Um bando de mercenários foi preso há dois meses ao tentar desembarcar nas costas da Venezuela, a coisa parecia um arremedo da saga do coronel Alcazar do Tintin, uma simples graçola, quando um deles veio reclamar direitos legais com papel passado em notário. A curiosidade é mesmo o contrato que os mercenários traziam no bolso.
E agora um assunto completamente diferente: não é sobre a pandemia e os seus números sempre preocupantes, não são as mais cem mil pessoas desempregadas a somar à estatística, não é o fiasco anunciado da gloriosa marcha sobre Lisboa daquela “maioria silenciosa” que está no sótão desde o saudoso 28 de setembro de 1974, é sobre as desventuras de um bando de mercenários na Venezuela.
O detalhe do caso foi reportado, ao que sei, pelo “Washington Post” e, depois, replicado pela imprensa mundial, incluindo a portuguesa. E é curioso: um bando de mercenários foi preso há dois meses ao tentar desembarcar nas costas daquele país, a coisa parecia um arremedo da saga do coronel Alcazar do Tintin, uma simples graçola, quando um deles veio reclamar direitos legais com papel passado em notário. A curiosidade é mesmo o contrato que os mercenários traziam no bolso.
O grupo obedecia ao comando de um empresário norte-americano do ramo, Jordan Goudreau, que veio dar explicações. Segundo a sua versão, a sua empresa, a Silvercorp, foi abordada por representantes de Juan Guaidó, o proclamado presidente interino da Venezuela, reconhecido pela diplomacia dos Estados Unidos e pelos seus aliados, incluindo, com diversos graus de devoção, algumas chancelarias europeias.
Esses embaixadores pagaram-lhe para preparar uma operação militar: 800 soldados, sobretudo desertores do exército venezuelano e milícias de extrema-direita, deveriam ser treinados para uma invasão a curto prazo.
A empresa seria autorizada a usar sem riscos judiciais a força necessária, como o assassinato de dirigentes políticos e a morte dos militares oficialistas que resistissem, receberia um bom prémio de centenas de milhões de dólares e, depois, mais dezasseis milhões por cada mês no período de transição em que os seus serviços de segurança fossem reclamados pelos clientes. Tudo escrito em oito páginas de contrato e 41 de aditamentos, com as indicações detalhadas para a operação.
Goudreau, zangado porque os 800 voluntários não apareceram, ou os poucos que vieram se preocupavam mais com diversão avulsa do que com o garbo militar, escandalizado pelo naufrágio das lanchas dos comandos, que foram recebidos e dizimados pelo inimigo, em vez de serem festejados pela população, e, sobretudo, amofinado com a falta de pagamento, revelou o contrato e lavrou o seu protesto.
A assinatura era do braço direito de Guaidó, que viajou para os Estados Unidos para concretizar o compromisso, assinado em outubro do ano passado, e que não teve como desmentir o mercenário. É tudo verdade. É mesmo estimável que, em tempos tão turbulentos, de gigantescas conspirações e fake news, haja quem tenha o rigor processual de contratualizar por escrito os assassinatos, a invasão militar e o regime posterior, tudo para que as devidas autoridades comerciais possam aferir o cumprimento das cláusulas, a ser necessário. Só que falhou tudo, nem exército, nem dinheiro.
Trump, que, ao que revela Bolton no seu livro hoje publicado, acha que a Venezuela é parte dos EUA, veio no domingo mostrar algum arrependimento sobre a sua aposta em Guaidó. Não é para menos, o homem tem fracassado em todos os seus intentos de tomar o poder: parece que faltam as manifestações; quando tentou levantar os quartéis ficou sozinho a tirar selfies em frente ao portão; e o seu peso institucional depende mais do sequestro da direita histórica venezuelana do que de propostas realizáveis.
Não sei o que dirá o governo português, que procedeu com aquela matreirice de reconhecer Guaidó como presidente mas de manter o embaixador oficial e de, para todos os efeitos, tratar com Maduro de todos os assuntos de Estado. A Espanha já se pôs a milhas desse jogo. E a crise daquele país continua a agravar-se. Pobre Venezuela, tão destruída e tão cobiçada.
Estou à vontade para escrever este texto. Ao longo dos últimos anos não tenho largado a degradação da democracia na Venezuela – até ao ponto de não podermos usar, nem sequer do ponto de vista formal, esta denominação para a referir –, os abusos do regime de Nicolás Maduro e a forte repressão de que a oposição tem sido vítima. Podem lê-lo AQUI, AQUI, AQUI OU AQUI, só do que encontrei de artigos meus dos últimos dois anos numa busca rápida. Isso não me impediu de apontar as costumeiras ingerências dos Estados Unidos, sobretudo desde que Donald Trump chegou à Casa Branca, e a absurda estratégia diplomática portuguesa, ao reconhecer um Presidente que não o era e continua a não o ser de facto, levando à insólita situação de deixarmos de ter relações diplomáticas com o governo venezuelano.
A análise politicamente posicionada mas que recusa a propaganda como forma válida de olhar para a realidade nunca me impediu de traçar o risco onde acaba a democracia e começa a violação da liberdade e dos direitos humanos num regime que, aliás, nunca apoiei. Por ser demasiado evidente que, por escolhas políticas e económicas erradas, este teria de ser o seu triste fim. Isso, ou o que escrevi sobre Cuba, levou-me a ser bastante criticado por pessoas que em muitos assuntos partilham posições políticas comigo. Penso que é delas, e não minha, a incoerência. Aquilo porque luto faz-se com o povo, nunca contra o povo; pela democracia, nunca contra a democracia; pela liberdade, nunca contra a liberdade.
Tenho, se me permitem, alguma autoridade moral para ficar estarrecido com o que vejo na comunicação social. A forma displicente, quando não ausente, com que tem sido tratada a brutal repressão que se abateu sobre os chilenos que reagem aos efeitos da agenda neoliberal de Sebastian Piñera é muitíssimo reveladora.
Como é costume, os protestos começaram por uma questão menor – o aumento do preço do Metropolitano de Santiago –, apenas sinal de um crescente descontentamento social numa economia forte mas muito desigual da América do Sul. A reação de Piñera foi, para dizer o mínimo, musculada: disse que o Chile estava em guerra, decretou o estado de emergência, mandou os militares para a rua, fez milhares de detidos e é politicamente responsável por 15 mortes. Num país que, ao contrário do Brasil, tem sabido revisitar criticamente a sua ditadura, o comportamento do governo causou verdadeira indignação.
Na terça-feira, Piñera foi obrigado a recuar. Numa atitude desesperada, tentou transitoriamente transformar-se no oposto do que foi no último ano (já fora presidente entre 2010 e 2014). Subitamente, promete um aumento de 20% da reforma básica, um aumento do salário mínimo e o congelamento das tarifas de energia e, claro, do preço do metropolitano. Piñera diz que recebeu “com humildade e clareza” a mensagem que os chilenos lhe deram. Uma humildade que só 15 mortos depois, com o caos instalado nas principais cidades e uma repressão inaudita, o atingiu. Numa semana de guerra com o povo, foi derrotado pelo povo. Só recuou porque, no Chile, não há hoje condições para impor soluções mais firmes.
Apesar do radicalismo neoliberal das suas posições, o milionário Sebastian Piñera não entra na lista de proscritos “radicais” e “populistas”, seja de direita ou de esquerda. O seu desrespeito pela democracia e pela liberdade foi claramente exibido na última semana, pondo o país em estado de emergência, tratando o povo em revolta como criminoso e levando os militares para a rua. Mas as suas políticas económicas agradam aos que determinam a nomenclatura política a usar pelo mainstream, onde a questão democrática é secundária. O que divide os bons e os maus é, hoje, o “populismo”, uma expressão que passou a ter um significado ideológico determinado pelas políticas económicas propostas e que é muito pouco respeitador do pluralismo democrático.
Por cá, quase ninguém deu pelo que aconteceu no Chile. É impressionante a diferença de tratamento que a comunicação social dá aos abusos e violações do regime venezuelano e aos abusos e violações de Piñera, o milionário aprumado que não usa farda mas nem por isso dispensa o exército para lidar com os que se lhe opõem politicamente. Há repressão aviltante e repressão irrelevante, há vidas que valem e vidas que se dispensam.
Poderão dizer que isto tem a ver com a dimensão da comunidade portuguesa na Venezuela, mas basta olhar para a imprensa estrangeira, incluindo a espanhola, para perceber que o problema é outro. No “The Economist” a atitude bélica e repressiva de Piñera até foi tratada como “inábil”. É interessante ver a fleuma cínica com que a bala de um milionário liberal é tratada em comparação com o arrebatamento democrático que provoca a bala de um maquinista socialista.
Não estou a comparar a situação política na Venezuela com a situação política no Chile. São países incomparáveis, com histórias incomparáveis e vivendo em regimes incomparáveis. Estou a comparar o tratamento noticioso dado, num conflito entre um governante e o seu povo, à repressão. Como poderia comparar o tratamento dado à violência dos manifestantes em Hong Kong ou na Catalunha. E ele revela uma comunicação social genericamente tendenciosa, politicamente engajada e totalmente determinada por um discurso ideológico. Até eu fui mais lesto a escrever sobre a Venezuela, por me sentir na justa necessidade de me afastar claramente do comportamento de Maduro, do que sobre o Chile, que não estava na agenda noticiosa portuguesa. É um clima geral que impõe dois pesos e duas medidas a todos. Chama-se hegemonia.
A questão não é, portanto, se os EUA entrarão em guerra com a Venezuela, mas se a atual guerra híbrida escalará para uma guerra militar estrito senso.
Para tentar responder a essa pergunta, temos de levar em consideração dois grandes fatores.
O primeiro tange à nova geoestratégia dos EUA para América Latina. Eles querem implantar, a ferro e fogo, se necessário, a Nova Doutrina Monroe, segundo a qual a nossa região tem de ser, de novo, um espaço de influência exclusiva dos EUA. Um quintal. Um patio trasero, como dizem os hispânicos.
Nesse novo cenário, não haveria lugar para países que tenham políticas externas independentes e relações mais aprofundadas com China e Rússia, por exemplo, rivais geopolíticos e geoeconômicos dos EUA. Assim, a derrubada do governo Maduro é essencial para a agenda dos EUA na região, pois Caracas tem hoje relações bastante estreitas com esses rivais dos EUA e pratica uma política externa muito independente, embora jamais tenha deixado de prover seu petróleo para o gigante norte-americano. Diga-se de passagem, o governo brasileiro de Bolsonaro, bem-treinado que é, já ameaça sair do BRICS e abandonar programas sino-brasileiros .
O segundo fator diz respeito às divergências no governo dos EUA sobre o que e como fazer, em relação à Venezuela.
Como no Brasil, há dois grandes grupos no governo dos EUA que têm opiniões distintas sobre esse e outros assuntos.
Há o grupo dos ideólogos de extrema-direita, do qual fazem parte figuras sinistras como John Bolton (conselheiro de segurança nacional), Mike Pompeo (secretário de Estado), e o terrível Eliott Abrams (enviado especial para a Venezuela), entre outros. Embora mais sofisticados que o astrólogo da Virgínia [1] e os integrantes do Clã (qualquer coisa é), compõem um grupo extremado, um tanto delusional, gente que não tem contato muito estreito com a realidade.
Pois bem, esse pessoal, tutti buona gente, neocons de pura cepa, quer uma intervenção militar na Venezuela. Bolton, em particular, maior ideólogo da Nova Doutrina Monroe, já demandou ao Pentágono cenários variados para a intervenção, desde bombardeios localizados, até invasão com tropas em terra.
O problema, para ele, é que os militares do Pentágono, como os daqui, estão resistindo e advertindo Trump sobre os perigos de uma guerra na Venezuela, especialmente se esta envolver tropas em terra.
A Venezuela é duas vezes maior que o Iraque e tem um terreno extremamente difícil para operações em terra, com selvas impenetráveis, pântanos (llanos), montanhas, etc. Enfim, um terreno ideal para uma guerra defensiva de posições táticas e de guerrilhas. Além disso, como já escrevi anteriormente, a Venezuela vem se preparando para este cenário desde 2006, com o Nuevo Pensamiento Militar. Mesmo no caso de uma derrota completa das forças regulares venezuelanas, a Milícia Bolivariana, que poderia reunir até 500 mil membros, oporia feroz resistência por todo o território da Venezuela.
Não bastasse, os bolivarianos poderiam receber apoio logístico de China e Rússia, especialmente desta última, que desenvolveu cooperação militar estreita com a Venezuela.
Além dessas questões militares operacionais, pesam também contra uma intervenção militar, notadamente contra uma invasão por terra, a falta de apoio político internacional. O Grupo de Lima , que congrega a direita sul-americana e os satélites dos EUA na região, rejeita a escalada militar, embora apoie entusiasticamente a guerra híbrida contra a Venezuela. Os europeus também preferem apostar apenas na guerra híbrida.
Mas isso significa dizer que a transformação da guerra híbrida em guerra convencional está descartada?
Não, não está.
À medida que a “solução Guaidó” fracassa miseravelmente e não se investe numa solução negociada e pacífica, cresce a impaciência e o descontentamento dos neocons liderados por John Bolton. Há de se considerar que Bolton é um sujeito muito perigoso e influente, que tem um longo e inquietante histórico de manipulação de informações para fazer prevalecer suas teses.
Parte de grupos a ele ligados [propala] a cretina “informação” de que os generais venezuelanos seriam controlados por “agentes cubanos”, repetida por oligofrênicos da nossa imprensa conservadora. O alvo de Bolton é o lobbyanticastrista, de enorme influência e Washington e decisivo no voto latino nos EUA.
Trump, embora reticente em aprovar qualquer intervenção militar, confia muito em Bolton e encarregou-o de cuidar do tema.
O presidente do America First e o resto que se dane não quer se envolver numa guerra que não poderia ganhar no curto prazo, mas também sabe que o atual cenário de fracasso e humilhação o está desgastando ante o eleitorado conservador.
Na persistência crônica desse cenário de impasse humilhante, é possível que se opte por uma intervenção militar restrita a alguns bombardeios punitivos contra alvos militares e políticos selecionados. [2]
Do ponto de vista logístico e militar, essa seria uma alternativa viável. A Venezuela está muito próxima dos EUA. Ademais, os EUA têm duas grandes bases militares bem próximas do território da Venezuela: Guantánamo (Cuba) e Soto Cano (Honduras). Os EUA também não teriam grandes dificuldades em usar instalações no Panamá, Colômbia ou, quem sabe, até no Brasil. O deslocamento de uma boa força naval até a costa da Venezuela também poderia se dar de forma muito rápida.
A capacidade de a Venezuela resistir a tal ataque é limitada, mesmo com seus Sukhois SU-30 e seus mísseis S-300. O poder dos mísseis Cruise e dos aviões com tecnologia stealth é avassalador. Ademais, a Venezuela não tem expertise em guerra eletrônica. Uma vez destruído o sistema de comunicação militar, pouca coisa poderá se fazer.
A decisão de se fazer ou não um ataque desse tipo dependerá da evolução das condições internas na Venezuela e dos efeitos esperados nos eleitores de Trump. Se o impasse político persistir, se abrirem fissuras nas forças venezuelanas e as condições econômicas continuarem a se deteriorar, e se os eleitores conservadores dos EUA começarem a ver com bons olhos uma ação mais firme, a hipótese de uma intervenção militar restrita, sem tropas em terra, pode não só se tornar factível, mas desejável.
Bastaria preparar o terreno com uma operação de falsa bandeira, que resultasse em mortos e feridos atribuíveis ao “ditador” Maduro, para que tal ação possa ser “justificada”. Outra hipótese, como esclarece o patético títere, seria o parlamento venezuelano convidar os americanos a destruírem a Venezuela.
Seria, de qualquer modo, uma aposta de alto risco. Porém, não se deve desprezar a crueldade e a truculência do Império e da direita venezuelana.
Para assegurar seus interesses, o governo dos EUA não se importa em destruir países e matar milhões de pessoas, desde que não sejam vidas norte-americanas. Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria foram destruídos, milhões de vidas foram perdidas, ceifadas, direta ou indiretamente, pela guerra.
Alguns argumentam que, na América Latina, haveria maiores freios para ações como essas, dada à existência de uma grande população de origem latina nos EUA, mas, ante o total desprezo demonstrado por Trump ante o sofrimento de imigrantes latino-americanos, não é prudente supor que a atual administração dos EUA se guiará, no caso da Venezuela, por princípios humanistas e racionalidade.
O risco de uma escalada militar, que possa conduzir a Venezuela a uma guerra civil prolongada é, portanto, real.
Em outros tempos, o Brasil lideraria toda a América Latina contra essa loucura. Agora, no entanto, somos um paiseco submisso, que bate continência, até mesmo literalmente, para gente insana como Bolton.
Bolsonaro abriu os portões para a barbárie não apenas no Brasil, mas em toda a nossa região.
Oscar Wilde afirmou que os EUA eram o único país a passar da barbárie para a decadência sem passar pela fase histórica da civilização.
Já o Brasil dos capitães e astrólogos reúne, numa só fase histórica, decadência e barbárie.