Rio, Santana e Sócrates: do tudo ao nada

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 14/10/2017)

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Miguel Sousa Tavares

Rui Rio. Para ser franco, não sei bem quem seja e seguramente não lhe recordo uma única ideia ou pensamento que me tenha chamado a atenção. Sei, claro, que foi presidente da Câmara do Porto, muito elogiado pela imprensa e intelectualidade lisboeta por se ter atrevido a enfrentar o FC Porto e Pinto da Costa. Porém, só o fez depois de ser eleito e não antes — mostrando logo aí o que viria a revelar-se uma característica muito sua: o gosto pelos combates ganhos à partida, a aversão pelos outros. Nessa guerra, sem que se tenha percebido porquê, Rio resolveu levantar toda a espécie de problemas à obra do Estádio do Dragão, que estava já praticamente concluída e onde iria ter lugar a abertura do Euro-2004. Oficialmente, foi Rio que ganhou a guerra, ao obrigar o FC Porto a pagar 1 milhão de euros a favor de uma inventada Associação de Comerciantes da Baixa, como compensação pela construção de um centro comercial junto ao Estádio e a uns 10 quilómetros da Baixa. Na prática, porém, eu acho que foi o FC Porto que ganhou a guerra: nesse ano, viria a ser campeão da Europa e no ano seguinte campeão do mundo, e o Estádio do Dragão é, consensualmente, um dos mais bonitos do mundo e um ex-líbris da cidade. Ou seja: fez infinitamente mais pelo Porto do que o seu presidente. Quanto a Rui Rio, é o que é e que nem os seus eternos promotores sabem dizer ao certo o que seja. Sei — porque assisti ao vivo a uma palestra dele sobre o assunto — que tem problemas por resolver, não com alguns jornais ou jornalistas, mas com a imprensa em geral e, por arrasto, com a liberdade de imprensa. Diz-se também que terá algumas ideias brilhantes, fruto de profunda reflexão sobre os problemas nacionais, mas, ao certo, ninguém é capaz de enunciar uma dessas ideias. Dizem que é um homem bom da província que aspira à redenção da vida pública, uma esperança, uma reserva nacional, até mesmo, imagine-se, eventual candidato a Presidente da República, não fosse um candidato mais forte ter-se-lhe interposto à frente e ele, fiel ao seu estilo, ter batido em retirada. Faz-me lembrar irresistivelmente o Pacheco da “Correspondência de Fradique Mendes” — também ele, vindo da província para tomar o poder em São Bento, precedido de uma fama e de uma aura de inteligência, brilhantismo e moralidade assente em coisa alguma que alguém pudesse enunciar ao certo. Como escreveu Eça, “Pacheco, no entanto, já não falava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornando mais vasta”. Eis a primeira proposta do PSD ao país.

Quanto a Santana Lopes, a outra proposta, esse, o país inteiro conhece-o, até bem demais — com ele é como se fossemos todos família. A imprensa adora-o, porque ele é um incansável fabricante de emoções, animações e trapalhadas — o “menino guerreiro”. Tem sobre Rio essa vantagem: a ele não assustam as guerras perdidas (enfim, não todas…), e não há festa nem festança a que não compareça, convidado ou não. Infelizmente, tem, em relação a Rio, a imensa desvantagem daquele trágico e breve governo de 2002, que Durão Barroso deixou cinicamente de herança ao país quando se pirou para Bruxelas e que Santana chefiou como se chefia um clube de amigos. Mais do que uma amnésia colectiva, seria necessário que o país entrasse num processo de suicídio colectivo (como parece estar a acontecer com o PSD) para que voltássemos a passar por tão deliciosa experiência. Não obstante, eu prefiro sempre aqueles a quem falta em razão o que lhes sobra em coração: afinal de contas, eles são o sal da vida. E a Pedro Santana Lopes aplica-se como uma luva os versos do fado de Amália: “Coração independente/ coração que eu não comando/ vives perdido entre a gente… pára, deixa de bater/ se não sabes onde vais/ porque teimas em correr?”. Eu não te acompanho mais.

José Sócrates. Então, após mais de quatro anos de investigação, nove meses de prisão preventiva do principal arguido, vinte e não sei quantos investigadores encarregados do processo e dezenas de milhões de euros gastos aos contribuintes (tanto ou quase tanto como o MP acusa Sócrates de ter recebido indevidamente), a equipa Amadeu Guerra/Rosário Teixeira & Associados conseguiu finalmente produzir uma acusação contra o antigo PM. Não entrando em considerações sobre o mérito da acusação (não se lêem 4000 páginas, mais as que a defesa vier a produzir num dia…), deixem-me apenas constatar alguns factos que julgo de razoável seriedade intelectual ter como pacíficos:

  1. manifestar o meu espanto por haver quem, sem se desmanchar, fale em “rapidez processual”, pelo facto de o MP ter antecipado em um mês o prazo de conclusão do inquérito, anteriormente prorrogado sete vezes;
  2. constatar que, como seria de prever e esperar, esses quatro anos — que foram não apenas de inquérito, mas também de linchamento popular, propiciado por sistemáticas e cirúrgicas fugas de informação — produziram o efeito útil pretendido: a condenação prévia dos arguidos, à revelia de qualquer presunção de inocência (bem patente, aliás, na entrevista do juiz de instrução, Carlos Alexandre, à SIC). A grande questão, obviamente apenas teórica, é esta: mesmo que porventura não convencido da culpabilidade de Sócrates, haverá algum juiz em Portugal que tivesse a coragem de o absolver, sabendo que com isso consumaria também o desprestígio final e definitivo do MP?;
  3. verificar que o MP acha que é pela quantidade e não pela qualidade que a acusação terá vencimento. Não fôssemos nós pensar que tudo foi concluído de forma leviana, eis que o MP nos bombardeia com os seus dados: mais de 200 testemunhas ouvidas, milhares de horas de gravação de centenas de escutados, 500 contas bancárias escrutinadas, aqui e no estrangeiro, e centenas de buscas efectuadas. Um dilúvio investigatório, em que só faltou contabilizar as fugas de informação, como sempre inexplicavelmente saídas para a imprensa e desde o primeiro minuto em que José Sócrates foi preso à saída de um avião. Tudo isto resultando em 28 arguidos, 164 crimes e, afinal, 34 e não 24 milhões encaixados por Sócrates a título de corrupção. E traduzido numa acusação que entrará para o “Guinness” com as suas 4000 páginas. Tolstoi precisou de 900 páginas para escrever o melhor romance que alguma vez foi escrito. Não sei se, como diz a defesa de Sócrates, também aqui estamos perante um romance. Mas sei que uma acusação que precisa de 4000 páginas para convencer o juiz de instrução e o tribunal, não é uma peça processual, é um caso agudo de incontinência verbal. Na esteira, aliás, da funesta tradição jurisprudencial que é a nossa, esta acusação não tenta ser clara, concisa, factual e inteligível por todos — com razão ou sem ela. Pretende, sim, esmagar, lançar a confusão, reduzir a apreciação dos factos a um número absolutamente restrito de quem saiba, possa e tenha paciência para ler e reflectir atentamente sobre estas 4000 páginas, mais aquelas que a defesa apresentar;
  4. o julgamento vai seguramente demorar uma eternidade, anos a fio e, atrevo-me a apostar que, no final, só os já convencidos se sentirão esclarecidos num ou noutro sentido. Conseguiu-se aquilo que em todos os discursos dos responsáveis pela justiça aparece enunciado como os dois males maiores a evitar: a morosidade dos julgamentos e os megaprocessos que a proporcionam. É extraordinário que não tenha havido ninguém, acima de Rosário Teixeira na estrutura do MP, que lhe tenha imposto que se cingisse ao essencial e àquilo que parecesse aos investigadores mais fácil de acusar e provar em tribunal. Em vez disso, permitiu-se que a acusação andasse de negócio em negócio, de empresa em empresa (sempre bem informado, o “Correio da Manhã” chegou a titular que todos os negócios, públicos ou privados, durante o governo Sócrates, estavam sob suspeita), até que finalmente, à 25ª hora e graças ao testemunho negociado com Hélder Bataglia em circunstâncias que não honram a investigação, fosse possível juntar no mesmo saco dois alvos preferenciais: Sócrates e Ricardo Salgado. Mesmo assim, também lá está Vale do Lobo, o grupo Lena, e a PT, além do BES: a fazer fé no MP, tivemos um PM que estava literalmente à disposição para ser comprado por qualquer empresa, empresário ou negócio;
  5. fosse por vaidade ou já por simples desnorte (mas para grande deleite da imprensa), caiu-se assim no “julgamento do regime”, com um saco de gatos de arguidos de que só escaparam alguns privilegiados e que, fatalmente, vai tornar o julgamento ainda mais arrastado e confuso. Exemplo extremo: suponhamos que, como sustenta o MP, Salgado comprou, de facto, os serviços de Granadeiro e Zeinal Bava para que eles defendessem os interesses do accionista BES dentro da PT. O que tem José Sócrates que ver com isso? Porque vai tudo junto a julgamento?

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia) 

Sinais de fogo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 29/07/2017)

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

1 Portugal arde sem cessar. Arde visto de terra ou do ar, arde dia e noite, semana após semana, Verão após Verão, ano após ano. Se isto é uma guerra — e eu acho que é — estamos a perdê-la em toda a linha.

Mas Portugal arde também nas televisões, que dia a dia, incessantemente, nos bombardeiam com as imagens dos incêndios, substituindo com elas a falta de notícias da época, enchendo os ecrãs de labaredas de tragédia que potenciam audiências, fazendo dos jornalistas uma espécie de repórteres de guerra, sempre em busca da imagem mais dramática ou do drama humano mais pungente. Sentados no sofá, impotentes e silenciosos, assistimos a isto com a sensação de fatalidade de uma morte lenta e previsível.

2 Há muito que carrego comigo esta dúvida: será que as imagens televisivas dos incêndios não são elas próprias causadoras de incêndios? Que melhor pode desejar um incendiário do que transformar o seu gesto em tragédia e notícia de telejornal, ver o espectáculo do fogo por si ateado a passar nas televisões? Como o demonstraram as decapitações públicas filmadas e divulgadas pelo Daesh, que atraíam mais voluntários para as suas fileiras, a instantaneidade da partilha de tudo o que vimos ou fazemos acontecer não serve só para os inocentes devotos do Instagram.

3 Também há muito que carrego comigo a desconfiança de que praticamente todos os fogos sejam, como nos dizem, ateados voluntariamente. Desconfio que essa afirmada epidemia disseminada de loucura serve, bastas vezes, para que não se procure e não se reflicta sobre outras causas dos incêndios. Como quer que seja, uma coisa é a maneira como os fogos começam, outra é a maneira como se propagam e evoluem. E a nossa é devastadora e cada vez mais aparecem situações em que os fogos ficam fora de controlo. O que falha cada vez mais, sendo certo que não há falta de meios: a limpeza dos matos, a composição da floresta, o ordenamento, a falta de vigilância, a falta de um comando e de uma estratégia unificada, a descoordenação no terreno, o SIRESP? Parece que tudo. Tudo está a falhar e ainda faltam dois meses de Verão.

4 Enfim, também me pergunto muitas vezes quem ganha dinheiro com os incêndios, além dos que compram a madeira ardida a preços de saldo. Há muitos negócios e dinheiro a correr à volta dos fogos — dos meios envolvidos, do material, dos equipamentos, das comunicações, dos aviões, de todo aquele aparato que vemos. Não insinuo nada, mas gostava que se investigasse a sério quem está por trás dos fornecedores e dos contratados; como é que são feitos os concursos, se é que são feitos; quem tem poderes para contratar e mandar comprar, quem vende e quem vive disso.

5 Enquanto vemos arder dezenas de milhares de hectares de eucaliptos e pinheiros bravos, a Celpa, a Associação da indústria do papel, que se alimenta destas espécies, protesta, em comunicado, contra a aprovação da nova lei das floresta, que irá, talvez, limitar o crescimento da área plantada de eucalipto. E digo talvez, porque foi tamanha a resistência do Governo a essa medida imposta pelo BE e vai ser tamanha a resistência dos autarcas a quem o anterior Governo delegara competências para decidirem da eucaliptização dos seus concelhos, que uma coisa é a aprovação sofrida da lei, outra a sua real aplicação no terreno.

Há muito que carrego comigo esta dúvida: será que as imagens televisivas dos incêndios não são elas próprias causadoras de incêndios?

Diz a Celpa que a lei “reduz o rendimento dos pequenos proprietários com a única espécie florestal rentável num prazo de 10-20 anos”. É justamente aí que está o problema: a tentação do lucro rápido interrompendo o ciclo ancestral de plantar para a geração seguinte e assim sucessivamente. A tentação de pegar em terrenos abandonados pela agricultura e pela pastorícia e neles plantar eucaliptos para vender às celuloses, sem necessidade de qualquer manutenção: os terrenos continuam abandonados, o mato continua por limpar, mas se por sorte não acontecer algum incêndio enquanto as árvores crescem, valeu a pena. Se acontecer, paciência, os bombeiros apagam o fogo e o país paga a despesa. Isto, diz a Celpa, é uma riqueza que representa 5% do PIB. Para eles, talvez; para o país é um desastre — financeiro, humano, ambiental, sociológico. Mas eles têm amigos poderosos em todo o lado, como bem se viu no debate parlamentar em que, honra lhe seja feita, apenas o Bloco de Esquerda defendeu, de princípio a fim, o interesse público.

6 Se tudo isto já era suficientemente deprimente — o espectáculo diário de um país a ser destruído aos poucos por um inimigo que nos mostra indefesos e quase impotentes — a chicana política montada por PSD e CDS a propósito do número de mortos de Pedrógão tornou tudo ainda mais deprimente e sujo.

O ridículo ultimato com que o novo líder parlamentar do PSD se quis dar a conhecer ao país, devia tê-lo morto de vez — parlamentarmente e de ridículo. E se não se consegue entender por que razão o Ministério Público resolveu que os nomes dos mortos deviam estar em segredo de justiça, menos ainda se aceita que a oposição desconheça a separação de poderes entre o Executivo e o Judicial e, para efeitos de zaragata politica, transforme o segredo de justiça em censura governamental. Vão de férias, que bem precisam! Em Setembro vem aí o diabo!

PS: Também vou de férias, dando descanso a mim e aos leitores. E como nesta altura se costuma recomendar livros para levar de férias, eu atrevo-me, para os que desconheçam, a recomendar o livro cujo título é o deste texto: “Sinais de Fogo”, de Jorge de Sena — um romance de uma vida (infelizmente inacabado), passado num Verão dos anos 40, na Figueira da Foz, quando a Figueira da Foz era uma referência balnear de meio Portugal e Espanha. Para mim, o livro de Jorge Sena integra a trilogia dos meus romances portugueses preferidos, de qualquer época, juntamente com o “Mau Tempo no Canal”, de Vitorino Nemésio, e “A Selva”, de Ferreira de Castro. Só depois vêm Eça e aquele que, em minha opinião, foi o português que melhor escreveu nesta língua que nos serve: Camilo Castelo Branco.


(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

 

Mas não vamos deprimir

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/07/2017)

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Caro Miguel

Ora aqui está um texto com tópicos vários com os quais discordo. Nos eucaliptos bom mais, na CGD suficiente menos, no caso de Loures, medíocre menos, eis as minhas notas. 

  1. É evidente que o BE e o PCP têm que ser complacentes com o PS, sobretudo com a história daquele PS que durante décadas viveu em conúbio com a direita em tudo quanto foi aproximação à manjedoura dos dinheiros públicos – prática que já o teu falecido pai se fartava de denunciar à época nos “camaradas socialistas” de então -, sob pena de fazer cair o governo e promovendo regresso de novo da direita ao poder. Penso que não é esse o teu desejo, ainda que algumas das linhas e entrelinhas dos teus textos me deixem, de quando em quando, algumas dúvidas. Mas adiante, In dubio pro reu.
  2. Agora o caso do Ventura é que não me caíu nada bem. Parece que achas que o homem é mais indigesto por ser benfiquista e/ou por perorar na CMTV do que por ele corporizar uma tentativa de o PSD cavalgar o discurso xenófobo e populista que está tão em voga por esse mundo fora para ascender eleitoralmente, já que não o consegue fazer de outra forma, como as sondagens têm vindo a revelar. Devias ter estado distraído e não viste que o homem é um ensaio da viragem que o PSD poderá fazer – caso tal se mostre um ganho eleitoral -, e daí a gravidade do tema. Não conseguiste fugir à tua predilecção por seres, por norma, contra todos os discursos do “politicamente correcto”. É pena, mas no melhor pano cai a nódoa

Esta publicação também é dirigida a alguns dos que me seguem e me acusam de só publicar textos com os quais concordo em absoluto. Como se vê não é verdade. Só que, quando não concordo, digo de minha justiça e sujeito-me ao contraditório.

Estátua de Sal, 22/07/2017


Portugal é um país com condições absolutamente excepcionais e naturais que o tornam um dos lugares mais agradáveis para se viver, conforme cada vez mais estrangeiros vêm descobrindo. Sermos pequenos, longe do grande mundo, sermos uma só nação que fala uma só língua e não tem conflitos religiosos, devia fazer de nós um país fácil de governar, com um mínimo de justiça e prosperidade. Nunca, creio, teremos condições para ser um país rico, mas se começarmos por aceitar isso, temos condições para ser um país sem história — isto é, relativamente feliz e tão justo quanto possível.

O que nos tolhe cronicamente, então? Não vejo outra explicação que não a da natureza do “heróico povo” que Marcelo Rebelo de Sousa garante viver aqui.

O heróico povo, sempre dividido em tudo por fronteiras partidárias, nem com o país a arder consegue pôr-se de acordo com uma reforma da floresta que evite a vergonha de sermos o país europeu com mais área florestal ardida — e não em termos relativos, mas em termos absolutos.

Por coincidência, também somos o país europeu com mais área plantada de eucaliptos, e, mesmo sendo o eucalipto uma árvore vocacionada para transformar pequenos incêndios em incêndios descontrolados, ainda muita gente com responsabilidades se recusa a associar uma coisa à outra. Esta semana percorri parte da área ardida em Pedrógão e Figueiró dos Vinhos: eucaliptos, eucaliptos, eucaliptos. E, para lá chegar, através da A13 e do IC-8 a paisagem é exactamente a mesma, sem variar um hectare que seja: montes e montes de floresta cerrada de eucaliptos descendo sobre vales onde ficam aldeias ou casas isoladas, à espera que o fogo venha por ali abaixo. Não há reservatórios de água à vista nem sequer corta-fogos, porque um corta-fogo com as dimensões adequadas para, de facto, ter hipóteses de deter um incêndio, rouba muita área para a plantação de mais eucaliptos. Nas estradas concelhias, como a “estrada da morte” e até no IC8, a lei que obriga a plantação de árvores a guardar uma distância mínima de 15 metros das bermas (para que as próprias estradas possam servir como corta-fogos), é escandalosamente incumprida e contaram-me que, antes do incêndio, havia locais nessas estradas onde as copas de um lado e do outro se juntavam. No parlamento e fora dele, deputados e autarcas, e o bloco-central PS/PSD, bateram-se com todas as armas contra a redução da área do eucaliptal a que chamam Portugal. O argumento é que isso retiraria a única “riqueza” dos pequenos proprietários rurais, assim contribuindo ainda mais para a desertificação do território (como se os eucaliptos não destruíssem emprego e servissem para fixar populações!). E, face à lei da selva com que a floresta é administrada, sabendo-se que somos o país do mundo com menos área pública de floresta (1%), que se desconhecem os donos de milhares de hectares ao abandono, o PCP opôs-se com sucesso à expropriação desses terrenos a favor do Estado, em nome da defesa dos pequenos proprietários, mesmo que ausentes ou desconhecidos. Porque, para os comunistas, as nacionalizações não devem depender do interesse público mas da luta de classes: uma propriedade é grande, é bem tratada e rentável? Devia ser nacionalizada. É pequena, está ao abandono e só serve para pegar fogo? Deixa-se estar. Ali, na zona de Pedrógão, arderam 45.000 hectares num só incêndio. Mas não tenham dúvidas nenhumas: vai arder uma e outra vez mais. Ali e no resto do país.

O que nos tolhe cronicamente, então? Não vejo outra explicação que não a da natureza do “heróico povo” que Marcelo Rebelo de Sousa garante viver aqui

Vejam também como o “heróico povo”, representado pela heróica casta militar — permanentemente pronta a dar a vida pela Pátria, conforme nos estão sempre a recordar, eles e as suas medalhas — resolveu o problema do roubo de armas em Tancos. Ao mais alto nível da chefia do Exército foi comunicado ao país que: a) os ladrões fizeram um favor ao Exército assaltando o paiol de Tancos, onde só havia sucata militar, assim poupando aos responsáveis o problema da sua inutilização; b) em lugar de apurar e explicar as circunstâncias em que um paiol de um quartel é assaltado e tratar de corrigi-las para que idêntica vergonha não se repita, optou-se por fechar de vez o paiol, assim garantindo o sucesso eterno da sua guarda e o fracasso de futuros assaltos semelhantes; c) nada de grave se tendo, pois, passado e nada havendo a lamentar ou a temer no futuro, os cinco oficiais provisoriamente suspensos, foram reintegrados nas mesmíssimas funções — entre as quais as de guardar o paiol… que já não existe. Não foi anedota, foi genuíno fado lusitano.

Vejam também como a heróica CPI à Caixa Geral de Depósitos acabou em perfeita glória. O PSD (e, em muito menor grau, o CDS), co-responsáveis pela nomeação de gente sua para a administração da Caixa e com governos contemporâneos de algumas das mais ruinosas decisões que a sua gente lá tomou, assumiram o papel de acusação. O PS, com a restante parte da responsabilidade, cujos varas e varões usaram a Caixa como extensão de uma política de promiscuidade entre Governo e grandes negócios, foi empurrado para o papel de réu. Escusado será dizer que os papéis estariam invertidos, fosse ainda o governo PSD e CDS a estar em funções. A única novidade agora é que BE e PCP, os campeões das denúncias dos desmandos bancários e da contestação à utilização de dinheiros públicos para lhes acorrer, em se tratando da Caixa, viram subitamente as coisas a uma outra luz. Uma luz muito mais generosa, fruto da necessidade de não abandonar o PS à sua sorte e fruto de ideias de que não se pode abdicar: um euro gasto a cobrir os prejuízos de um banco privado é um roubo aos contribuintes; um euro gasto com os prejuízos da Caixa é um investimento público. No caso da Caixa, foram, para já, cinco mil milhões para tapar os buracos de negócios de novos-ricos em Espanha, ou de negócios de favor a amigos e compadres. Mas, lá está: num banco público os vícios privados gozam de outra complacência. Assim, a Comissão de Inquérito — ou melhor, a maioria de esquerda na Comissão — preparava-se para votar um relatório final que concluía que nada de criticável se tinha passado ali, apenas o reflexo inevitável da crise bancária. Mas eis que vão a votos… e faltavam três deputados do PS para assegurar a maioria (dois andavam por ali e o terceiro estava ausente). O relatório acabou então chumbado, a Comissão não chegou a conclusões algumas e o Parlamento cobriu-se de glória, mais uma vez.

E, por fim, a heróica e unânime (sim, é contraditório) condenação nacional do candidato do PSD, e antes também do CDS, à Câmara de Loures, André Ventura. Não conheço o homem de lado nenhum e o facto de ser comentador benfiquista na CMTV não me predispõe muito a aplaudi-lo (não pelo Benfica, mas pela CMTV). Quanto aos ciganos, já os defendi publicamente em várias ocasiões e tenho relações cordiais com alguns que conheço. Não impede que eu saiba que tudo, ou quase tudo, o que André Ventura disse é verdade — e não é por ser inconveniente que deixa de ser verdade. Espanta-me que os 18 membros da esquadra de Alfragide se mantenham todos em funções e no mesmo lugar depois de terem sido alvo de uma acusação criminal do MP que, a provar-se verdadeira, é de uma extrema gravidade, em termos de violência policial de cariz racista, e que toda a gente pareça conviver bem com isso, enquanto que André Ventura, porque expressou uma opinião politicamente incorrecta (e, sobretudo, inconveniente) seja logo excomungado e tratado como criminoso. Mas a PSP é uma instituição e André Ventura é apenas um cidadão isolado. É até onde chega o nosso heroísmo.

 

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)