Não perecendo da doença, iremos morrer da cura?

(Joaquim Vassalo Abreu, 15/04/2020)

Eu adivinho que a reflexão que faço me trará críticas infindas e, sei lá até, impropérios sem nome mas, por dever de consciência e sabendo estar a expôr algo de politicamente incorrecto, e para muitos blasfemo, mesmo assim não deixarei de o fazer.

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E não deixo de o fazer pois vou percebendo existir nesta crise, que a grande maioria de políticos e comentadores, de todos os quadrantes credos e estratos sociais, afirmam nunca vista, algo de tão paradoxal que ferindo a minha capacidade de entendimento me obriga a questionar da sua proporcionalidade.

Em 13 de Março p.p., perante a declaração de Pandemia por parte da OMS, num texto que escrevi titulado de “RELATIVIZAR É PRECISO” , eu já demonstrava algum cuidado de análise e relevava o facto de este vírus, ao contrário de muitos outros seus antecedentes, apresentar uma característica algo inovadora: o de ser de algum modo “democrático”. De atingir todos de igual modo, sejam ricos ou sejam pobres, conhecidos ou desconhecidos, importantes ou ignotos. Dizia eu a 13 de Março p.p.

E também escrevia:

Por isso se vê tanto afã de todos os governantes e poderosos do mundo de tão assustados que também estão, pois não podem comprar o seu não contágio”. E também:

Mas, por outro lado, é também preciso relativizar pois o seu efeito devastador não é maior do que o para todos já normal surto de gripe em alturas críticas do ano. Este ano ainda não sei mas lembro-me que em anos anteriores esses surtos de gripe sazonais foram responsáveis por mais de mil mortes por ano, de pessoas de maior risco naturalmente, e as urgências e os hospitais entraram em ruptura.

Mas é essencialmente necessário relativizar e aproveitar para relembrar que morrem de fome mais de 25 mil crianças por dia no mundo e nunca se vislumbrou qualquer medida ou sentimento de culpa por parte desses mesmos governantes e poderosos.

“ O que se devia agora que estão tão preocupados e assustados, tanto como todos os outros era, à boleia desta pandemia, exigir-se mudanças de políticas a nível global que reparem essa autêntica calamidade que é a fome.” Dizia eu…

E, acrescento, como em relação aos Refugiados, nunca vislumbrei, para além de qualquer sentimento de culpa, qual específico apoio, seja financeiro seja humanitário. Era (e é) um problema de outrém…É e será perante qualquer catrástrofe, a menos que directamente nos atinja, problema de outros…

Mas quem? Os que morrem de fome, da malária, de desnutrição e de total abandono em África, no Médio Oriente pejado de guerras que nunca compraram, das populações indefesas da Síria, do Iraque, do Yemen, do Afeganistão, do Líbano, da Faixa de Gaza…os que de modo ignoto e sem menção nos noticiários e jornais perecem todos os dias?

Até que parece ser proibido, porque demasiado violento(?) , ver imagens de crianças em Campos de Refugiados de fronteiras Europeias descalças pisando neve… As suas mortes nunca serão notícia e nunca para qualquer estatística contarão. São os “Ningunos”, como profetizou Eduardo Galeano.

Passado um mês, reflectindo profundamente, olhando para os anos recentes, para a última década, para as Pandemias entretanto surgidas e rapidamente debeladas ( Gripe das Aves, Gripe Suína etc..) e para o ressurgimento/ estabilização das economias dos países do sul e para onde as crises económicas foram mais cirúrgicamente enderessadas, causa-me uma intrigante estranheza a desproporção entre a sua realidade e as suas consequências económicas.

E a primeira pergunta que me surge, sabendo estatisticamente que a larguíssima percentagem dos óbitos supostamente provocados por este novo Corona Vírus é em idades superiores aos 80 anos, é: tendo-nos hoje sido transmitido que neste período de cerca de mês e meio foram contabilizadas 599 mortes por ele provocadas, quantas pessoas pereceram em Portugal neste mesmo período na sua totalidade?

É que seria da maior importância termos um número comparativo para aferirmos, ou não, da sua relatividade! Quantas pereceram por outros motivos já que do COVID 19 sabemos. E em mesmo tempo no ano anterior?

O que eu estou questionando é a “relatividade” e a “proporcionalidade”! O que eu estou questionando é o facto de, mais uma vez relativizando e não mais que isso, passado o primeiro impacto, aferido o comportamento global da nossa população, da sua consciência e dos inerentes perigos de postura daqui para a frente e ainda mais num período de debelação, virmos a sofrer mais pela cura do que pela doença.

Perante os números que são avançados a nível global de quebra da riqueza produzida (PIB) num só mês e meio e, pior ainda, do tempo que será preciso para retomar uma normal estabilidade nas relações a todos os níveis entre os Países, eu pergunto-me:

Mas, presumindo a crise estabilizada, é claro, estando os instrumentos de estabilização financeira promovidos e prontos a serem utilizados, para quê afectar-se o futuro de gerações e de um modo quiçá “normal” conduzir o País e as suas gentes a uma pobreza da qual não se saberá o fim, adiando o reatamento da Economia? E depois:

Para mim existe algo que não faz nem tem sentido. Estes programas em catadupa de apoios, de linhas de crédito, de programas financeiros, do BCE, do BEI, FEE, do sei lá que mais, um maior que o outro, um em paralelo e outro na perpendicular, um para isto outro para aquilo, mas que vão todos, se forem, desaguar à Banca, onde só numa ínfima parte serão disponibilizados não lhes parece um paradoxo? Vêm de onde? De que cofres sairão todos esses “triliões”, a serem efectivamente reais?

Isto não lhes parece, como a mim, uma coisa programada?

Será que o “cerco” às economias e às soberanias dos Países mais débeis, à boleia do Vírus, não tem nome? Tem e chamam-se Fundos, soberanos e não só, donos da maior parte das empresas no mundo, donos das Bolsas, sempre sedentos de “sangue” e poder e têm nomes: BLACKROCK, o rei dos reis, (só o nome já assusta), PIMCO, VANGUARD, BRIDGEWATER etc e demais Fundos Soberanos dos quais o mais forte é o Fundo Norueguês do Petróleo, administrado pelo Norges Bank, mesmo sendo tido como o mais transparente de todos.

A eles pertence 75% do PIB Mundial!

Para eles uma crise é sempre bem vinda! Dos escombros retiram mais riqueza… E à custa de quem? Dos de sempre e retirando sempre e sempre o pão à pobreza…

PS– Nunca mais me esqueço. Trabalhava eu em Paredes de Coura na década de 80 num Banco e tínhamos um cliente emigrante e empresário no Brasil e que todos os anos nos vinha visitar e um dia eu perguntei-lhe: Sr. Cerqueira, como consegue gerir os seus negócios com uma inflação daquelas (chegou a mil por cento ao mês ou dia, já nem sei, quando houve a conversão do Cruzeiro para Real, penso)? Ele respondeu-me: Sr. Vassalo, para mim quanto mais bagunça melhor!


“Não há dinheiro para isto, mas há dinheiro para os bancos”

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 28/12/2019)

Pedro Santos Guerreiro

O “isto” é tudo e mais alguma coisa — a frase diz-se por tudo e por nada e é fácil qualificá-la como populista. Pois é. Mas ela é também outra coisa: é verdadeira.

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Os apoios do Estado à banca são sempre excecionais. São todos os anos excecionais. São há 12 anos excecionais. Mas o que é “excecional” há 12 anos já é regra. O próprio Orçamento do Estado apresenta estas transferências como sendo one-off, que é como quem diz, “uma vez sem exemplo”, mas é eufemismo para a opinião pública e jargão para a Comissão Europeia. Mais sincero seria apresentar a coisa como dotações para o Ministério da Banca ou, vá lá, como transferências para o Instituto de Socorro a Náufragos Financeiros. Doze anos depois do primeiro colapso, o do BPN, as transferências continua­rão em 2020, com €600 milhões para o Novo Banco — e veremos se não será mais.

É uma grandeza sem grandiosidade: num Estado submerso em créditos, será usado mais dinheiro no Novo Banco do que na redução da dívida pública. Ou do que no Ministério da Cultura. Ah, e, €5000 milhões depois, a conta desse caso original chamado BPN ainda não está sequer fechada. Quem nos dera que o problema fosse mesmo de “estabilidade emocional” dos banqueiros: alegremente pagaríamos avenças mensais a todas as suas mulheres e maridos se nos poupassem o gasto multimilionário.

Cinco mil milhões para o BPN. €6,3 mil milhões para a Caixa. €4,3 mil milhões para o Novo Banco. €3,4 mil milhões para o Banif. Foram estes os compromissos assumidos pelo Estado numa dúzia de anos, a que se somam outras injeções que foram devolvidas (€3000 milhões para o BCP e €1,5 mil milhões para o BPI) ou que ainda podem sê-lo (€450 milhões no BPP). O total de compromissos aproxima-se, pois, dos €24 mil milhões, dos quais 80% desapareceram como água pela areia seca. Da Caixa ainda haverá dividendos, mas a conta perdulária devia ser escrita numa lápide, sob uma estátua no centro das cidades, para que não seja esquecida: “Aqui jazem 20 mil milhões de euros”; por cima, a estátua do perdedor desconhecido, o contri­buinte anónimo e os lesados em produtos financeiros com risco oculto que lhes devoraram as poupanças.

Quando Costa e Marcelo chegaram aos seus palácios oficiais, em 2015 e 2016, a situação era surdamente ainda calamitosa. Injetou-se dinheiro na Caixa, com Bruxelas a fechar os olhos a ajudas de Estado, o BPI sanou os seus conflitos acionistas ao ser tomado pelos espanhóis do La Caixa, o BCP acalmou a situação de capital, o Banif foi vendido ao Santander e pagou-se para vender o Novo Banco à Lone Star — mas as transferências para o ex-BES não têm fim, parece que de cada vez que se abre uma gaveta se encontra mais um crédito que não será pago, seja a projetos imobiliários ou a empresas de cogumelos. Daí ter evoluído o cenário de venda ou fusão do banco, o que passa por negociar com a Lone Star o desbloqueamento da sua saída, assim abrindo caminho para uma consolidação. O BCP está na linha da frente, pelas sinergias mais óbvias. Se o processo avançar, “sinergias” quererá dizer despedimentos, claro. Mas mesmo que os acionistas se entendam, é preciso que o BCE aprove, e não é fácil Bruxelas aceitar uma fusão com acionistas angolanos e chineses.

O tema marcará o primeiro semestre de 2020, sendo o interesse do Estado o de se desembaraçar das garantias que deu para cobertura de prejuízos futuros, o que vai prolongando o calendário das ajudas à banca. Com a licença do senhor presidente da Assembleia da República, isto, sim, é uma vergonha. Nada excecional. É o mesmo todos os anos: “Não há dinheiro para isto, mas há dinheiro para os bancos.”


Querem que guardemos o dinheiro nos colchões

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 14/09/2019)

Pedro Marques Lopes

Poupando o caríssimo leitor e benemérito do nosso sistema bancário a grandes detalhes, em termos muito simples, os bancos, sempre segundo a Autoridade da Concorrência, arranjavam maneira de não concorrerem uns com os outros, ou melhor, combinavam os preços.


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A notícia já desapareceu, os programas de debate televisivos e radiofónicos quase ignoraram o assunto e, que eu desse conta, não foi tema da campanha eleitoral. Ou seja, uma gigantesca vigarice que 14 bancos praticaram não desinquieta particularmente os cidadãos, a comunicação social e as pessoas que se propõem representar-nos.

Pode ser que já nos tenhamos habituado. Nestes últimos anos têm sido tantas e tão variadas as formas como os bancos e os seus geniais gestores nos foram ao bolso que já nem ligamos. Às tantas até já lhes achamos piada: “Ahhh, aqueles malandrotes armaram mais uma marosca, uns espertalhões.”

Segundo a Autoridade da Concorrência (AdC), 14 bancos informavam antecipadamente os seus concorrentes sobre os preços que iam praticar em certos produtos e as vendas que tinham feito desses mesmos produtos nos meses anteriores. É o que quer dizer a passagem do texto que aplica a coima quando refere que eram fornecidas informações sobre “spreads a aplicar num futuro próximo no crédito à habitação ou os valores do crédito concedido no mês anterior”.

Poupando o caríssimo leitor e benemérito do nosso sistema bancário a grandes detalhes, em termos muito simples, os bancos, sempre segundo a Autoridade da Concorrência, arranjavam maneira de não concorrerem uns com os outros, ou melhor, combinavam os preços.

Não me parece que seja necessário discorrer sobre o facto de vivermos numa sociedade que acredita que a concorrência gera valor para os consumidores, levando a que as empresas tentem desenvolver produtos melhores e mais baratos. Chama-se economia de mercado. O que os bancos fizeram foi cuspir nesses princípios e fazendo-o atingiram diretamente os seus clientes.

Um cenário verdadeiramente espetacular: ao mesmo tempo que o cliente pagava os problemas do banco estava também a ser diretamente prejudicado na relação comercial que tinha com essa empresa. Um verdadeiro dois em um da pouca-vergonha.
A coima que a AdC aplicou aos bancos tem um significado maior para a relação entre cidadãos e bancos do que as contribuições que direta ou indiretamente fizemos para o sistema financeiro.

As dívidas incobráveis, que nós gentilmente pagamos e que grande parte da banca tem, não resultaram todas, longe disso, de verdadeiros roubos ou sequer de gestão negligente. A crise financeira foi o que foi e analisar aos olhos de hoje atos de gestão – como concessões de crédito – do passado será sempre um disparate. Deixar implodir o sistema não seria sequer uma hipótese e o poder político, como nosso representante, achou por bem – e bem – usar os nossos impostos para o salvar.

Outra coisa é sabermos que os bancos não cumprem regras de forma sistemática e se organizam para maximizarem os lucros à custa dos clientes violando normas básicas do mercado. Não há sequer comparação, isto é absolutamente destrutivo para a relação de confiança que tem de existir no relacionamento entre os bancos e os seus clientes e subverte completamente as regras do mercado.

Convém também lembrar que este tipo de práticas não aconteceu no vazio, foram levadas a cabo por pessoas de carne e osso, homens e mulheres que continuam a exercer as mais altas funções no sistema financeiro como se nada tivesse acontecido e que aparecem cheias de moral a debitar considerações sobre tudo e mais alguma coisa. Não há responsabilidades pessoais concretas a apurar?

Enquanto, apesar de cumprir a sua função, não se pode deixar de elogiar a Autoridade da Concorrência (suspeito de que há uns anos não haveria coragem para tomar esta posição), é verdadeiramente insultuosa a posição do Banco de Portugal quando afirma recear o impacto de eventuais coimas para o setor. Perdão? Então práticas anticoncorrenciais não devem ser penalizadas? Devem ser relevadas ações que prejudicam diretamente os cidadãos e distorcem o mercado? E, já agora, o que diabo andavam a fazer os responsáveis pela supervisão, não cabe nas suas incumbências verificar se há más práticas ? Pelos vistos, não. Ou, pelo menos, acham que não devem ser punidas.

Convenhamos, não é que não suspeitemos de que o que agora se descobriu na atividade bancária não aconteça noutras atividades, desde os combustíveis às telecomunicações, passando por outras. E se mesmo com muitos operadores existem estas vilanias (teoricamente mais difíceis de combinar), não será delirante imaginar que em setores com poucos operadores, fenómenos como a cartelização (clara na situação exposta pela AdC) ou o abuso de posição dominante aconteçam com frequência.

Portugal, como país pequeno e com problemas objetivos de concorrência, está mais exposto a problemas desta natureza. Por essas e por outras é absolutamente imprescindível uma regulação forte e com poderes reforçados. Se assim não for ficamos expostos ou à continuação de situações como a vergonha descrita ou a devaneios estatistas que ainda iriam piorar mais a situação.