O fogo começou em 1985

(Por Estátua de Sal, 19/06/2017)

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Nem sempre concordo com ele. Quando ataca a função pública, os sindicatos e as suas reivindicações e aponta parte dos problemas do país a um suposto excesso de regalias nas quais diz que não se revê.

Mas devo reconhecer que, entre tantos comentadores e especialistas que no espaço público tem debatido as causas da tragédia dos fogos, Miguel Sousa Tavares foi, até ao momento na SIC e na SICN, o único que conseguiu chamar os bois pelos nomes. Os grandes responsáveis não estão no actual governo, sequer no anterior.

Os grandes responsáveis devem procurar-se no primeiro governo de Cavaco Silva, era ministro da agricultura Álvaro Barreto, que vendeu a agricultura portuguesa em Bruxelas por tuta e meia. E era ministro da Energia, Mira Amaral que defendeu a “eucaptilização” do país, chegando a chamar ao eucalipto o nosso petróleo verde. Tavares chegou mesmo a desafiar Mira Amaral, dizendo-lhe, caso o estivesse a ver, que devia mudar a cor de tal petróleo de verde para vermelho, a cor do sangue das vítimas deste momento, e de todas as outras que tem perecido durante décadas.

Reconheço que Tavares é uma voz desempoeirada e corajosa, que apontou o dedo à verdadeira causa de fogos desta dimensão que ele situa no que designa por fileira florestal industrial, e na falta de coragem do poder político para o enfrentar seja por cobardia ou por conivência: as celuloses, o lobby das corporações de bombeiros, as empresas de helicópteros  e de aviões usados para apagar os fogos e que custam milhões todos os anos.

E mais. Também gostei de ver Miguel Sousa Tavares,  apesar de ser um grande defensor dos méritos da propriedade privada, vir propor nestes casos, a expropriação pura e simples das terras de floresta deixadas ao abandono pelos seus proprietários, e que são um dos cancros que, na ausência de limpeza de matos e resíduos, permite a propagação rápida dos fogos, atingindo áreas e níveis de tal dimensão que se torna impossível debelá-los.

Mais que as minudências técnicas dos especialistas é necessário apontar o dedo e falar claro para que todos entendam a causas das coisas e que surjam medidas EFECTIVAS que ponham cobro a esta situação. E nesse aspecto, tenho que reconhecer e divulgar que Tavares esteve em grande plano.


Ver video com excerto da intervenção de MST aqui

Revisão em alta

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 04/03/2017)

AUTOR

                                                  Miguel Sousa Tavares

Sentados lado a lado na última fila do plenário da Assembleia da República, Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque conversavam e riam, francamente bem dispostos. Isto passava-se na quarta-feira à tarde, quase à mesma hora em que, numa sala ali ao lado, Paulo Núncio, ex-secretário de Estado do Ministério de Maria Luís e do governo de Passos Coelho, explicava aos deputados da Comissão de Economia e Finanças que tinha deixado passar para offshores dez mil milhões de euros sem os identificar, sem os publicitar e, aparentemente, sem que o fisco os tivesse previamente fiscalizado e tributado.

Sobre tudo isto, Passos Coelho já disse no Parlamento que não sabia de nada e é fácil apostar que Maria Luís irá dizer o mesmo na Comissão. Nada, portanto, que lhes retire a boa disposição.

Mas, na véspera, o INE e outras fontes publicaram os últimos dados da economia portuguesa: crescimento anual de 1,4 em 2016, mas com uma taxa animadora de 1,9% no último trimestre; desemprego a baixar para os 10,2% (quase a média da zona euro), com criação líquida de 90 mil postos de trabalho, desde que Passos e Maria Luís se foram embora; défice a cair 2,1% do PIB, o menor dos últimos 40 anos; investimento a dar sinais de retoma; confiança dos consumidores e empresários a subir; a TAP de regresso aos lucros e a construção civil a arrancar. De que ririam Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque?

O rasto de destruição maciça que esta dupla (mais Vítor Gaspar, mais os aliados do CDS) deixou na economia portuguesa ao fim de quatro anos e meio de governação não sairá tão rapidamente da memória de quem a sofreu: o “enorme aumento de impostos”, a brutal destruição de emprego, as falências, a emigração forçada e em massa de jovens e menos jovens qualificados. Acrescente-se as dezenas de milhares de milhões de euros perdidos ou espatifados por decisões ou por não-decisões desastrosas no Banif, no Banco Efisa, na Caixa, no Novo Banco, no contencioso voluntariamente assumido e perdido com o Santander, à conta dos swaps. Não custa muito antecipar que nem Passos Coelho nem Maria Luís alguma vez regressarão a qualquer governo que seja. Enquanto houver quem se lembre.

É verdade que o PSD voltou a ganhar as eleições de 2015 e, o que é mais notável ainda, propondo-nos substancialmente mais do mesmo. Anestesiados, descrentes, derrotados ou seja lá qual tenha sido a razão, uma maioria relativa de portugueses predispôs-se a continuar a ser governada pelos mesmos que não podiam ter deixado saudades em ninguém. Mas foi então que António Costa congeminou o seu golpe florentino, cuja legitimidade política democrática ainda hoje, e mal-grado os bons resultados da governação, me parece duvidosa. Mas, afinal, o que este ano e meio demonstrou é que o que nasce torto às vezes endireita-se. E, com os resultados à vista, não consigo imaginar um regresso auspicioso para a dupla que se ria no Parlamento.

Certo é que o Governo e os seus parceiros têm razões para andar de cabeça levantada e a oposição de crista caída. E se alguma coisa há de irónico aqui no meio é que alguns dos resultados económicos conseguidos pelo actual Governo — como a descida do défice — representam aquilo que PSD e CDS mais gostariam de ter conseguido no seu consulado, mas, simultâneamente, representam também aquilo a que os parceiros de extrema-esquerda do Governo mais torcem o nariz, pois que para eles tudo o que seja controlo da despesa pública está errado.

Pobres PSD e CDS, se porventura conseguissem indispor de tal maneira Mário Centeno que ele batesse com a porta!

E assim, enquanto o país tenta seguir o rasto dos dez bis enviados para o paraíso, enquanto empresários e investidores sondam o novo ar dos tempos em busca de oportunidades, o que faz a oposição? Queixa-se de uma patética “claustrofobia democrática”, faz queixas ao Presidente da República e impõe, sob ameaça de pedirem exílio político, uma comissão cujo grande objecto é o de ler e divulgar os SMS do ministro das Finanças e prolongar indefinidamente uma história que de há muito é passado inútil, que está mais do que compreendida e que não diz nada a ninguém. Pobres PSD e CDS, se porventura conseguissem indispor de tal maneira Mário Centeno que ele batesse com a porta!

Podem perguntar-me: mas o que poderia a oposição fazer de diferente, numa conjuntura em que todas as notícias económicas são favoráveis ao Governo? Bom, eu não faço política e, por isso, desde logo, é-me estranha a ideia de que aquilo que são boas notícias para o país possam ser más notícias para os meus interesses políticos. Mas, enfim, há que viver com isso e fazer boa cara às boas/más notícias. Julgo que é possível, mesmo assim, fazer melhor oposição do que simplesmente querer vasculhar os SMS do ministro das Finanças. Desde logo, temos aquilo para que Teodora Cardoso chamou a atenção: o “milagre” da redução do défice público em 2016 não é sustentável no tempo. Porque assenta em duas razões cuja repetição não é recomendável: mais um perdão fiscal, absolutamente indecente para com os contribuintes cumpridores, e o abandono do investimento público em benefício da satisfação da clientela pública. Eu sei que é difícil ao PSD e ao CDS pegarem nesse tema, eles que nada fizeram pela reforma do Estado e da estrutura ruinosa de funcionamento do Estado quando foram governo. Tivemos duas oportunidades para o fazer nos últimos cinquenta anos: em estado de abundância (com os governos de Cavaco Silva) e em estado de necessidade (com o governo PSD/CDS/troika). Da primeira vez, não o fizemos por falta de visão; da segunda vez, por falta de coragem. E agora não o faremos certamente porque a actual maioria assenta o seu apoio exactamente na clientela do Estado. E, todavia, não direi desde há décadas, mas sim desde há séculos, que esse é o principal problema português, razão de todas as nossas falências e de muito do nosso atraso: o custo sufocante que o aparelho de Estado exige à economia e a desigualdade de competir ou apenas de sobreviver, num jogo viciado onde os funcionários ou os protegidos do Estado gozam de direitos, privilégios e regalias que não estão ao alcance dos demais. Para não ir mais longe, com a actual maioria, os trabalhadores do Estado já recuperaram os seus vencimentos e regalias, já reconquistaram a semana de 35 horas, muitos alcançaram o direito de se reformarem com pensão completa aos 60 anos e 120 mil “precários” estão agora na fila da frente de todas as atenções para serem integrados no sagrado “quadro”. Mas, “cá fora”, trabalha-se 40 ou mais horas por semana sem direito a pagamento de horas extraordinárias, os ordenados são os mesmos de há dez anos (ou menos ainda, quando foram reduzidos para evitar a falência das empresas), a reforma é aos 66 anos e 3 meses e há quem seja precário há décadas. Tudo estaria bem se as regalias dos primeiros se sustentassem com uma carga fiscal normal e não com uma carga fiscal “brutal”. Se não fossem os segundos a pagar as regalias dos primeiros, das quais eles próprios não gozam.

Mudar este estado de coisas, ousar propor uma alternativa fundada na primazia da sociedade civil sobre a sociedade do Estado, fundada no mérito e não nos direitos adquiridos, pensar longe e largo em lugar de se consumir na conjuntura, deveria ser o caderno de encargos de uma oposição que quisesse pôr as pessoas a pensar. Mas eles preferem lutar pela cabeça de Mário Centeno, convencidos de que assim conseguirão apagar os resultados económicos que comparam com os seus e os envergonham. Auguro-lhes um grande desgosto.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

As elites bem falantes ou as noções básicas de democracia

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/05/2016)

AUTOR

                                        Miguel Sousa Tavares

Eu sei, o assunto — o Acordo Ortográfico de 1990 é uma chatice, ninguém está para se preocupar com ele e dá algum trabalho tentar perceber melhor do que se trata. E também sei, mais de um quarto de século decorrido (!), que o destino já está traçado de há muito e a batalha perdida, por natureza: manda quem pode, obedece quem deve. Todavia, porque estas coisas da língua pátria e da pátria não me são indiferentes, e para memória futura, volto ao assunto, agora que ele voltou à actualidade pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa.

Quando o acordo foi tornado público, eu fui um dos subscritores do primeiro manifesto contra o AO, assinado entre, vários outros, por Marcelo. Mais de vinte anos depois, entre adormecimentos e ressurreições, escutados e voltados a escutar todos os argumentos de ambos os lados (sobretudo, os argumentos contra, porque do outro lado se dispensaram soberbamente de contra-argumentar), a minha posição de início mantém-se inalterável: não sei quem pediu o acordo, não sei que necessidades reais ele veio satisfazer, não sei em que aproveita a Portugal e à língua portuguesa, não sei o que o justificou, o que o permitiu e o que o fez impor-se à força. Nas inúmeras vezes, aqui ou no Brasil, em que fui chamado a pronunciar-me sobre ele, o que sempre disse e mantenho, hoje mais a sério do que a brincar, foi que o AO nasceu porque um restrito grupo de académicos portugueses queria fazer umas viagens à borla ao Brasil e o pretexto encontrado foi o de negociar um acordo ortográfico — que os brasileiros nunca tinham pedido, nunca tinham sugerido e nunca tinham imaginado. E, por isso, os nossos autonomeados embaixadores da língua chegaram lá e disseram aos brasileiros: “Estamos aqui para fazer um AO em que todos os falantes de português passarão a escrever como vocês”. Um acto colonial ao contrário.

Em 2006, e subitamente, o AO, então conhecido pelo nome de Aborto Ortográfico, foi ressuscitado por um governo socialista e, sem mais, mandado entrar em vigor rapidamente. E porque para tal faltavam as ratificações necessárias, conforme o próprio acordo previa, a minoria militante alterou unilateralmente as regras, dizendo que ele se tornava vinculativo desde que apenas três países falantes de português o ratificassem. É essa golpada política que torna o AO juridicamente inexistente. À data de hoje, nem Angola nem Moçambique o ratificaram e o Brasil, que suspendeu durante dois anos a sua entrada em vigor, vive numa espécie de limbo jurídico em que ninguém sabe se o aplica conforme as suas regras ou apenas na parte que lhe interessa e que não o obriga a mudar o que quer que seja na sua grafia (entre outras coisas, o AO não previu que, na situação actual do Brasil, o único tema que lhes interessa seja traduzido por essa palavra tão portuguesa que é o impeachement…). Com a súbita ressurreição de 2006, o AO começou então a ser discutido mais a sério. Do lado dos oponentes, produziu-se uma larga série de textos, conferências e até livros, todos demonstrando, ou pretendendo demonstrar, a irracionalidade linguística, a nulidade jurídica e a falsidade dos argumentos sobre as alegadas vantagens do acordo. Do lado oposto, nada: sempre umas vagas e repetitivas declarações do professor Malaca Casteleiro e do doutor Carlos Reis, cuja argumentação, na essência, pode ser resumida a duas palavras: “Porque sim”. Fizeram-se abaixo-assinados, petições à Assembleia da República e até se conseguiu que esta nomeasse uma comissão, dirigida pelo deputado Michael Seufert, para analisar o bom ou mau fundamento dos opositores do AO. A comissão concluiu pela absoluta razão destes, dizendo que o AO não podia estar em vigor juridicamente, que fora imposto ao país sem nenhuma discussão prévia e séria e que não se demonstrava quaisquer das vantagens que ele aduzia: não unificou a grafia da língua, antes a dividiu mais — entre países que escrevem segundo a grafia anterior, os que escrevem segundo a grafia do acordo (praticamente só Portugal), e o Brasil, que escreve como muito bem entende; separou, em Portugal, a grafia por gerações, coincidindo várias que escrevem com regras diferentes; e, quanto à tão invocada unificação do mercado editorial, seguindo as novas regras e em todos os países falantes de português, revelou-se a ficção que qualquer ser minimamente inteligente esperaria que fosse (e eu sou disso exemplo concreto: tenho cinco livros editados no Brasil e, por expressa vontade minha, nenhum deles de acordo com a grafia brasileira ou do AO, sem que tal me tenha prejudicado minimamente, em termos de mercado).

É arrepiante que, por vontade de uma vanguarda autonomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua.

No “DN” de anteontem, li um artigo do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em defesa do AO, que é eloquente da leviandade com que uma verdadeira questão de soberania nacional foi e é tratada por quem pode e manda. Com o devido pedido prévio de desculpas, eu afirmo que esse texto é um chorrilho de asneiras filhas da ignorância, de falsas verdades, de banalidades argumentativas e de uma arrogância intelectual, expoente de um certo terrorismo académico que tolhe e verga os políticos às suas ameaças. Mas o rei vai nu. Toda a abundante produção de razões que contrariam as apregoadas vantagens do AO é reduzida por ele a um rol de “queixas, queixumes, remoques ou piadas” — o que quer dizer que não leu nada nem se deu ao trabalho de pensar em nenhum dos argumentos da parte contrária. E esta — a parte contrária é arrumada por ele na categoria de “velhos” ou então de “uma certa elite bem pensante (incapaz) de terçar armas por coisas mais substanciais que verdadeiramente interessam a Portugal”. Seria caso para responder que não se percebe, então, por que razão o jovem Bacelar Gouveia perde, ele próprio, tempo a terçar armas pelo AO e não por coisas bem mais importantes… Mas a acusação é notável: a tal “elite bem pensante” é apenas a larguíssima maioria dos principais interessados e utilizadores da língua, que não foram nunca consultados sobre o assunto e que rejeitam o AO: escritores, jornalistas, professores, editores. E que, como disse o presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, foram submetidos à força por um “acto despótico e ditatorial”, às mãos de outra elite, que não sei se é bem pensante ou apenas bem mandante. Por isso, pode Bacelar Gouveia, como “argumento” final, afirmar que a aceitação do AO “será uma questão de tempo” — como todas as imposições ditatoriais. Porque, embora vivamos em democracia, a nossa classe política está aqui tolhida pelo medo de enfrentar o terrorismo académico e pela chatice de ter de se ocupar de um assunto “menor”, que (mal) julgavam resolvido. Mas é sem dúvida arrepiante que, por vontade de uma vanguarda autonomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua. É uma lição de democracia para não esquecer.

Para terminar, não resisto a dizer ao constitucionalista que usar argumentos tão estafados como o de Farmácia com F e não ph para tentar demonstrar as vantagens dos acordos ortográficos, é apenas ridículo: a palavra não tem origem na língua portuguesa nem latina, mas sim grega e por isso é que em línguas tão despiciendas como a inglesa e francesa se continua a escrever com ph. E se quer realmente saber como nem sempre os acordos ortográficos contribuem para enriquecer a língua, recomendo-lhe a releitura de Camilo: aí poderá constatar como, vários acordos e século e meio depois, a língua portuguesa se empobreceu.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)