmo Aeroporto, após ter sido espancado até à morte e em termos de uma cobardia e selvajaria inomináveis, às mãos de três agentes do SEF e perante a cumplicidade e a passividade de mais nove outros elementos. O motivo: ser suspeito de um crime cometido por milhões de portugueses ao longo das últimas décadas, qual era o de querer emigrar para onde encontrasse melhores condições de vida. Desde então, a quadrilha de assassinos (surpreendentemente mantida apenas em prisão domiciliária, com a justificação da covid), remeteu-se a um pacto de silêncio e ao mesmo silêncio se remeteu a directora do SEF, Cristina Gatões.
Esta senhora directora do SEF, como é evidente, não tem a mais pequena condição de dignidade para se manter um dia que seja a mais no cargo que ocupa
Durante oito meses, a responsável máxima por um serviço que durante 15 horas se entreteve a matar à pancada um cidadão estrangeiro não achou necessário dar uma palavra ao país. Uma tentativa de explicação, um pedido de desculpas, uma nota de nojo e de estupefacção, uma garantia de que aquilo não era o habitual nos serviços que dirigia. Mais: nem sequer entrou em contacto com a família da vítima, nem, aparentemente, se incomodou a abrir uma investigação, de alto a baixo aos serviços do SEF no Aeroporto de Lisboa. Ou a instaurar um processo disciplinar e expulsar da função pública aqueles senhores. E agora, que finalmente quebrou o silêncio numa entrevista a Cândida Pinto, da RTP, revelou ainda que nunca falou com os implicados no crime pois que “primeiro quero que lhes sejam assegurados tudo o que são direitos enquanto arguidos”. Ou seja, está mais preocupada com os direitos dos criminosos do que com os da vítima, que já cá não está para os reivindicar, e vai esperar anos até ao trânsito em julgado da sentença judicial para tentar saber de viva voz junto deles como é que aquilo foi possível. Para perceber que cultura de bestialidade e de impunidade era essa que se vivia, ou viverá ainda, no aeroporto de Lisboa, que a sua directora desconhecia e que permitia a três polícias dispor a seu bel-prazer da vida de um ser humano e enxovalhar Portugal aos olhos do mundo. “Achei importante — diz ela agora — manter-me prudentemente em silêncio enquanto as investigações se faziam.” Achou importante? Importante para quê? Para nos deixar mais sossegados, para nos tirar da lista negra do Comité da Tortura da União Europeia? Para ensinar aos senhores do SEF que o nível de um Estado de Direito se começa a medir exactamente pela forma como um estrangeiro é recebido nas fronteiras de um país? Ou para que do seu uivante silêncio os restantes elementos do SEF concluíssem que, antes do mais, ela estava solidária com os direitos de defesa dos assassinos, assim evitando a contestação interna? Para quê e para quem era importante o seu prudente silêncio?
Esta senhora, como é evidente, não tem a mais pequena condição de dignidade para se manter um dia que seja a mais no cargo que ocupa. Quanto mais não seja, pela resposta que deu a essa mesma pergunta: “Nunca poderia demitir-me porque era uma responsabilidade à qual não poderia fugir. Abandonar não adiantaria nada.” Adiantaria, sim, minha senhora. Lisboa ficaria prudentemente mais limpa.
3 Ainda a tempo, porque, de facto, há coisas que não podem passar em vão. A propósito dos atentados de Nice, em que um muçulmano tunisino, recém-desembarcado na Europa via Lampedusa, matou, degolando, três mulheres que rezavam na catedral, twitou D. Manuel Linda, bispo do Porto (sim, os bispos também já pregam no Twitter): “O atentado não é a luta do Islão contra o Cristianismo, é o resultado dos preconceitos daqueles europeus que não só não fomentam o diálogo intercultural e inter-religioso como estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões.” Esta afirmação é infame, não há outra palavra para a definir. Não só o bispo não tem uma palavra de horror e de compaixão para com três fiéis que foram degoladas porque rezavam a Deus (tanto que, depois teve de acrescentar novo tweet a dizer que condenava os ataques), como inocentou o assassino que matou por ódio religioso e acusou da barbárie aqueles que, não tendo religião, jamais alguém poderá acusar de matar por tal motivo. E esquece ou ignora que em França existem mais de mil mesquitas ou madraças onde os muçulmanos ensinam e exercem livremente a sua fé, muitas vezes, porém, fazendo delas escolas de incitamento ao ódio e ao terrorismo. O mundo pode estar de pernas para o ar, mas ainda é suposto um bispo ter a cabeça na terra e a palavra no Evangelho. Eis um bom exemplo que ele dá do tal fanatismo religioso que quer que não se acuse.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Da campanha eleitoral, retive sobretudo a predominância de um tom cujo triunfo não é de agora, mas está cada vez mais exacerbado: o tom indignado dos partidos da oposição (evidentemente, o PS estava na condição confortável de não ter nenhum objecto de indignação). A indignação é um modo de expressão cujo conteúdo é essencialmente extra-linguístico (e, portanto, extra-político), uma vez que reside sobretudo na prosódia.
No seu máximo teor, a indignação resulta num grito, numa interjeição. Mas enquanto instrumento retórico e “estilo” discursivo consiste em envolver as palavras numa boa dose de afecção que, para produzir o efeito pretendido, deve parecer-se o mais possível com a manifestação espontânea de uma consciência ultrajada pelo escândalo. Assim, a contingência da gestão política tornou-se um percurso sinalizado por escândalos que são como estações ou apeadeiros em que uns descem e outro sobem. E assim vamos andando de escândalo em escândalo, alimentados pelo indignação, que não precisa de combustível porque se alimenta a si própria através de uma razão tautológica e até já criou uma classe de profissionais que se servem dela e, ao mesmo tempo, estão ao seu serviço.
Em 2010, um diplomata francês, então com 93 anos (morreu três anos depois), chamado Stéphane Hessel, publicou uma espécie de manifesto que incitava os jovens a sair da apatia, a agir impelidos pela indignação. Chamava-se Indignez-vous!, esse apelo de carácter político teve uma repercussão enorme, pelo menos enquanto produto editorial. Mas aí, embora sem grandes elaborações nem subtilezas, tratava-se de apelar a uma indignação afirmativa, activa, capaz de constituir uma arma de resistência. Diferente é a indignação negativa e reactiva que domina hoje o espaço público e lhe confere, em permanência, um insuportável volume de som estridente, para além de presidir ao domínio da cacofonia e da tagarelice.
Neste universo caricatural, em que a comunicação e o uso público da razão – esse ideal iluminista – se tornam impossíveis, há sempre escândalos a emergir para todos os gostos: políticos, económicos, religiosos e até estéticos. É um desfile de horrores, perante os quais se ergue a raiva virtuosa de boas almas escandalizadas que estão sempre no lugar certo – a indignação confere um sentimento de superioridade – e têm sempre razão. As televisões, os jornais e as redes sociais oferecem um palco onde se desenrolam as representações dos indignados em sessões contínuas. O triunfo da indignação é o triunfo de uma improdutividade fundamental.
Nem toda a gente se indigna com a mesma coisa, mas há sempre qualquer coisa a provocar uma indignação selectiva. A multidão propensa à indignação pode ser arrumada em grupos que vão emergindo alternadamente: agora são uns a indignar-se, amanhã serão outros, e assim sucessivamente. Quando a indignação atravessa vários territórios que são habitualmente estanques, assistimos então a uma “onda de indignação” para a qual acorrem de todos os lados os surfistas.
Como podemos explicar este reino da indignação? A primeira e principal explicação é muito simples: tudo isto nos dá muito prazer e é preciso ser muito puritano e resistente para não ceder ao prazer que ela nos dá. É um “gozo” para o qual só há um vocabulário disponível, de ordem sexual. Podemos achar que um indivíduo indignado comporta uma boa dose de mentira, mas essa mentira desencadeia os nossos reflexos mais primários, difíceis de interromper. No lado oposto da indignação está a ironia e a sátira. Devemos reparar que elas foram completamente banidas do discurso político. Não há hoje um político que se arrisque nos caminhos da ironia. Não apenas porque tem medo de ser mal compreendido (um perigo real, nas actuais circunstâncias comunicacionais), mas porque o efeito da ironia é a conquista de uma distância. Ora, toda a política actual é uma política dos afectos ou das afecções. Por isso, a indignação está ao seu serviço, enquanto que a ironia introduziria um factor que a levaria numa direcção diferente, incompatível com o tom – a entoação musical – da época em que vivemos.
Livro de recitações
“Euromilhões, a criar excêntricos de um dia para o outros” Spot publicitário da Santa Casa da Misericórdia
De uma casa santa e misericordiosa vêm há séculos benfeitorias sociais e caridosas de grande envergadura. Parte dos rendimentos vem do jogo autorizado, legal e legítimo, muito embora as lojas onde se vendem raspadinhas, lotaria, apostas desportivas e tutti quanti se tenham tornado semelhantes a salas de chuto autorizadas. A elas acorre uma multidão de gente addicted. É um segredo bem guardado: a par da sua obra misericordiosa, a Santa Casa também exerce uma acção nefasta. O melhor é ignorá-la, mas perante este spot publicitário que nos enche os ouvidos todas as semanas não podemos deixar de pensar num outra verdade que é também um segredo bem guardado: uma enormíssima percentagem dos “excêntricos” da lotaria e do euromilhões acabam por viver uma tragédia. São inumeráveis os casos em que a riqueza súbita vai depois produzir a miséria. Por isso é que este anúncio parece um gozo perverso da situação, pouco compatível com a obra misericordiosa da casa.