O Ocidente visto do mundo

(Boaventura Sousa Santos, in Diário de Notícias, 05/03/2023)

Entre 2011 e 2016 realizei um projeto de investigação financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Intitulava-se ALICE – Espelhos Estranhos, Lições imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo. Nesse projeto, tentei mostrar que a Europa, depois de cinco séculos a procurar ensinar o mundo, se confrontava com um mundo que não tomava em grande conta as lições da Europa e que, em face disso, em vez de propor isolacionismo progressivo, entendia que a Europa devia disponibilizar-se a aprender com o mundo e usar essa aprendizagem para resolver alguns dos seus problemas. A guerra da Ucrânia veio mostrar que as propostas da minha investigação de pouco serviram aos políticos europeus, uma experiência que não é nova para os cientistas sociais.

Em outubro de 2022, oito meses depois da invasão da Ucrânia, um conhecido instituto da Universidade de Cambridge harmonizou e fundiu 30 inquéritos globais sobre atitudes em relação aos EUA, à China e à Rússia. Os inquéritos cobriam 137 países do mundo e 97% da população mundial, tendo sido realizados em 75 países depois da invasão da Ucrânia. O resultado principal deste estudo é que o mundo está dividido entre uma pequena minoria da população do mundo, que tem uma opinião positiva sobre os EUA e uma atitude negativa sobre a China e a Rússia (1,2 mil milhões de pessoas), e uma grande maioria em que o inverso ocorre (6,3 mil milhões). Embora o estudo se refira aos EUA, não é arriscado especular que, sobretudo depois da guerra na Ucrânia, a Europa seja associada aos EUA ainda mais intensamente que antes. A essa associação podemos chamar o Ocidente. Isto significa que, se tomarmos o mundo como unidade de análise, o Ocidente está mais isolado do que nunca, e isso explica que a grande maioria dos países do mundo se tenha recusado a aplicar sanções à Rússia decretadas pelos EUA e UE. É importante conhecer as razões deste facto. Vejamos algumas delas.

1. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, S. Jaishankar, afirmou recentemente numa entrevista que “a Europa tem de deixar de pensar que os problemas da Europa são os problemas do mundo e começar a pensar que os problemas do mundo não são os problemas da Europa“. O mundo do sul global enfrenta uma série de desafios a que o Ocidente não tem dado qualquer prioridade para além da exuberância retórica, sejam eles as consequências da pandemia, os juros da dívida externa, os impactos da crise climática, a pobreza, a escassez de alimentos, a seca e os altos preços da energia. Durante a pandemia, os países do sul global insistiram em vão que as grandes empresas de produção de vacinas do norte global abrissem mão dos direitos de patente de modo a permitir a ampla e barata vacinação das suas populações. Não admira que os embaixadores da Europa e dos EUA não tenham agora qualquer credibilidade ou autoridade para exigir a estes países que apliquem sanções à Rússia. Tanto mais que, no auge da crise pandémica, a ajuda que receberam veio sobretudo da Rússia e da China.

“Não é arriscado especular que, sobretudo depois da guerra na Ucrânia, a Europa seja associada aos EUA ainda mais intensamente que antes. A essa associação podemos chamar o Ocidente. Isto significa que, se tomarmos o mundo como unidade de análise, o Ocidente está mais isolado do que nunca…”
© Facultada pela Câmara Municipal de Zaporíjia / EPA

2. A mesma falta de credibilidade e autoridade ocorre quando os países do sul global são intimados a mostrar respeito pela “ordem internacional baseada em regras”. Durante décadas (senão séculos) o Ocidente impôs unilateralmente as suas regras, arrogou-se o privilégio de as declarar universais, ao mesmo tempo que se reservou o direito de as suspender e violar sempre que isso lhe conveio. Eis algumas perguntas que ocorrem a estes países. Quantos países foram invadidos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, da Jugoslávia ao Iraque, da Líbia à Síria? Por que razão vivem enterrados em prisões ou em exílios todos os que ousam pôr a nu o abismo entre os princípios e as práticas, como ilustram os casos de Julian Assange e de Edward Snowden? Por que é que o ouro da Venezuela continua retido nos bancos do Reino Unido (e não só), tal como as reservas do Afeganistão continuam congeladas enquanto a população afegã morre de fome? Ninguém imagina na Europa o ridículo em que cai o Secretário-Geral da NATO quando é ouvido no sul global a invetivar a Rússia por usar o gaz e petróleo como arma de guerra, quando há tanto tempo muitos países vivem sob a arma de guerra do sistema financeiro global controlado pelos EUA (sanções, embargos, restrições).

Finalmente, em 8 de fevereiro passado, o respeitado jornalista norte-americano Seymour Hersh revelou com informação concludente que foram os EUA quem, de facto, planeou, a partir de dezembro de 2021, a sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2. Se assim foi, estamos perante um crime hediondo que configura um ato de terrorismo de Estado que não só causa um irreparável desastre ambiental como cria um precedente imprevisível para todas as infraestruturas submarinas internacionais. Deveria ser do máximo interesse para os EUA averiguar o que se passou. Infelizmente, sobre este ato terrorista pesa o mais profundo silêncio.

3. A memória dos países do sul global não é tão curta quanto pensam os diplomatas ocidentais. Muitos desses países estiveram sujeitos ao colonialismo europeu, o qual, ao longo do século XX, contou quase sempre com a cumplicidade e apoio dos EUA. A solidariedade para com os movimentos de libertação veio da China e da Rússia (então União Soviética) e esse apoio continuou em muitos casos depois da independência. Quem lhes pede agora solidariedade contra a Rússia e a China foi no passado hostil às suas aspirações, ou esteve ausente.

4. Estamos a entrar numa segunda Guerra Fria, desta vez entre os EUA e a China, e, de facto, o envolvimento dos EUA na guerra da Ucrânia visa, entre outras coisas, enfraquecer o mais importante aliado da China. Os países do sul global recordam-se da primeira Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, e sabem, por experiência, que, com algumas exceções logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o alinhamento incondicional com um dos campos não os beneficiou; pelo contrário, a Guerra Fria foi, para eles, muitas vezes quente. Por isso, em 1955, 29 países da Ásia e da África (alguns ainda colónias) e a Jugoslávia se reuniram em Bandung e criaram, a partir de 1961, o Movimento dos Não-Alinhados. Não é por coincidência que a chamada para um novo Movimento dos Não-Alinhados percorre hoje todo o sul global e está de facto a emergir sob novas formas.

Sociólogo


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Assim, o Brasil não vai dar certo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 27/01/2023)

Miguel Sousa Tavares

Sai o general Tapioca, entra o general Alcazar; sai o general Alcazar, entra o general Tapioca: por estes dias, ainda nem um mês se completou sobre a posse de Lula da Silva, o Brasil remete-nos para a descrição que Hergé fez de um qualquer país da América do Sul há mais de 50 anos. Poucas semanas depois de ter sido nomeado, o Comandante-Chefe do Exército, general Arruda, foi demitido para dar o lugar ao general Paiva. A separá-los, duas frases que fizeram toda a diferença: enquanto o primeiro classificou como “manifestantes em democracia” os bolsonaristas acampados em frente ao quartel-general de Brasília, de onde partiram para o assalto à Praça dos Três Poderes, em 8 de Janeiro, o segundo declarou simplesmente uma coisa pacífica em qualquer democracia, que havia que respeitar o resultado das urnas. Porém, as coisas estão longe de ser tão pacíficas assim: comentando a troca de comandos, um tenente-coronel comentou nas redes sociais: “Saiu um patriota, entrou um prostituto do ladrão. Agora venham-me punir, mas muitos outros pensam o mesmo que eu.” O “ladrão”, bem entendido, é como os bolsonaristas — metade dos brasileiros — se referem a Lula, e, de facto, calcula-se que pelo menos 70% dos oficiais, em especial os de média patente, pensem o mesmo que aquele oficial, a quem nada aconteceu até à data.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>

O Brasil tem as segundas maiores Forças Armadas das Américas, só atrás dos Estados Unidos. São 360 mil efectivos profissionais, mais 1,6 milhões do SMO e cinco mil generais na reserva. Todos os profissionais gozam de um catálogo imenso de privilégios de toda a ordem, a que, no tempo de Bolsonaro, juntaram uns milhares de cargos públicos em acumulação e de que eles agora estão a ser dispensados. Esta imensa força militar não tem, para além da patrulha da imensa fronteira norte contra o tráfico de droga, objectivos que a justifiquem: o Brasil não tem nem inimigos externos nem alianças militares de que faça parte. Mas tem, em contrapartida, uma tradição, ainda recente e traumática, de intervenção militar no Governo do país. Para os militares, toda a esquerda representa uma ameaça comunista e para a maioria dos brasileiros as Forças Armadas são a instituição mais fiável do país: por isso os bolsonaristas acampavam em frente aos quartéis, pedindo aos militares que interviessem para reverter pelas armas a vitória de Lula nas urnas. Este é parte do ambiente político em que Lula é chamado a começar a governar.

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Na semana passada, ele reuniu no Palácio do Planalto um curioso grupo de trabalho: dois ministros, três dirigentes empresariais de peso e os chefes dos três ramos das Forças Armadas. O objectivo era demonstrar que os empresários estavam com a normalização democrática e exigir o mesmo aos militares, designadamente a punição disciplinar dos envolvidos nos acontecimentos de 8 de Janeiro. A resposta dos militares foi um “sim, mas”, que na prática não vai significar coisa alguma. Em contrapartida, levavam no bolso a factura a pagar: um submarino nuclear para a Marinha, novos caças para a Força Aérea e tanques para o Exército. Uns biliões a mais para um Governo que diz ter herdado uma tesouraria arruinada. Cautelosa ou esperançosa, a imprensa brasileira finge que ficou tudo bem. Mas não ficou: basta falar com as pessoas no Brasil para perceber que esta normalidade está colada com cuspo. As divisões permanecem irredutíveis e insanáveis, o benefício da dúvida dado ao novo Governo pelos seus adversários é zero e este parece apostado em dar-lhes razão, cavando ainda mais as divisões e repetindo erros passados.

Longe de começar a tentar serenar os ânimos e reaproximar um país dividido ao meio, Lula usou o discurso de posse e o discurso em cima dos acontecimentos de 8 de Janeiro — ambos escritos — para, em tom revanchista e ainda de campanha, atacar quem já fora vencido nas urnas. Na própria campanha, em que precisava de atrair eleitores do centro, não se poupou a excessos de linguagem, como o de chamar aos herdeiros de uma herança “bando de parasitas que sacam dinheiro enquanto o povo está passando fome”. E esta semana, na sua primeira visita ao estrangeiro, na Argentina, prometeu solidariedade, ajuda financeira e “carinho” a Cuba e Venezuela (enquanto o povo brasileiro está passando fome…). Para garantir a necessária maioria no Congresso recorreu ao inevitável ‘centrão’, formando um Governo com 37 ministros, alguns dos quais com processos pendentes por corrupção e alguns outros que fatalmente acabarão a conspirar contra ele dentro do próprio Governo. Mas também tem aliados, e alguns que não se recomendam. Um deles é o presidente do Supremo Tribunal Federal, Alexandre Moraes, um incendiário à solta. Ultrapassando sem freio os seus poderes constitucionais e qualquer disfarce de isenção, o presidente do STF manda investigar, prender, derrubar bloqueios em estradas e tudo o mais que lhe vem à cabeça, usurpando os poderes do Ministério Público e do próprio Governo e tratando antecipadamente por “terroristas” e “criminosos” aqueles que talvez um dia lhe caiba julgar — afinal, a única função que lhe compete. O outro aliado de Lula que não se recomenda (e esta é uma intuição puramente pessoal) é a sua nova mulher, Rosângela, dita Janja, que ele conheceu quando estava preso em Curitiba. Janja tem quase 40 anos a menos que Lula e, mesmo que tentasse, não conseguiria disfarçar a sua ambição, que vai muito para além de ser a primeira-dama do Brasil. Ela não é a mulher por detrás dele, é já a mulher ao lado dele e palpita-me que logo será a mulher à frente dele. Mas há um ditado popular brasileiro que diz que “o que mata velho é queda, vento frio pelas costas ou mulher quente pela frente”. Agora, na sua segunda visita ao estrangeiro, Lula irá aos Estados Unidos, e aí, sim, está o seu grande seguro de vida contra um golpe militar e talvez alguns conselhos de bom senso que Joe Biden lhe possa dar.

2 Pede Augusto Santos Silva que julguemos os governantes pelos resultados e não pela “roupa suja”. É um pedido compreensível, mas é também insustentável. Se nos rendêssemos a essa lógica, acabaría­mos sem pinga de vergonha própria a votar em quem também não teria pinga de vergonha sua. A razão pela qual não nos devem bastar os resultados, mas também que quem nos governa seja gente de carácter e princípios, é porque, no limite, não podemos aceitar a doutrina do “roubo, mas faço”, imortalizada pelo político brasileiro Ademar de Barros. Se bem que não seja bom exemplo, por via dos resultados, custa a acreditar que Pedro Nuno Santos tenha precisado de um mês para se lembrar de que, afinal, tinha autorizado o pagamento de 500 mil euros a Alexandra Reis: sendo mentira, é grave; sendo verdade, é sintomático de uma forma de governar que revela um desprezo profundo pelos contribuintes — e nada disso tem que ver com “roupa suja”. O mesmo se diga dos sucessivos contorcionismos de João Gomes Cravinho para evitar dizer aquilo que era a única coisa exigível que dissesse: “Sim, eu tomei conhecimento da derrapagem do custo das obras do Hospital Militar e nada fiz para as evitar. E depois ainda fui nomear o seu responsável para presidir a uma empresa pública.” Em vez disso, ditou para a acta esta pérola de malabarismo político: “Em nenhuma circunstância se pode imaginar que, não dizendo nada, estava tacitamente aprovado.” Governar assim é fácil, dar-se ao respeito é que é difícil.

3 Quando não são os políticos a enterrarem-se a si próprios, é a frutuosa associação entre a PJ e o “Correio da Manhã” a fazê-lo. Quando são inocentes ou culpados, apenas suspeitos ou nem isso, é a incontinência populista do Ministério Público a crucificá-los todos por antecipação na praça pública. Depois, as investigações, abertas por vezes sem qualquer razão de ser e anunciadas aos quatro ventos, arrastam-se sem destino útil durante anos, liquidando a honra e a vida profissional dos inocentes e dissolvendo no nevoeiro o nome dos culpados, e, na abertura do ano judicial, a PGR queixa-se protocolarmente da falta de meios para concluir todos os inquéritos que os seus serviços gostam de anunciar para os títulos da imprensa. Ou avançam-se outras desculpas, como a que deu o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Manuel Ramos Soares: os processos envolvendo políticos arrastam-se longamente porque eles recorrem a advogados “mais competentes”. Ou seja, tivessem eles advogados incompetentes ou defensores oficiosos nomeados pelo tribunal, e que os defendessem mal, e o Ministério Público, vejam lá, trabalharia melhor e mais depressa.

PS: No meu último texto, referindo as câmaras municipais para as quais Luís Montenegro trabalhou, referi Espinho e Ovar, quando foram, sim, Espinho e Vagos. Pelo erro, peço desculpa à edilidade de Ovar e em especial ao seu presidente, Salvador Malheiro.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Porque a CIA tentou um “golpe Maidan” no Brasil

(Pepe Escobar, in Resistir, 10/01/2023)

 O golpe falhado no Brasil é o último feito da CIA, no momento em que o país forja laços mais fortes com o Oriente.


Um antigo responsável de inteligência norte-americano confirmou que a caótica reencenação do Maidan em Brasília a 8 de Janeiro foi uma operação da CIA e ligou-a às recentes tentativas de revolução colorida no Irão.

No domingo, alegados apoiantes do ex-presidente de direita Jair Bolsonaro invadiram o Congresso, o Supremo Tribunal e o palácio presidencial do Brasil, contornando barricadas de segurança frágeis, subindo em telhados, partindo vidraças, destruindo propriedade pública, incluindo pinturas preciosas, ao mesmo tempo que apelavam a um golpe militar como parte de um esquema de mudança de regime visando o Presidente eleito Luís Inácio “Lula” da Silva.

De acordo com a fonte estado-unidense, a razão para encenar agora a operação – a qual apresentou sinais visíveis de planeamento às pressas – é que o Brasil está pronto para se reafirmar na geopolítica global ao lado dos demais estados BRICS, Rússia, Índia e China.

Isto sugere que os planeadores da CIA são ávidos leitores do estratega do Credit Suisse, Zoltan Pozsar, anteriormente do Fed de Nova York. No seu relatório pioneiro de 27 de Dezembro, intitulado War and Commodity Encumbrance, Pozsar afirma que “a ordem mundial multipolar está a ser construída não pelos chefes de Estado do G7, mas pelos ‘G7 do Leste’ (os chefes de Estado dos BRICS), o qual é realmente um G5 mas, devido à “BRICSpansão”, tomei a liberdade de arredondar para cima”.

Ele se refere aqui a relatos de que a Argélia, a Argentina, o Irão já solicitaram a adesão aos BRICS – ou melhor, à sua versão expandida “BRICS+” – além do interesse manifestado pela Arábia Saudita, Turquia, Egito, Afeganistão e Indonésia.

A fonte estado-unidense traçou um paralelo entre a Maidan da CIA no Brasil e uma série de recentes manifestações de rua no Irão instrumentalizadas pela agência como parte de um novo impulso de revolução colorida: “Estas operações da CIA no Brasil e no Irão são paralelas à operação na Venezuela em 2002, que foi muito bem sucedida no início, uma vez que os desordeiros conseguiram apoderar-se de Hugo Chavez”.

Entra o “G7 do Oriente”

Os neocons straussianos colocados no topo da CIA, independentemente da sua filiação política, estão furiosos [com a possibilidade] de que o “G7 do Oriente” – tal como na configuração BRICS+ do futuro próximo – estejam a afastar-se rapidamente da órbita do dólar americano.

O straussiano John Bolton – que acaba de publicitar o seu interesse em concorrer à presidência dos EUA – está agora a exigir a expulsão da Turquia da NATO quando o Sul Global se realinha rapidamente no seio de novas instituições multipolares.

O ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, e o seu novo homólogo chinês, Qin Gang, acabam de anunciar a fusão do projeto Cinturão e Estrada (Belt and Road Initiative, BRI) conduzido pela China com o da União Económica da Eurásia (EAEU) conduzido pela Rússia. Isto significa que o maior projeto de comércio/conectividade/desenvolvimento do século XXI – as Novas Rotas da Seda chinesas – é agora ainda mais complexo e continua a expandir-se.

Isto prepara o terreno para a introdução, já em fase de concepção a vários níveis, de uma nova divisa de comércio internacional destinada a substituir o dólar americano. Além de um debate interno entre os BRICS, um dos principais vetores é a equipa de discussão criada entre a EAEU e a China. Quando concluídas, estas deliberações serão apresentadas aos países parceiros do BRI-EAEU e, claro, aos BRICS+ ampliados.

Lula ao leme no Brasil, no que é agora o seu terceiro mandato presidencial não sucessivo, dará um tremendo impulso ao BRICS+. Nos anos 2000, lado a lado com o Presidente russo Putin e o antigo Presidente chinês Hu Jintao, Lula foi um conceptualizador chave de um papel mais profundo para os BRICS, incluindo o comércio nas suas próprias divisas.

Os BRICS como “o novo G7 do Oriente”, tal como definido por Pozsar, está para além do anátema – tanto para os neocons straussianos como para os neoliberais.

Os EUA estão a ser lenta mas seguramente expulsos da Eurásia mais vasta por ações concertadas da parceria estratégica Rússia-China.

A Ucrânia é um buraco negro – onde a NATO enfrenta uma humilhação que fará o Afeganistão parecer-se com Alice no País das Maravilhas. Uma UE fraca a ser forçada por Washington a desindustrializar e a comprar gás natural liquefeito (GNL) norte-americano a um custo absurdamente elevado não tem recursos essenciais para o Império pilhar.

Geoeconomicamente isso deixa o “Hemisfério Ocidental” dominado pelos EUA, especialmente a imensa Venezuela rica em energia, como alvo principal. E geopoliticamente o ator regional chave é o Brasil.

O jogo neo-conservador straussiano é fazer tudo para impedir a expansão comercial russo-chinesa e a sua influência política na América Latina, que Washington – independentemente do direito internacional e do conceito de soberania – continua a chamar “o nosso quintal”. Em tempos em que o neoliberalismo é tão “inclusivo” que até os sionistas usam suásticas, a Doutrina Monroe está de volta, com esteroides.

Tudo sobre a “estratégia de tensão”

Pistas para Maidan no Brasil podem ser obtidas, por exemplo, no Comando Cibernético do Exército dos EUA, em Fort Gordon, onde não é segredo que a CIA distribuiu centenas de ativos pelo Brasil antes das recentes eleições presidenciais – fiel ao manual da “estratégia de tensão”.

As conversas da CIA eram interceptadas em Fort Gordon desde meados de 2022. O tema principal era então a imposição da narrativa generalizada de que “Lula só podia vencer fazendo trapaça”.

Um alvo chave da operação da CIA era desacreditar por todos os meios o processo eleitoral brasileiro, abrindo caminho para uma narrativa pré-empacotada que agora está a desdobrar-se:   um Bolsonaro derrotado a fugir do Brasil e a procurar refúgio na mansão Mar-a-Lago do antigo presidente dos EUA, Donald Trump. Bolsonaro, aconselhado por Steve Bannon, fugiu do Brasil, saltando a posse de Lula, mas porque está aterrorizado pode enfrentar a pancada mais cedo do que tarde. E a propósito, ele está em Orlando, não em Mar-a-Lago.

A cereja no topo do bolo do Maidan requentado foi o que aconteceu neste domingo passado:   fabricar um 8 de Janeiro em Brasília a espelhar os acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021 em Washington e, claro, gravar a ligação Bolsonaro-Trump na mente das pessoas.

A natureza amadorística do 8 de Janeiro em Brasília sugere que os planeadores da CIA perderam-se na sua própria trama. Toda a farsa teve de ser antecipada devido ao relatório de Pozsar, o qual foi lido por todos os que importam ao longo do eixo New York-Beltway.

O que está claro é que para algumas facções do poderoso establishment norte-americano, livrar-se de Trump a todo o custo é ainda mais crucial do que estropiar o papel do Brasil no BRICS+.

Quando se trata dos factores internos do Maidan no Brasil, tomando emprestado ao romancista Gabriel Garcia Marquez, tudo caminha e soa como a Crónica de um golpe anunciado. É impossível que o aparelho de segurança em torno de Lula não pudesse ter previsto estes acontecimentos, especialmente tendo em conta o tsunami de sinais nas redes sociais.

Assim, deve ter havido um esforço concertado para atuar com suavidade – sem grandes cautelas – enquanto se limitavam a emitir a habitual tagarelice neoliberal.

Afinal de contas, o gabinete de Lula é uma confusão, com ministros constantemente em confronto e alguns membros apoiantes do Bolsonaro mesmo há poucos meses atrás. Lula chama a isso um “governo de unidade nacional”, mas é mais como uma colcha de retalhos de mau gosto.

O analista brasileiro Quantum Bird, um físico académico globalmente respeitado que regressou a casa após uma longa estadia em terras da NATO, observa que há “demasiados atores em jogo e demasiados interesses antagónicos”. Entre os ministros de Lula, encontramos bolsonaristas, neoliberais-rentistas, convertidos ao intervencionismo climático, praticantes de políticas identitárias e uma vasta fauna de neófitos políticos e alpinistas sociais, todos bem alinhados com os interesses imperiais de Washington”.

“Militantes” da CIA a rondar

Um cenário plausível é que sectores poderosos das forças armadas brasileiras – ao serviço dos habituais grupos de pensamento neo-conservadores straussianos, mais o capital financeiro global – não poderiam realmente conseguir um verdadeiro golpe, considerando a rejeição popular maciça, e tiveram de se contentar, na melhor das hipóteses, com uma farsa “suave”. Isto ilustra bem o quanto esta facção militar auto-grandecida e altamente corrupta está isolada da sociedade brasileira.

O que é profundamente preocupante, como observa Quantum Bird, é que a unanimidade na condenação do 8 de Janeiro vinda de todos os quadrantes, embora ninguém tenha assumido a responsabilidade, “mostra como Lula navega virtualmente sozinho num mar raso infestado de corais afiados e tubarões esfomeados”.

A posição de Lula, acrescenta ele, “decretando uma intervenção federal sozinho, sem rostos fortes do seu próprio governo ou autoridades relevantes, mostra uma reação improvisada, desorganizada e amadora”.

E tudo isto, mais uma vez, depois de os “militantes” da CIA terem organizado os “protestos” abertamente nas redes sociais durante dias.

O mesmo velho manual da CIA continua, no entanto, a funcionar. Ainda confunde a mente como é fácil subverter o Brasil, um dos líderes naturais do Sul Global. Tentativas de golpes de Estado da velha escola, com roteiros de mudança de regime/revolução colorida, continuarão a ser ensaiados – lembrem-se do Cazaquistão no início de 2021 e do Irão há apenas uns poucos meses.

Por muito que a facção auto-engrandecida dos militares brasileiros possa acreditar que controla a nação, se as massas significativas de Lula chegarem às ruas com toda a força contra a farsa de 8 de Janeiro, a impotência do exército ficará assinalada de modo evidente. E uma vez que se trata de uma operação da CIA, os manipuladores ordenarão aos seus vassalos militares tropicais que se comportem como avestruzes.

O futuro, infelizmente, é agourento. O establishment dos EUA não permitirá que o Brasil, a economia BRICS com o melhor potencial a seguir à China, esteja de volta aos negócios com toda a força e em sincronia com a parceria estratégica Rússia-China.

Os neocons e neoliberais straussianos, chacais e hienas geopolíticos certificados, ficarão ainda mais ferozes à medida que o “G7 do Oriente”, Brasil incluído, se mover para acabar com a suserania do dólar americano enquanto o controle imperial do mundo desaparece.

Fonte aqui


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