Não saiu chumbo nem tapezinha

(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/12/2021)

Daniel Oliveira

A escolha era entre entregar o dinheiro a acionistas que não queriam investir do seu, sem ter poder executivo; deixar falir a TAP; ou salvar o hub, salvando a TAP. Só as duas últimas eram legitimas e tinham grandes custos e resultados difíceis de prever. O Governo escolheu a última. Os que vaticinaram o chumbo da restruturação pela Comissão Europeia ou uma “tapezinha” enganaram-se.


Quando a TAP foi renacionalizada – e não estou a falar da aldrabice de Pedro Marques, com a ajuda de Lacerda Machado –, o que estava em causa não era, antes de tudo, se a empresa ficava privada ou pública. Era se sobrevivia. E não estava em causa apenas ou sobretudo a subsistência da empresa, mas a existência de um hub em Portugal. Sem TAP não há hub, porque nenhuma outra empresa garante as condições para a sua existência.

A escolha era entre entregar o dinheiro a acionistas que não queriam investir do seu, sem ter qualquer poder executivo, e logo ver o que acontecia; deixar falir a TAP; ou salvar o hub, salvando a TAP. Só as duas últimas hipóteses eram legítimas e as duas teriam sempre grandes custos e resultados difíceis de prever. O Governo escolheu a última. Do meu ponto de vista, tendo em conta a centralidade que o turismo tem nas nossas exportações, fez bem.

Faltava a aprovação do plano de restruturação da empresa pela Comissão Europeia, necessário por causa dos efeitos que ele pode ter na concorrência (alfa e ómega da política económica europeia e uma das razões porque a Europa vai ficando para trás em relação a outras regiões económicas). Todos os que vaticinaram o chumbo desta solução ou uma “tapezinha” enganaram-se. O que foi conseguido na negociação com a Comissão Europeia superou as minhas melhores expectativas e está a léguas do que se passa com a Alitalia, por exemplo.

A TAP não terá de fazer mais cortes salariais e no pessoal dos que já fez. Vai poder chegar aos 99 aviões, mais seis do que tinha em 2018 e menos nove do que teve no máximo do seu crescimento, em 2019. A principal cedência é o corte de 5% dos slots da TAP no aeroporto de Lisboa (18), o que tem um efeito marginal, mas torna ainda mais urgente o difícil e antigo debate sobre o novo aeroporto.

A venda da Manutenção e Engenharia do Brasil é uma boa notícia. É um elefante branco deixado por Fernando Pinto ao qual nem a TAP recorre. Dificilmente será vendida, provavelmente será liquidada. É um favor que se faz à companhia, porque a Comissão Europeia permitiu que no pacote financeiro de apoio à TAP incluísse a cobertura das contingências geradas com a liquidação ou venda. A saída da TAP da Groundforce impede que a companhia tenha poder de decisão na única empresa de handling, que está insolvente. Mas, na realidade, desde que o governo de Passos entregou Groundforce a um artista que esse poder era meramente formal. A saída não tem grande impacto, porque a TAP nunca poderia ter a maioria, segundo as regras europeias.

Não sabemos se, no futuro, a TAP será integrada num grupo europeu, mesmo que o Estado se mantenha na empresa. Se essa integração se der, manter o hub depende da complementaridade e escala que a TAP acrescente a esse grupo. Não é, por isso, indiferente qual seja. Se assim for, veremos em que condições acontece. Sabemos que em vez de oferecer dinheiro a acionistas sem um cêntimo para investir na empresa (especialidade dos nossos governos) ou perder o único hub no país, o que teria efeitos profundos na atratividade de Portugal como destino, mesmo para outras companhias, se conseguiu salvar a TAP (por agora) e mantê-la com a dimensão mínima necessária para isso fazer sentido. Porque se a TAP se mantivesse sem dimensões para assegurar este hub o custo/beneficio desta operação seria muito duvidoso.

Seja qual for a opinião de cada um sobre este processo, o que saiu de Bruxelas foi uma vitória do Governo. Mas foi, antes de tudo, uma vitória de Pedro Nuno Santos, numa situação politicamente muito adversa: sendo o alvo preferencial dos tiros da direita, nunca teve grande apoio público do seu primeiro-ministro, num processo de resgate que o próprio António Costa desejou.


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Querem que guardemos o dinheiro nos colchões

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 14/09/2019)

Pedro Marques Lopes

Poupando o caríssimo leitor e benemérito do nosso sistema bancário a grandes detalhes, em termos muito simples, os bancos, sempre segundo a Autoridade da Concorrência, arranjavam maneira de não concorrerem uns com os outros, ou melhor, combinavam os preços.


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A notícia já desapareceu, os programas de debate televisivos e radiofónicos quase ignoraram o assunto e, que eu desse conta, não foi tema da campanha eleitoral. Ou seja, uma gigantesca vigarice que 14 bancos praticaram não desinquieta particularmente os cidadãos, a comunicação social e as pessoas que se propõem representar-nos.

Pode ser que já nos tenhamos habituado. Nestes últimos anos têm sido tantas e tão variadas as formas como os bancos e os seus geniais gestores nos foram ao bolso que já nem ligamos. Às tantas até já lhes achamos piada: “Ahhh, aqueles malandrotes armaram mais uma marosca, uns espertalhões.”

Segundo a Autoridade da Concorrência (AdC), 14 bancos informavam antecipadamente os seus concorrentes sobre os preços que iam praticar em certos produtos e as vendas que tinham feito desses mesmos produtos nos meses anteriores. É o que quer dizer a passagem do texto que aplica a coima quando refere que eram fornecidas informações sobre “spreads a aplicar num futuro próximo no crédito à habitação ou os valores do crédito concedido no mês anterior”.

Poupando o caríssimo leitor e benemérito do nosso sistema bancário a grandes detalhes, em termos muito simples, os bancos, sempre segundo a Autoridade da Concorrência, arranjavam maneira de não concorrerem uns com os outros, ou melhor, combinavam os preços.

Não me parece que seja necessário discorrer sobre o facto de vivermos numa sociedade que acredita que a concorrência gera valor para os consumidores, levando a que as empresas tentem desenvolver produtos melhores e mais baratos. Chama-se economia de mercado. O que os bancos fizeram foi cuspir nesses princípios e fazendo-o atingiram diretamente os seus clientes.

Um cenário verdadeiramente espetacular: ao mesmo tempo que o cliente pagava os problemas do banco estava também a ser diretamente prejudicado na relação comercial que tinha com essa empresa. Um verdadeiro dois em um da pouca-vergonha.
A coima que a AdC aplicou aos bancos tem um significado maior para a relação entre cidadãos e bancos do que as contribuições que direta ou indiretamente fizemos para o sistema financeiro.

As dívidas incobráveis, que nós gentilmente pagamos e que grande parte da banca tem, não resultaram todas, longe disso, de verdadeiros roubos ou sequer de gestão negligente. A crise financeira foi o que foi e analisar aos olhos de hoje atos de gestão – como concessões de crédito – do passado será sempre um disparate. Deixar implodir o sistema não seria sequer uma hipótese e o poder político, como nosso representante, achou por bem – e bem – usar os nossos impostos para o salvar.

Outra coisa é sabermos que os bancos não cumprem regras de forma sistemática e se organizam para maximizarem os lucros à custa dos clientes violando normas básicas do mercado. Não há sequer comparação, isto é absolutamente destrutivo para a relação de confiança que tem de existir no relacionamento entre os bancos e os seus clientes e subverte completamente as regras do mercado.

Convém também lembrar que este tipo de práticas não aconteceu no vazio, foram levadas a cabo por pessoas de carne e osso, homens e mulheres que continuam a exercer as mais altas funções no sistema financeiro como se nada tivesse acontecido e que aparecem cheias de moral a debitar considerações sobre tudo e mais alguma coisa. Não há responsabilidades pessoais concretas a apurar?

Enquanto, apesar de cumprir a sua função, não se pode deixar de elogiar a Autoridade da Concorrência (suspeito de que há uns anos não haveria coragem para tomar esta posição), é verdadeiramente insultuosa a posição do Banco de Portugal quando afirma recear o impacto de eventuais coimas para o setor. Perdão? Então práticas anticoncorrenciais não devem ser penalizadas? Devem ser relevadas ações que prejudicam diretamente os cidadãos e distorcem o mercado? E, já agora, o que diabo andavam a fazer os responsáveis pela supervisão, não cabe nas suas incumbências verificar se há más práticas ? Pelos vistos, não. Ou, pelo menos, acham que não devem ser punidas.

Convenhamos, não é que não suspeitemos de que o que agora se descobriu na atividade bancária não aconteça noutras atividades, desde os combustíveis às telecomunicações, passando por outras. E se mesmo com muitos operadores existem estas vilanias (teoricamente mais difíceis de combinar), não será delirante imaginar que em setores com poucos operadores, fenómenos como a cartelização (clara na situação exposta pela AdC) ou o abuso de posição dominante aconteçam com frequência.

Portugal, como país pequeno e com problemas objetivos de concorrência, está mais exposto a problemas desta natureza. Por essas e por outras é absolutamente imprescindível uma regulação forte e com poderes reforçados. Se assim não for ficamos expostos ou à continuação de situações como a vergonha descrita ou a devaneios estatistas que ainda iriam piorar mais a situação.


Criar campeões, sacrificar a concorrência

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 13/06/2019)

Alexandre Abreu

A concentração empresarial confere economias de escala, poder de mercado e acesso a lucros extraordinários, especialmente quando está em causa uma quota de mercado substancial a uma escala continental ou global. Muitas empresas estão dispostas a praticar preços abaixo do custo para conquistar quota de mercado, suportando perdas durante largos anos se necessário, na antecipação da fase em que o seu domínio do mercado lhes permitirá recuperar esse investimento. Outra via mais direta para a conquista de poder de mercado é a fusão entre empresas existentes, particularmente quando entre si já partilham uma parte importante do mercado. Seja qual for a via, a conquista de poder de mercado é uma dimensão central do capitalismo realmente existente: a concorrência perfeita dos manuais é bastante excecional.

Tradicionalmente, os governos das economias capitalistas avançadas têm tido uma atitude ambígua em relação a estas dinâmicas de concentração. Por um lado, a noção de que os lucros monopolísticos penalizam os consumidores, incluindo outras empresas a montante a a jusante, levou historicamente ao desenvolvimento de legislação antimonopolística, incluindo a imposição do desmantelamento de empresas com poder de mercado excessivo e a penalização de práticas de cartelização. É mais frequente, porém, que o poder político promova os interesses dos grandes grupos com aspirações monopolísticas, justificando-o com uma identificação entre os interesses destes e o interesse nacional, principalmente quando em confronto com empresas rivais de outros países.

Na União Europeia, vive-se atualmente um momento de charneira no que diz respeito à tensão entre estas duas tendências. A dinamarquesa Margrethe Vestager, Comissária Europeia para a Concorrência desde 2014, tornou-se famosa pela imposição de multas avultadas a empresas como a Apple ou a Google por abuso de poder de mercado, mas também pelos vetos impostos a vários planos de mega-fusões, incluindo, nos últimos meses, as intenções de fusão da Thyssenkrupp com a Tata (no sector do aço) e da Siemens com a Alstom (nos equipamentos ferroviários). Mas a sua atuação tem vindo a criar cada vez mais inimizades junto de vários governos europeus, que têm visto bloqueada a perspetiva de consolidação de empresas “campeãs europeias” com maior capacidade de competir no mercado global e, em particular, de enfrentar a concorrência das rivais chinesas e norte-americanas.

O veto à fusão entre a alemã Siemens e a francesa Alstom no sector ferroviário, que teria dado origem à segunda maior empresa mundial de fabrico de comboios, terá irritado particularmente os governos francês e alemão. Levou também Angela Merkel e Emmanuel Macron a apelarem a uma alteração das regras europeias da concorrência no sentido de uma maior tolerância para com a concentração monopolística em nome da capacidade de concorrência face aos rivais extra-europeus. Já em fevereiro deste ano os ministros da economia francês e alemão, Bruno Lemaire e Peter Altmaier, haviam lançado um Manifesto Franco-Alemão para uma política industrial europeia para o século XXI, que incluía apelos no sentido do reforço substancial do investimento público na inovação, de maior proteção face a países terceiros e da revisão das regras da concorrência para torná-las mais permissivas. Todos pretendem que os governos nacionais, através do Conselho, possam ultrapassar os vetos da Comissão em nome do interesse nacional.

Este embate vai prosseguir nos próximos tempos e acentuar-se à medida que as empresas chinesas forem conquistando cada vez mais mercados a nível global, colidindo com as aspirações dos grupos empresariais europeus. E será surpreendente se neste contexto os mecanismos de salvaguarda da concorrência prevalecerem face às pressões crescentes no sentido da atuação política em apoio à concentração do capital. Este pode não ter pátria para algumas coisas, mas tem-na com certeza quando toca à mobilização do poder político para fazer avançar os seus interesses.