A Grande Ilusão 2.0

(Por Raphaël Rossello, in Marianne.net, 28/12/2022, trad. Estátua de Sal)

Como banqueiro de investimentos, contribuí e fui um espectador da construção de uma quimera“. Se é um banqueiro que o diz, deve ser mesmo verdade. Afinal, os banqueiros também têm lugar na Estátua de Sal…


Desde 1987, as economias ocidentais têm andado a enganar-se a si próprias. Quanto à sua capacidade de criar riqueza, quanto ao valor dos seus bens e sobretudo quanto ao montante da sua dívida. Os enormes passivos, formados para sanar múltiplas crises como a da Internet ou a das hipotecas subprime, serão lembrados por consumidores e governos. E os efeitos serão devastadores. Este diagnóstico não é feito por um alter-capitalista, mas por um banqueiro de investimentos que participou na montagem dessa grande armadilha.

Minha posição como banqueiro de investimentos na economia real fez de mim um contribuinte e um espectador da construção de uma quimera. Depois de ter sido fonte de satisfação para um quarto da população ocidental, a iminência da sua revelação mostrará a sua toxicidade, em conformidade com a imagem mitológica de um animal mau.

A descoberta, pela maioria, dessa ilusão que se tornou o único suporte do Ocidente vai minar a democracia, a economia de mercado, o progresso social, o Estado de direito, a fraternidade e a solidariedade humana, de que nos orgulhamos. Os seres humanos e seus governantes sempre esconderam as realidades desagradáveis atrás de um pano de fundo mais lisonjeiro. Logo, não é esse estratagema que me surpreendeu, é a sua magnitude. Essa magnitude é a razão do meu espanto que não posso silenciar.

O “demasiado grande para falir” das horas que antecederam a falência do Lehman Brothers expressa a confiança, para não dizer a certeza, de que o paradigma não pode ruir porque as consequências seriam muito graves. Os políticos, apoiados pelos maiores fazedores de opinião, recusam-se, por cobardia, sequer a considerar que o modelo neoliberal-progressista das últimas três décadas se encontra numa fase irreversível de desintegração. O paradigma desaparecerá pelos mesmos motivos que o tornaram famoso porque o próximo “cisne negro” promete ser mais violento que a falência do Lehman.

De noite e em silêncio, o capitalismo, do qual continuo a ser um fervoroso defensor por todos os seus méritos, metamorfoseou-se no neoliberalismo, cuja nocividade denuncio.

Por razões ainda enigmáticas para a ciência económica e para os apóstolos do neoliberalismo, o crescimento dos ganhos de produtividade, motor do crescimento económico e dos lucros do século XIX e início do século XX, começou a declinar globalmente desde a década de 1970. Embora esse processo esteja mais que comprovado e documentado, ele é tão imediatamente contraintuitivo que é inaceitável. Com efeito, como explicar que a produtividade, fruto da associação entre a tecnologia e o Homem, esteja em regressão justamente no momento em que é mais amplamente difundida e disseminada, e mais facilmente acessível? A complexidade muito particular desse fenômeno obscureceu a sua visibilidade e impediu-me, durante vinte anos, de entender a sua origem e o seu mecanismo, antes de anunciar a ocorrência do seu colapso.

Condorcet e Victor Hugo podiam maravilhar-se com o Progresso que testemunhavam porque se baseava numa abundância crescente e numa prosperidade tangível que podia ser partilhada. Embora os séculos XIX e XX tenham sido marcados por greves, revoltas e revoluções sangrentas, estas foram seguidas de efeitos positivos, uma vez que o tamanho do bolo a partilhar continuou a crescer. Há sessenta anos, este progresso material e social foi rebatizado como crescimento. A história dos factos e o pensamento económico apontam ambos no mesmo sentido: a fase final do crescimento que apoia a democracia, o Estado de direito e a justiça social requer um estado de abundância correspondente à chamada fase do consumo de massas. Esta fase foi, de facto, atingida no final dos trinta anos gloriosos, após a Segunda Guerra Mundial.

Sendo o consumo e os ganhos de produtividade as duas chaves-mestras do crescimento, e este o motor da prosperidade moderna, é essencial apoiar a primeira quando se é impotente para ressuscitar a segunda. Tornou-se então claro que, quanto maior a riqueza das famílias, maior a sua propensão para o consumo. Foi tudo o que foi necessário para serem implementadas políticas que procuravam deliberadamente um aumento artificial da riqueza, indevidamente designado por “efeito riqueza”.

A Grande Ilusão 2.0 é o resultado deste efeito, abertamente assumido pelos homens do dinheiro, os banqueiros centrais como Greenspan, Draghi ou Lagarde, com a bênção dos neo-liberais-progressivos no poder. Além disso, o efeito riqueza é mais eficaz em países onde os ativos das famílias são altamente financeirizados. É o caso dos países anglo-saxónicos onde os sistemas de pensões se fundamentam no princípio da capitalização, sendo geridos por fundos de pensões.

Situo, deliberadamente, o nascimento da Grande Ilusão 2.0 imediatamente após a crise bolsista de Outubro de 1987. Quando, a 19 de Outubro desse ano, as bolsas mundiais perderam quase um quarto da sua capitalização num só dia, pudemos compreender o pânico do mundo financeiro, que está intimamente ligado ao mundo político. Juntos, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para evitar que tais catástrofes se repetissem, pois eram tão prejudiciais aos seus próprios interesses egoístas como ao equilíbrio económico e político global do Ocidente.

Os Estados Unidos da América continuam a ser o motor da economia global graças ao facto prodigioso de metade da população americana responder por quase um quarto do consumo global! Juntamente com os bens imobiliários, as ações e obrigações representam a maior parte da riqueza das famílias americanas. Como resultado, as tendências do mercado bolsista condicionam o sentido desejado de riqueza. A expansão excecional e onírica dos mercados financeiros, desde 1988, explica a persistência dos níveis do consumo americano.

Mas este efeito, dito de riqueza, é o produto de uma gestão anormal da poupança. A anomalia resulta de uma prática que começou nos anos 90 e que continuou a intensificar-se. É a descida voluntária das taxas de juro diretoras pelos grandes bancos centrais, apoiados pelos políticos, para reduzir os custos da dívida, tornando-a quase gratuita. Foi o que aconteceu e estávamos enganados. Pensávamos estar a impulsionar a atividade económica, mas só alimentávamos bolhas sucessivas: a Internet em 2000, subprimes imobiliários em 2007, tecnologia em 2020. Alguns autores, a maioria germânicos, chamaram a esta prática “poupança negativa” ou “tributação da poupança”. Perante a insuficiência de tal medida para sustentar a economia de forma durável, os mesmos propagandistas da taxa de juro zero defenderam deliberadamente a criação monetária. As políticas monetárias acomodatícias floresceram em todo o mundo, desde o Japão até aos EUA, China e Europa. O único efeito destas medidas foi encorajar o recurso ao endividamento sistemático e massivo. Para que as famílias recorram a todas as formas de crédito para liquidar outros créditos e a outras formas de crédito ao consumo. Para que as empresas, regiões e municípios assumam dívidas para apoiar as suas atividades e o valor dos seus ativos.

Essas técnicas, que parecem sofisticadas – e são altamente matemáticas -, mas, na verdade, sempre se baseiam em dívida. Agentes económicos, políticos e sociais de todos os níveis, sejam americanos, chineses, franceses ou ingleses, estão todos no mesmo barco.

Olhando para as sociedades modernas, o mundo da poupança e do investimento procura taxas de rentabilidade cada vez mais altas, enquanto a atividade real é incapaz de as gerar. Para as alcançar, custe o que custar, os profissionais do investimento têm recorrido, desde 1988, ao endividamento crescente de forma irreversível.

Os Estados, preocupados em não revelar aos seus eleitores o estado de regressão económica subjacente, recorrem ao défice de forma deliberada e sistemática. Deficit que é só dívida. Ainda acreditamos que a França é o pior aluno, tendo um deficit permanente há 40 anos. É verdade, mas é, em proporção, menos de metade do crescimento americano que foi fruto exclusivamente de um deficit crónico, quase o dobro do da França, no mesmo período. É, pois, legítimo concluir que o crescimento económico de nações como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França foi a crédito. Mas omite-se dizer, por norma, que sem o recurso a este crédito, estes países estariam em recessão há décadas. Conclusão insana e absurda que muitos considerariam ironia. Mas é a conclusão para a qual a realidade aponta.

Essa observação perturbadora mergulha as nossas certezas num abismo de perplexidade. Tem-se ocultado que, ao contrário das aparências, o tamanho do bolo de riqueza que os cidadãos realmente precisam não aumentou desde 1988 na mesma proporção dos séculos anteriores. Ao contrário da riqueza, criada artificialmente, que não parou de crescer.

Tendo eu participado pessoalmente nessa criação artificial de riqueza, continuo perplexo, estupefato, maravilhado não com o fenômeno, mas com sua magnitude. É concebível que as últimas três bolhas nas ações da Internet, subprime e tecnologia tenham empurrado os preços das ações para 30, 40 ou 50% acima do que chamamos o valor intrínseco. Mas estamos perante uma criação de riqueza, impulsionando valorizações de 300, 400, 500% além de uma lei normal. E pela primeira vez na história.

Quando o cineasta Jean Renoir apresentou sua obra-prima “A Grande Ilusão” observou que a Grande Guerra marcou o fim de um mundo de elegância e refinamento de certas classes sociais incapazes de escapar do seu destino e de se guerrearem. Em comparação com o seu cenário, a versão 2.0 da Grande Ilusão terá uma dimensão trágica para a maioria das pessoas porque esta ilusão é excessiva, extravagante. No espaço de uma geração, o Ocidente perdeu o que o tornou superior: o discernimento.

Como tudo na terra está sujeito à força da gravidade, as pessoas estupefatas testemunharão a verdade escondida por trás do cenário.

A ilusão nasceu da dívida gratuita. A desilusão também surgirá da dívida, mas da onerosa. Quando a taxa de juro aumenta, as famílias reduzem o seu consumo. Mas o mais grave é a desvalorização do património (ou riqueza) formado por ativos financeiros, que seguirão a mesma trajetória.

As tragédias do Ocidente, nos últimos séculos, foram engrenagens mortais, muitas vezes nascidas de mal-entendidos. A tragédia de hoje é ter dado às nações a sensação artificial de beneficiarem, repetidas vezes, da crescente maré do Progresso. Mas nós vamos ser, apesar de todos os esforços e artifícios para a impedir e a ocultar, os espectadores da vazante que mostra a regressão da riqueza útil e necessária à paz social. O inchaço historicamente descomunal e anormal de ativos não conseguiu mudar o curso da história. A vazante das marés do equinócio exporá as carcaças enferrujadas, testemunhas de conquistas passadas.

O efeito dominó vai manifestar-se na queda violenta do consumo americano após a queda no valor dos ativos. É a China, dependente do consumidor americano, que sofrerá mais efeitos e, consequentemente, tal enfraquecerá a economia alemã, que é um dos seus principais fornecedores. No entanto, é a saúde financeira da Alemanha que permite que países europeus como a França assumam novas dívidas a taxas razoáveis ​​para pagar as suas dívidas antigas de taxas baixas.

A paz social no Ocidente foi comprada na Europa por meio de benefícios sociais financiados por dívida. A paz social nos países anglo-saxões foi alimentada pela esperança de todos poderem participar na fortuna tecnológica que, na verdade, era apenas o produto de um enorme endividamento.

O pior não é que os ocidentais sejam forçados nos próximos dois anos a voltar ao caminho de uma economia “centrada no ser humano”. Incapazes de vencer no campo de batalha, devemos temer que os Putins possam vencer no campo das ideias, apontando o dedo para o caos do Ocidente que está por vir. Os nossos governos, prisioneiros da sua certeza de estarem no lado do bem, na verdadeira e na única solução, recusam-se a cogitar uma mudança de 180° nas suas políticas. Não dão os passos para apoiar uma atividade socialmente útil, reconhecidamente incompatível com a criação de unicórnios.

Os poucos remédios possíveis dependem acima de tudo do diagnóstico e da sua rapidez. Nenhum médico pode curar um paciente que se recusa a admitir o estado da sua doença. Os youtubers admitem prontamente o meu diagnóstico. As pessoas da corrente dominante e da ortodoxia recusam-se mesmo a ouvi-la. Mas pode já ser demasiado tarde quando concordarem em fazê-lo, porque o tempo está a esgotar-se.

Fonte aqui


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Retalhos da vida de um grande devedor

(Mariana Mortágua, in Público, 16/05/2021)

Mariana Mortágua

Por mais endividado que viva, Luís Filipe Vieira escapou sempre, entre reestruturações e favores, à convocação de um património que, sendo seu, no fundo, nunca lhe pertenceu. Vieira não é único, mas é um retrato acabado de uma economia ao serviço dos bancos e seus satélites.


Neste artigo, revisitam-se quatro episódios da história da dívida de Luís Filipe Vieira (LFV) e da sua íntima relação com o BES. Nesta história, os contribuintes são o protagonista final.

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A dívida que deixou de o ser (I)

No início do milénio, LFV já detinha vastos terrenos na zona oriental de Lisboa, mas também uma substancial dívida ao BES. Em 2004, os interesses de ambos convergiram na criação do fundo imobiliário FIMES Oriente. Entre 2004 e 2007, o FIMES comprou a LFV os seus terrenos, num total de 144 milhões. Para financiar a compra, o FIMES emitiu unidades de participação. Metade do fundo era do BES, a outra metade de LFV, que para a adquirir recebeu do BES um novo empréstimo, de €87M. Com a operação, Vieira pagou dívidas antigas, contraiu novas, guardou mais-valias e passou de devedor a sócio do GES. 

Os terrenos da Matinha, do FIMES, foram notícia quando o projeto de urbanização elaborado pelo atelier de Manuel Salgado foi aprovado, em 2011, com os votos do PS na Assembleia Municipal. O arquitecto era também vereador socialista e o processo está hoje sob investigação do Ministério Público

Em 2012, endividado em €283M, LFV vendeu a sua participação no FIMES, pela qual recebeu agora €126M, além de outros ativos, num encaixe total de €151M, livrando-se ainda da dívida associada àquelas empresas, no valor de €107M. A compradora foi… a seguradora BESVida, que fez desaparecer esta exposição do balanço do BES em produtos financeiros que emitiu. Esta foi mais uma das muitas reestruturações de uma dívida insustentável, embora Vieira afirme que foi um favor a Salgado. No fim, vai dar ao mesmo, já que o Dono Disto Tudo era o padrinho do império imobiliário de LFV. 

Um devedor Ponzi

O negócio do FIMES não resolveu a insustentável situação financeira de LFV. Restava a solução de sempre: reestruturar. O empresário encaixava na designação de devedor Ponzi, proposta por Hyman Minsky, um devedor que depende de novos empréstimos para liquidar o serviço da dívida anterior. Foi assim que o BES permitiu que LFV evitasse incumprimentos e penhoras sobre o seu património. 

Em 2009, o grupo de Vieira, a Promovalor, recebeu crédito para substituir dívidas antigas do grupo, para além de um financiamento adicional de €100M. Em 2011, já exposto em €388M, o BES adquire ainda €160M em obrigações, convertíveis em capital. Com parte da receita, LFV pagou dívidas antigas e, com a outra parte, alimentou os seus negócios, facilitados pela redução de todos os spreads para 3,5%. 

A crise não impediu o BES de financiar ainda as aventuras da Promovalor em Moçambique e no Brasil, na companhia da Odebrecht. Rui Pinto afirma que o consórcio integrava também a Doyen, investigada por branqueamento de capitais. LFV nega a relação, mas documentos do BES indicam que a parceria foi, pelo menos, ponderada. 

Apesar das sucessivas bóias lançadas pelo BES, muitas das empresas da Promovalor chegam a 2015 em falência técnica. É aí que o presidente do Novo Banco, Stock da Cunha, renova as dívidas e reduz os spreads para 0,5%. Mas nada dura para sempre com um devedor Ponzi. 

A dívida que deixou de o ser (II)

Em 2016, a braços com as dívidas do grupo Promovalor, o Novo Banco aceita converter €140M dessa dívida numa participação num fundo. Mas há um aspeto inédito nessa decisão: a gestão do fundo é entregue ao autor da proposta, a empresa Capital Criativo. Por que haveria o Novo Banco de suspeitar da ideia? Afinal a Capital Criativo é nada menos que uma antiga participada pela Promovalor, de que o filho de LFV continua sócio e que é gerida pelo antigo vice-presidente do Benfica. Depois da constituição do fundo, a Promovalor ainda mantém €84M de dívida não convertida em participações. A lógica é que o dinheiro gerado pelos ativos sirva em primeiro lugar o pagamento da dívida, sendo depois distribuído pelos participantes do capital do fundo, a começar pelo Novo Banco, que se torna assim, mais uma vez, sócio de LFV. 

A dívida que deixou de o ser (III)

Em 2021, o Novo Banco e LFV serão mais sócios do que nunca. Ainda se lembra dos €160M de obrigações adquiridas pelo BES em 2011? Pois elas vencem este ano, e como LFV não as pagou elas serão convertidas em capital. Em vez de dono de uma dívida, o Novo Banco tornar-se-á este ano, espante-se, acionista da Promovalor. Claro que haveria a hipótese de o fundo gerido pela Capital Criativo conseguir em alguns anos o que LFV não fez em décadas: pagar as dívidas acumuladas. Mas essa hipótese é remota, tanto mais que a Capital Criativo já pediu ao Novo Banco a revisão dos prazos de pagamento da dívida do fundo. 

Friends will be friends

Em 2013, disputava-se a final da Champions no mítico estádio de Wembley, em Londres. Para o evento, Almerindo Duarte e o seu sócio, LFV, convidaram administradores do BES e representantes do governo do Rio de Janeiro. O programa era irrecusável, com voo privado, estadia no Hilton e box no estádio. No ano anterior, a Imosteps, de Vieira, tinha comprado a participação que o GES (através da Opway) tinha na OATA, tendo para isso beneficiado de um empréstimo do BES de €54M. A OATA detinha, através de uma estranha estrutura de offshores, dois terrenos para cemitério e um outro em plena reserva ambiental, no Rio de Janeiro. Vieira descreve a operação como um novo favor a Salgado e gaba-se de, junto das autoridades do Rio, ter conseguido trocar o terreno interdito por direitos de construção na Barra da Tijuca. Ora, de acordo com uma nota do Banco de Portugal, parte do empréstimo de €54M nunca chegou à OATA, sendo “alocado à transferência de determinados montantes para contas pessoais dos acionistas (… uma transferência de 8 milhões para LFV)”.

No Parlamento, Vieira foi incapaz de explicar o destino do dinheiro em falta. Certo é que, apesar de todo o investimento, os negócios não avançaram e a Imosteps não pagou a sua dívida ao BES, que transitou para o Novo Banco. 

Em 2019, apareceram três compradores para este crédito, com preços entre os €4M oferecidos no âmbito da carteira NATAII e uns surpreendentes €10M oferecidos pela Iberis Samper. Por trás desta oferta estava José António dos Santos, sócio de LFV e acionista do Benfica. Por impressionante coincidência, na mesma altura, a Benfica SGPS lança uma generosa oferta de compra das ações da SAD do Benfica, que garantiria ao acionista da SAD José António dos Santos um lucro de mais de €9M. Nem a CMVM autorizou a OPA, nem o Fundo de Resolução permitiu a venda da dívida da Imosteps à Iberis. Foi o fundo Davidson Kampner que ficou com os €54M de dívidas por €4M, vendendo-o em seguida, com lucro, a… José António dos Santos. O acionista da SAD logo cancelou o aval pessoal de Vieira sobre aquela dívida. Assim se fazia e faz na economia de favores e socorros mútuos.

Muito mais que um palheiro

Por mais endividado que viva, LFV escapou sempre, entre reestruturações e favores, à convocação de um património que, sendo seu, no fundo, nunca lhe pertenceu. O próprio garante que o banco nunca quis avaliá-lo, mas que detém muito mais do que a “casa para palheiro” que lhe é atribuída como única propriedade nos documentos da Comissão de Acompanhamento do Novo Banco. Vieira não é único, mas é um retrato acabado de uma economia ao serviço dos bancos e seus satélites. 

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico


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A lição de Berardo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 18/05/2019)

Miguel Sousa Tavares

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Joe Berardo não é um chico-esperto em terra de saloios, ao contrário daquilo que ostensivamente julga. Mas também não é a ovelha negra num rebanho de gente séria. Berardo é o saloio num palco de saloios, onde aventureiros morais como ele são tratados como empresários, venerados como mecenas das artes e distinguidos como comendadores da nação. O seu feito, ao ter conseguido tudo isso e ainda devolver os mimos com que foi tratado com aquele riso alarve de quem acredita que nos comeu a todos por parvos, não é de grande monta. Foi só uma questão de estar no lugar certo no momento certo e no meio da gente certa. Hoje, quando ele (e seguramente orgulhoso) foi erigido ao estatuto de bandido-modelo da nação, o que importa questionar é o tipo de clube-nação que o permitiu.

O comendador, condecorado por dois Presidentes da República pelo seu mérito empresarial ou pelo contributo para a riqueza do país, jamais foi empresário de coisa alguma e jamais acrescentou um euro à riqueza colectiva. Foi sempre e apenas um especulador financeiro em benefício próprio exclusivo, que nunca criou uma empresa, uma chafarica, um posto de trabalho. Tudo isso era sabido desde sempre e foi, sabendo-o, que Eanes e Sampaio lhe puseram ao peito dois símbolos do reconhecimento pátrio — em nosso nome. Mas hoje, erigido em símbolo das malfeitorias e padroeiro dos caloteiros, e à beira de perder o seu tão estimado título de comendador, Berardo pode dizer que nem ele está só nem Eanes e Sampaio estão sós.

Metade, seguramente, da lista destes supostos heróis da pátria, feitos comendadores por todos os Presidentes sem excepção, são gente que de modo algum se recomenda. Metade deles foi distinguida pelos mais inconfessáveis motivos: compadrio pessoal, compadrio político, compadrio financeiro, compadrio maçónico, cunhas e pagamento de dívidas.

Os membros do “Clube da República”, como um dia aqui lhe chamei, dedicaram-se ao longo de décadas a nomearem-se uns aos outros para os lugares mais apetecíveis do Estado, a financiarem-se uns aos outros, a cobrirem-se uns aos outros, a negociarem uns com os outros, a criarem um sistema cruzado de impunidades e irresponsabilidades e, para finalmente enganarem os tolos, a elogiarem-se e distinguirem-se uns aos outros. No final do processo, os Presidentes da República, levados ao engano ou incapazes de resistir às pressões dos amigos do “Clube da República”, enfiaram-lhes no peito uma certidão de cidadãos exemplares, funcionando como uma espécie de indulgência plenária para eventuais malfeitorias, passadas ou futuras.

No caso de Berardo, o cúmulo do ambiente de saloiice geral que sempre o rodeou e cortejou foi a história da Colecção Berardo. A dita Colecção (e isto é, obviamente, apenas a minha opinião) não tem qualquer valor representativo da arte moderna. Precisamente porque ele não é um coleccionador, mas sim um empilhador de arte, o seu acervo não reflecte qualquer critério de gosto, de conhecimento ou mesmo de paixão pela arte. Mas o homem soube rodear-se de quem, devidamente contratado para tal, tratou de criar uma aura de excelência em volta da colecção que, por simples temor intelectual, ninguém se atreveu a pôr em causa. E foi assim que ele conseguiu a proeza de resolver o seu problema particular de onde guardar aquilo, à custa de todos nós. Num contrato negociado directamente entre o assessor cultural do primeiro-ministro de então, José Sócrates, e o conselheiro de arte e avençado de Berardo — (que, por incrível coincidência, eram uma e a mesma pessoa) — o “mecenas” da arte moderna portuguesa sacou nada menos do que de toda a área de exposição do CCB para guardar e expor a sua colecção sem quaisquer custos. E ainda lhe fez chamar Museu/Colecção Berardo, com entradas gratuitas, de modo a poder dizer que era o mais visitado museu português. E de novo todos se calaram, no terror de atrair sobre si a ira e o desprezo dos ditadorezinhos da nossa “crítica de arte”. Todos, incluindo o director do CCB, talvez também aliviado por não ter de se preocupar mais com a ocupação daquele espaço. E foi assim que o CCB — o mais caro equipamento cultural que alguma vez pagámos — nunca mais viu uma exposição, hipotecado que está há dez anos a servir de arrecadação e promoção pessoal do comendador. E por ali têm desfilado todos os notáveis da pátria, em ocasiões festivas de homenagem ao “mecenas”.

Nunca gostei de bater em quem está em baixo, mas há aqui razões para uma excepção: primeiro, porque muito disto já o tinha escrito quando ele estava em cima e, depois, porque Berardo não está em baixo: está em cima de uma dívida de 1000 milhões, que, deliberadamente e de má-fé, tornou incobrável, pavoneando-se ainda orgulhoso da sua espertice. Claro que tudo isto seria diferente se o homem tivesse o mínimo de vergonha e decoro. Se, para ele, ser apontado na rua como o rei dos caloteiros lhe causasse algum incómodo. Mas esta é a mesma pessoa que há anos enfrenta os condóminos do seu prédio e as sentenças dos tribunais, recusando-se a derrubar uma casa-de-banho clandestina que ergueu no topo do prédio, com vista de rio, invocando, sem pudor, o princípio constitucional de que “todos têm direito a uma habitação condigna”. Habitação de que, aliás, garante ser apenas arrendatário, pois que nada tem de seu, nem sequer um euro de dívidas ou até a mítica Quinta da Bacalhoa, construída pelo filho de Afonso de Albuquerque e que o Estado Português deixou ir à praça sem comprar, para acabar nas mãos deste benemérito, que logo a fez rodear de muros e cercas, como se fosse seu dono — o que, como garante, também não é. Mas Berardo é o que é e que todo o país teve ocasião de ficar a conhecer agora mais intimamente. Não se lhe pode exigir mais do que aquilo para que nasceu e de que não se envergonha, antes pelo contrário.

Os responsáveis maiores, os que não têm perdão, são os que o financiaram para assaltar o BCP, sobretudo os que o fizeram com o dinheiro dos contribuintes. Os que lhe deram o CCB como arrecadação privada. Os que o cortejaram, privilegiaram, promoveram e distinguiram. E os que o ajudaram, num longo, sinuoso e degradante processo de calotice transformado em forma de vida.

E é o espírito do tempo de um país onde somos muito rápidos a fuzilar os poderosos e ricos que caem em desgraça, mas jamais questionamos a origem do seu dinheiro e do seu poder enquanto eles estão na mó de cima. Um país onde paga mais imposto quem vive exclusivamente do seu trabalho do que quem vive da especulação.

Onde tantas empresas, tantos negócios e tantas fortunas não existiriam sem o favor do Estado, o dinheiro do Estado, as dívidas ao Estado. Um país onde quem esconde milhões lá fora para fugir ao fisco recebe, em o vento estando de feição, um atestado de cidadão cumpridor se trouxer o dinheiro de volta, pagando apenas 7,5% de IRS. O tal país do “Clube da República” onde se perdeu, simplesmente, o conceito de honra e a noção de vergonha. O país reflectido naquela inesquecível gargalhada com que ele nos contempla: “Ah, ah, ah!”. O país dos Berardos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia