Não é parolice isso do “até os comemos no Mundial”?

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 29/06/2021)

Desculpem os corações sensíveis, mas não consigo acompanhá-los na raiva contra a bola que, perversa como só ela sabe ser, não quis entrar na baliza belga, nem muito menos na mágoa contra o vodu que teria castigado a seleção nacional. Essa de culpar o cosmos e os búzios pelos erros próprios pode ser conforto de alma, mas ajuda menos a resultados desportivos que dependem de porfiar e melhorar os talentos e, já agora, de um treinador que saiba organizar a equipa e que queira vencer. Talvez haja sorte que por vezes possa fazer a diferença, como, já agora, o golo de Éder que valeu um título, mas é escusado pensar que um efeito faz um feitio ou que uma exceção faz a regra.

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Com o melhor marcador do campeonato italiano e o segundo melhor do alemão, com jogadores de referência de tantas das grandes equipas europeias, a seleção tinha obrigação de mais. Marcar sete golos e sofrer outros sete é um mau resultado e, quando chegaram os oitavos de final, depois de somar um jogo lastimável (com a Alemanha) a outro bom (com a França), entrar a medo para correr atrás do prejuízo (com a Bélgica) significava já o risco de caminhar para a derrota, até contra uma equipa que foi banal.

Como tantas vezes acontece entre nós, a tendência para o dramalhão foi mobilizada para jogar fora do relvado e tentar tapar estas fragilidades. Porventura com a mais sincera das emoções, destacou-se o apelo à invasão de Sevilha e multiplicaram-se os vaticínios, a modos de evocações milagreiras ou de feitiços, tudo para ser esquecido no momento seguinte. A política piscou o olho ao futebol, são velhas amizades com tantos segredos vividos e convividos, e segue jogo. Neste domínio da fantasia futebolística, tudo o que é possível dizer e prometer vale pouco e isso convida a uma inflação da hipérbole. Prometemos arrasar o Olímpico de La Cartuja e assentamos praça no café da nossa esquina. Eu sou mais fanático do que tu e é assim que afirmo o meu amor à pátria da bola que rola e não salta, mas não me leves muito a sério, que eu também não.

Haveria então alguma razão para antecipar, talvez compreender e quem sabe se amnistiar os que, arrumadas as botas do campeonato europeu, subiram logo a parada, agora é ganhar o Mundial, vamos a eles. É assim que isto funciona, promete-se sempre mais quando se faz menos. Em tradução para termos mais corriqueiros, o que vários ilustres vieram garantir é que “até os vamos comer” no Qatar. Espera-se que o povo repita a promessa e que, assim, se eleve até aos céus uma torrente de fé que ilumine o campeonato do qual ainda se disputam eliminatórias. Que importa, a fibra de campeão é ganhar todos os jogos antes de os disputar, que depois é que é mais difícil.


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Os sancionalistas

(Mariana Mortágua, in JN, 05/07/2016)

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Os sancionalistas usam um pin da bandeira portuguesa na lapela. Quando um governante alemão mente em público para atiçar os especuladores contra Portugal, o sancionalista compreende. Quando um eurocrata ataca a maioria parlamentar portuguesa para desviar as atenções da crise do Deutsche Bank, o sancionalista confirma as suas preocupações e diz, como Maria Luís Albuquerque: “Se eu fosse ministra, não havia sanções”.

Quando um responsável eleito pelo povo se insurge contra a ingerência de Bruxelas em opções da democracia portuguesa, o sancionalista franze as sobrancelhas e, como Passos Coelho, condena quem “usa tese do inimigo externo” contra os nossos protetores de Berlim.

Os sancionalistas adoram as palavras “credibilidade” e “compromisso”. Quando um organismo não eleito e sem existência prevista em qualquer tratado, o Eurogrupo, recusa dados oficiais e pretende ditar alterações de orientação económica de um Governo legítimo, o sancionalista explica que Portugal tem um problema de “credibilidade”. Quando um banqueiro do centro da Europa, depois de salvar mais um grande banco europeu, explica que “regras são regras” e “todos temos de cumprir os nossos compromissos”, o sancionalista sorri e recorda o tempo em que escrevia Orçamentos do Estado violando compromissos constitucionais e contratos sociais (e, ainda assim, sem cumprir as metas do défice).

Os sancionalistas dizem que não atiram as culpas para os outros. Mas não aceitam que as sanções da Comissão Europeia às contas portuguesas entre 2013 e 2015 se baseiam nos anos da sua governação. Para sacudir a água do capote, aliam-se à estratégia europeia para denegrir o país e chantagear o atual Governo.

Os sancionalistas falam sempre em nome do interesse nacional. Só não percebem, ou fingem não perceber, que interesse nacional é um país poder escolher o seu Governo e as suas políticas, sem ter que ser sujeito a pressões, ameaças e humilhações. Aceitar a chantagem, participar nela, não é patriotismo, é colaboracionismo. Assim são os nossos sancionalistas. Mas sempre, é claro, de pin com a bandeira portuguesa na lapela.

Paulo Rangel e o patriotismo de lapela

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/02/2016)

Autor

                             Daniel Oliveira

No “Público”, Paulo Rangel voltou a ensaiar o discurso da asfixia democrática. O eurodeputado sente-se asfixiado com tanta facilidade que começo a temer que tenha problemas de asma. Ou então dá-se mal com o ar da oposição. Mas foi para reagir à acusação de falta de patriotismo que se amofinou. Da minha parte, não me limito a pôr em causa o seu patriotismo. Considero que Paulo Rangel, pelos seus atos públicos e pelo papel que tem tido em Bruxelas, é de forma deliberada inimigo dos interesses da comunidade nacional de que faz parte. Está no seu direito. Assim como qualquer um está no direito de o verificar e assinalar. Por mais asfixiado que se sinta do exercício da crítica a que também ele está sujeito.

Que fique claro: não acho que quem se oponha a um governo, dentro ou fora de fronteiras, seja menos patriota por isso. Por vezes, muitas vezes, pelo contrário. Já tenho dificuldade em dizer o mesmo de quem, com o apoio dos seus aliados no Partido Popular Europeu, pressione, por interpostas pessoas, a Comissão Europeia a não aceitar ou a alterar profundamente o Orçamento de Estado português. Não é patriota quem aproveita os limites impostos à nossa soberania para ter ganhos internos. Quem tenta conquistar em instâncias internacionais não eleitas aquilo que não consegue no Parlamento que representa o seu povo. Ainda mais em questões que, por natureza, são o centro da soberania democrática de uma Nação.

Dirá Rangel que as notícias das suas movimentações são manifestamente exageradas. Mas nós ouvimos como, em pleno plenário do Parlamento Europeu, avisou a Europa que o governo que aí vinha punha em “causa o equilíbrio que até agora tem sido seguido em Portugal”. E voltámos a ouvi-lo dizer, para quem na Europa o quisesse ouvir, que o Estado português estava a tentar enganar a Comissão Europeia. Se em público foi tão claro, é difícil acreditar que em privado não tenha ido um bocadinho mais longe. Com o que sabemos sobre Paulo Rangel, muitíssimo mais longe.

Hoje, felizmente, ser patriota não é um dever. E não deve ser. É uma escolha. A mim, devo dizer, o patriotismo nunca me disse muito. Mas passaram cinco anos de humilhação e agachamento nacional. Vi demasiada gente agradecer que outros viessem tratar de assuntos nossos. Quando desobedecemos, ouvi dizer que éramos uma “criança problemática”. E isso, em vez de nos indignar, assustou-nos. Quando nos calámos, que éramos um “povo bom”. E isso em vez de nos incomodar alegrou-nos. Vi um ministro das Finanças curvado, servil, perante o que devia ser homólogo seu, a fazer juras de bom comportamento. Vi, na República Checa, o Presidente da República a ouvir um ralhete de outro, em silêncio. Ouvi dizer que era “bendita a troika” por fazer o que a democracia até aí não permitira. E fui percebendo como a perda de soberania não corresponde apenas à perda de democracia, o que seria já de si bastante grave. Mergulha o povo numa espécie de indignidade coletiva. Sim, os últimos anos fizeram de mim, talvez por amor-próprio, um patriota. E o degradante comportamento da nossa elite política, mediática e económica, com especial distinção para o embaraçante Paulo Rangel, contribuíram para isso.

Claro que o interesse nacional depende de pontos de vista diferentes. Argumenta Paulo Rangel, com razão e escrevo-o há anos, que não há um interesse nacional único. O que o PCP acha sobre o interesse nacional é o oposto do que acha o CDS. Mas como imagino que Paulo Rangel não se transformou num relativista, concordará comigo que há, apesar de tudo, algumas fronteiras a partir das quais podemos mesmo pôr em causa o papel de alguns políticos na defesa do interesse nacional.

Posso acusar de falta de patriotismo todo aquele que tenta que decisões soberanas do Estado português, tomadas por órgãos democraticamente eleitos, sejam chumbadas por instâncias supranacionais não eleitas. Posso acusar de falta de patriotismo todo aquele que, durante um processo negocial entre o Estado português e outras instâncias internacionais, conspira para que os legítimos representantes do seu povo vejam as suas intenções frustradas. Posso acusar de falta de patriotismo todo aquele que tenta que o seu próprio país consiga piores condições para exercer o soberano domínio dos seus destinos. E desse ponto de vista considero que Paulo Rangel não é apenas antipatriota. O patriotismo é um conceito que lhe é absolutamente estranho.

A falta de patriotismo de Rangel ou de Passos Coelho não foi especialmente feroz nos últimos meses. Durante quatro anos estes senhores escudaram-se numa intervenção externa – que não sendo apenas ou principalmente responsabilidade sua, procuraram e desejaram, assim como a procuram e desejam hoje – para impor ao país um programa político não sufragado.

Apoiaram os interesses dos credores contra os nossos próprios interesses. Aproveitaram o poder da troika para vender, por vezes de forma muito pouco transparente, património público e alterar leis da República, violando repetidamente a Constituição. Trataram as instituições internacionais que capturaram partes da nossa soberania, não como um mal necessário, mas como aliados políticos. Não, não são patriotas. Ao patriotismo não basta uma bandeirinha que exiba na lapela o que não está na cabeça. Não é por acaso, aliás, que Passos Coelho e os seus ministros foram os primeiros políticos portugueses a sentir necessidade de usar tal adereço.