Tanto mar… mas a maré inverteu-se

(Por José Goulão, in AbrilAbril, 04/05/2023)

Num mundo a preto e branco, partilhado entre um paradisíaco “jardim” ameaçado e uma tenebrosa “selva” sem escrúpulos, quem não está connosco está contra nós. E Lula, não haja dúvidas, está contra nós.

Uma primeira nota antes de entrar na matéria substantiva.

A primeira visita de Estado do presidente brasileiro Luiz Inácio da Silva (Lula) foi aos Estados Unidos para se encontrar com o decrépito homólogo Joseph Biden, sinalizando assim uma política de continuidade em relação à tradição de Brasília. Ou, pelo menos, a intenção de não agitar imediatamente as águas no relacionamento com o sempre ameaçador vizinho do Norte.

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O Ocidente visto do mundo

(Boaventura Sousa Santos, in Diário de Notícias, 05/03/2023)

Entre 2011 e 2016 realizei um projeto de investigação financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Intitulava-se ALICE – Espelhos Estranhos, Lições imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo. Nesse projeto, tentei mostrar que a Europa, depois de cinco séculos a procurar ensinar o mundo, se confrontava com um mundo que não tomava em grande conta as lições da Europa e que, em face disso, em vez de propor isolacionismo progressivo, entendia que a Europa devia disponibilizar-se a aprender com o mundo e usar essa aprendizagem para resolver alguns dos seus problemas. A guerra da Ucrânia veio mostrar que as propostas da minha investigação de pouco serviram aos políticos europeus, uma experiência que não é nova para os cientistas sociais.

Em outubro de 2022, oito meses depois da invasão da Ucrânia, um conhecido instituto da Universidade de Cambridge harmonizou e fundiu 30 inquéritos globais sobre atitudes em relação aos EUA, à China e à Rússia. Os inquéritos cobriam 137 países do mundo e 97% da população mundial, tendo sido realizados em 75 países depois da invasão da Ucrânia. O resultado principal deste estudo é que o mundo está dividido entre uma pequena minoria da população do mundo, que tem uma opinião positiva sobre os EUA e uma atitude negativa sobre a China e a Rússia (1,2 mil milhões de pessoas), e uma grande maioria em que o inverso ocorre (6,3 mil milhões). Embora o estudo se refira aos EUA, não é arriscado especular que, sobretudo depois da guerra na Ucrânia, a Europa seja associada aos EUA ainda mais intensamente que antes. A essa associação podemos chamar o Ocidente. Isto significa que, se tomarmos o mundo como unidade de análise, o Ocidente está mais isolado do que nunca, e isso explica que a grande maioria dos países do mundo se tenha recusado a aplicar sanções à Rússia decretadas pelos EUA e UE. É importante conhecer as razões deste facto. Vejamos algumas delas.

1. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, S. Jaishankar, afirmou recentemente numa entrevista que “a Europa tem de deixar de pensar que os problemas da Europa são os problemas do mundo e começar a pensar que os problemas do mundo não são os problemas da Europa“. O mundo do sul global enfrenta uma série de desafios a que o Ocidente não tem dado qualquer prioridade para além da exuberância retórica, sejam eles as consequências da pandemia, os juros da dívida externa, os impactos da crise climática, a pobreza, a escassez de alimentos, a seca e os altos preços da energia. Durante a pandemia, os países do sul global insistiram em vão que as grandes empresas de produção de vacinas do norte global abrissem mão dos direitos de patente de modo a permitir a ampla e barata vacinação das suas populações. Não admira que os embaixadores da Europa e dos EUA não tenham agora qualquer credibilidade ou autoridade para exigir a estes países que apliquem sanções à Rússia. Tanto mais que, no auge da crise pandémica, a ajuda que receberam veio sobretudo da Rússia e da China.

“Não é arriscado especular que, sobretudo depois da guerra na Ucrânia, a Europa seja associada aos EUA ainda mais intensamente que antes. A essa associação podemos chamar o Ocidente. Isto significa que, se tomarmos o mundo como unidade de análise, o Ocidente está mais isolado do que nunca…”
© Facultada pela Câmara Municipal de Zaporíjia / EPA

2. A mesma falta de credibilidade e autoridade ocorre quando os países do sul global são intimados a mostrar respeito pela “ordem internacional baseada em regras”. Durante décadas (senão séculos) o Ocidente impôs unilateralmente as suas regras, arrogou-se o privilégio de as declarar universais, ao mesmo tempo que se reservou o direito de as suspender e violar sempre que isso lhe conveio. Eis algumas perguntas que ocorrem a estes países. Quantos países foram invadidos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, da Jugoslávia ao Iraque, da Líbia à Síria? Por que razão vivem enterrados em prisões ou em exílios todos os que ousam pôr a nu o abismo entre os princípios e as práticas, como ilustram os casos de Julian Assange e de Edward Snowden? Por que é que o ouro da Venezuela continua retido nos bancos do Reino Unido (e não só), tal como as reservas do Afeganistão continuam congeladas enquanto a população afegã morre de fome? Ninguém imagina na Europa o ridículo em que cai o Secretário-Geral da NATO quando é ouvido no sul global a invetivar a Rússia por usar o gaz e petróleo como arma de guerra, quando há tanto tempo muitos países vivem sob a arma de guerra do sistema financeiro global controlado pelos EUA (sanções, embargos, restrições).

Finalmente, em 8 de fevereiro passado, o respeitado jornalista norte-americano Seymour Hersh revelou com informação concludente que foram os EUA quem, de facto, planeou, a partir de dezembro de 2021, a sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2. Se assim foi, estamos perante um crime hediondo que configura um ato de terrorismo de Estado que não só causa um irreparável desastre ambiental como cria um precedente imprevisível para todas as infraestruturas submarinas internacionais. Deveria ser do máximo interesse para os EUA averiguar o que se passou. Infelizmente, sobre este ato terrorista pesa o mais profundo silêncio.

3. A memória dos países do sul global não é tão curta quanto pensam os diplomatas ocidentais. Muitos desses países estiveram sujeitos ao colonialismo europeu, o qual, ao longo do século XX, contou quase sempre com a cumplicidade e apoio dos EUA. A solidariedade para com os movimentos de libertação veio da China e da Rússia (então União Soviética) e esse apoio continuou em muitos casos depois da independência. Quem lhes pede agora solidariedade contra a Rússia e a China foi no passado hostil às suas aspirações, ou esteve ausente.

4. Estamos a entrar numa segunda Guerra Fria, desta vez entre os EUA e a China, e, de facto, o envolvimento dos EUA na guerra da Ucrânia visa, entre outras coisas, enfraquecer o mais importante aliado da China. Os países do sul global recordam-se da primeira Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, e sabem, por experiência, que, com algumas exceções logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o alinhamento incondicional com um dos campos não os beneficiou; pelo contrário, a Guerra Fria foi, para eles, muitas vezes quente. Por isso, em 1955, 29 países da Ásia e da África (alguns ainda colónias) e a Jugoslávia se reuniram em Bandung e criaram, a partir de 1961, o Movimento dos Não-Alinhados. Não é por coincidência que a chamada para um novo Movimento dos Não-Alinhados percorre hoje todo o sul global e está de facto a emergir sob novas formas.

Sociólogo


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Assim, o Brasil não vai dar certo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 27/01/2023)

Miguel Sousa Tavares

Sai o general Tapioca, entra o general Alcazar; sai o general Alcazar, entra o general Tapioca: por estes dias, ainda nem um mês se completou sobre a posse de Lula da Silva, o Brasil remete-nos para a descrição que Hergé fez de um qualquer país da América do Sul há mais de 50 anos. Poucas semanas depois de ter sido nomeado, o Comandante-Chefe do Exército, general Arruda, foi demitido para dar o lugar ao general Paiva. A separá-los, duas frases que fizeram toda a diferença: enquanto o primeiro classificou como “manifestantes em democracia” os bolsonaristas acampados em frente ao quartel-general de Brasília, de onde partiram para o assalto à Praça dos Três Poderes, em 8 de Janeiro, o segundo declarou simplesmente uma coisa pacífica em qualquer democracia, que havia que respeitar o resultado das urnas. Porém, as coisas estão longe de ser tão pacíficas assim: comentando a troca de comandos, um tenente-coronel comentou nas redes sociais: “Saiu um patriota, entrou um prostituto do ladrão. Agora venham-me punir, mas muitos outros pensam o mesmo que eu.” O “ladrão”, bem entendido, é como os bolsonaristas — metade dos brasileiros — se referem a Lula, e, de facto, calcula-se que pelo menos 70% dos oficiais, em especial os de média patente, pensem o mesmo que aquele oficial, a quem nada aconteceu até à data.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>

O Brasil tem as segundas maiores Forças Armadas das Américas, só atrás dos Estados Unidos. São 360 mil efectivos profissionais, mais 1,6 milhões do SMO e cinco mil generais na reserva. Todos os profissionais gozam de um catálogo imenso de privilégios de toda a ordem, a que, no tempo de Bolsonaro, juntaram uns milhares de cargos públicos em acumulação e de que eles agora estão a ser dispensados. Esta imensa força militar não tem, para além da patrulha da imensa fronteira norte contra o tráfico de droga, objectivos que a justifiquem: o Brasil não tem nem inimigos externos nem alianças militares de que faça parte. Mas tem, em contrapartida, uma tradição, ainda recente e traumática, de intervenção militar no Governo do país. Para os militares, toda a esquerda representa uma ameaça comunista e para a maioria dos brasileiros as Forças Armadas são a instituição mais fiável do país: por isso os bolsonaristas acampavam em frente aos quartéis, pedindo aos militares que interviessem para reverter pelas armas a vitória de Lula nas urnas. Este é parte do ambiente político em que Lula é chamado a começar a governar.

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Na semana passada, ele reuniu no Palácio do Planalto um curioso grupo de trabalho: dois ministros, três dirigentes empresariais de peso e os chefes dos três ramos das Forças Armadas. O objectivo era demonstrar que os empresários estavam com a normalização democrática e exigir o mesmo aos militares, designadamente a punição disciplinar dos envolvidos nos acontecimentos de 8 de Janeiro. A resposta dos militares foi um “sim, mas”, que na prática não vai significar coisa alguma. Em contrapartida, levavam no bolso a factura a pagar: um submarino nuclear para a Marinha, novos caças para a Força Aérea e tanques para o Exército. Uns biliões a mais para um Governo que diz ter herdado uma tesouraria arruinada. Cautelosa ou esperançosa, a imprensa brasileira finge que ficou tudo bem. Mas não ficou: basta falar com as pessoas no Brasil para perceber que esta normalidade está colada com cuspo. As divisões permanecem irredutíveis e insanáveis, o benefício da dúvida dado ao novo Governo pelos seus adversários é zero e este parece apostado em dar-lhes razão, cavando ainda mais as divisões e repetindo erros passados.

Longe de começar a tentar serenar os ânimos e reaproximar um país dividido ao meio, Lula usou o discurso de posse e o discurso em cima dos acontecimentos de 8 de Janeiro — ambos escritos — para, em tom revanchista e ainda de campanha, atacar quem já fora vencido nas urnas. Na própria campanha, em que precisava de atrair eleitores do centro, não se poupou a excessos de linguagem, como o de chamar aos herdeiros de uma herança “bando de parasitas que sacam dinheiro enquanto o povo está passando fome”. E esta semana, na sua primeira visita ao estrangeiro, na Argentina, prometeu solidariedade, ajuda financeira e “carinho” a Cuba e Venezuela (enquanto o povo brasileiro está passando fome…). Para garantir a necessária maioria no Congresso recorreu ao inevitável ‘centrão’, formando um Governo com 37 ministros, alguns dos quais com processos pendentes por corrupção e alguns outros que fatalmente acabarão a conspirar contra ele dentro do próprio Governo. Mas também tem aliados, e alguns que não se recomendam. Um deles é o presidente do Supremo Tribunal Federal, Alexandre Moraes, um incendiário à solta. Ultrapassando sem freio os seus poderes constitucionais e qualquer disfarce de isenção, o presidente do STF manda investigar, prender, derrubar bloqueios em estradas e tudo o mais que lhe vem à cabeça, usurpando os poderes do Ministério Público e do próprio Governo e tratando antecipadamente por “terroristas” e “criminosos” aqueles que talvez um dia lhe caiba julgar — afinal, a única função que lhe compete. O outro aliado de Lula que não se recomenda (e esta é uma intuição puramente pessoal) é a sua nova mulher, Rosângela, dita Janja, que ele conheceu quando estava preso em Curitiba. Janja tem quase 40 anos a menos que Lula e, mesmo que tentasse, não conseguiria disfarçar a sua ambição, que vai muito para além de ser a primeira-dama do Brasil. Ela não é a mulher por detrás dele, é já a mulher ao lado dele e palpita-me que logo será a mulher à frente dele. Mas há um ditado popular brasileiro que diz que “o que mata velho é queda, vento frio pelas costas ou mulher quente pela frente”. Agora, na sua segunda visita ao estrangeiro, Lula irá aos Estados Unidos, e aí, sim, está o seu grande seguro de vida contra um golpe militar e talvez alguns conselhos de bom senso que Joe Biden lhe possa dar.

2 Pede Augusto Santos Silva que julguemos os governantes pelos resultados e não pela “roupa suja”. É um pedido compreensível, mas é também insustentável. Se nos rendêssemos a essa lógica, acabaría­mos sem pinga de vergonha própria a votar em quem também não teria pinga de vergonha sua. A razão pela qual não nos devem bastar os resultados, mas também que quem nos governa seja gente de carácter e princípios, é porque, no limite, não podemos aceitar a doutrina do “roubo, mas faço”, imortalizada pelo político brasileiro Ademar de Barros. Se bem que não seja bom exemplo, por via dos resultados, custa a acreditar que Pedro Nuno Santos tenha precisado de um mês para se lembrar de que, afinal, tinha autorizado o pagamento de 500 mil euros a Alexandra Reis: sendo mentira, é grave; sendo verdade, é sintomático de uma forma de governar que revela um desprezo profundo pelos contribuintes — e nada disso tem que ver com “roupa suja”. O mesmo se diga dos sucessivos contorcionismos de João Gomes Cravinho para evitar dizer aquilo que era a única coisa exigível que dissesse: “Sim, eu tomei conhecimento da derrapagem do custo das obras do Hospital Militar e nada fiz para as evitar. E depois ainda fui nomear o seu responsável para presidir a uma empresa pública.” Em vez disso, ditou para a acta esta pérola de malabarismo político: “Em nenhuma circunstância se pode imaginar que, não dizendo nada, estava tacitamente aprovado.” Governar assim é fácil, dar-se ao respeito é que é difícil.

3 Quando não são os políticos a enterrarem-se a si próprios, é a frutuosa associação entre a PJ e o “Correio da Manhã” a fazê-lo. Quando são inocentes ou culpados, apenas suspeitos ou nem isso, é a incontinência populista do Ministério Público a crucificá-los todos por antecipação na praça pública. Depois, as investigações, abertas por vezes sem qualquer razão de ser e anunciadas aos quatro ventos, arrastam-se sem destino útil durante anos, liquidando a honra e a vida profissional dos inocentes e dissolvendo no nevoeiro o nome dos culpados, e, na abertura do ano judicial, a PGR queixa-se protocolarmente da falta de meios para concluir todos os inquéritos que os seus serviços gostam de anunciar para os títulos da imprensa. Ou avançam-se outras desculpas, como a que deu o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Manuel Ramos Soares: os processos envolvendo políticos arrastam-se longamente porque eles recorrem a advogados “mais competentes”. Ou seja, tivessem eles advogados incompetentes ou defensores oficiosos nomeados pelo tribunal, e que os defendessem mal, e o Ministério Público, vejam lá, trabalharia melhor e mais depressa.

PS: No meu último texto, referindo as câmaras municipais para as quais Luís Montenegro trabalhou, referi Espinho e Ovar, quando foram, sim, Espinho e Vagos. Pelo erro, peço desculpa à edilidade de Ovar e em especial ao seu presidente, Salvador Malheiro.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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