Guerra na Venezuela

(Por Marcelo Zero, in Resistir, 10/05/2019)

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A grande pergunta que todos se fazem no momento é se haverá ou não uma guerra na Venezuela. 

Bom, em primeiro lugar, é preciso considerar que os EUA já estão em guerra com a Venezuela. Uma guerra híbrida, não-convencional, mas uma guerra. 

Os EUA estão fazendo de tudo na Venezuela. Além do embargo comercial e financeiro , que já ocasionou a morte de pelo menos 40 mil pessoas, confiscaram ouro e outros ativos da Venezuela no exterior , promoveram atos de sabotagem que levaram a apagões , instituíram um títere ridículo (Guaidó) para tentar derrubar Maduro mediante um golpe ,articularam o isolamento diplomático e político do nosso vizinho , fazem pressão para que os militares abandonem o governo constitucional , promovem uma grande campanha de desinformação sobre a Venezuela para criminalizar Maduro e o regime bolivariano, etc. etc. 

A questão não é, portanto, se os EUA entrarão em guerra com a Venezuela, mas se a atual guerra híbrida escalará para uma guerra militar estrito senso. 

Para tentar responder a essa pergunta, temos de levar em consideração dois grandes fatores. 

O primeiro tange à nova geoestratégia dos EUA para América Latina. Eles querem implantar, a ferro e fogo, se necessário, a Nova Doutrina Monroe, segundo a qual a nossa região tem de ser, de novo, um espaço de influência exclusiva dos EUA. Um quintal. Um patio trasero, como dizem os hispânicos. 

Nesse novo cenário, não haveria lugar para países que tenham políticas externas independentes e relações mais aprofundadas com China e Rússia, por exemplo, rivais geopolíticos e geoeconômicos dos EUA. Assim, a derrubada do governo Maduro é essencial para a agenda dos EUA na região, pois Caracas tem hoje relações bastante estreitas com esses rivais dos EUA e pratica uma política externa muito independente, embora jamais tenha deixado de prover seu petróleo para o gigante norte-americano. Diga-se de passagem, o governo brasileiro de Bolsonaro, bem-treinado que é, já ameaça sair do BRICS e abandonar programas sino-brasileiros . 

O segundo fator diz respeito às divergências no governo dos EUA sobre o que e como fazer, em relação à Venezuela. 

Como no Brasil, há dois grandes grupos no governo dos EUA que têm opiniões distintas sobre esse e outros assuntos. 

Há o grupo dos ideólogos de extrema-direita, do qual fazem parte figuras sinistras como John Bolton (conselheiro de segurança nacional), Mike Pompeo (secretário de Estado), e o terrível Eliott Abrams (enviado especial para a Venezuela), entre outros. Embora mais sofisticados que o astrólogo da Virgínia [1] e os integrantes do Clã (qualquer coisa é), compõem um grupo extremado, um tanto delusional, gente que não tem contato muito estreito com a realidade. 

Pois bem, esse pessoal, tutti buona gente, neocons de pura cepa, quer uma intervenção militar na Venezuela. Bolton, em particular, maior ideólogo da Nova Doutrina Monroe, já demandou ao Pentágono cenários variados para a intervenção, desde bombardeios localizados, até invasão com tropas em terra. 

O problema, para ele, é que os militares do Pentágono, como os daqui, estão resistindo e advertindo Trump sobre os perigos de uma guerra na Venezuela, especialmente se esta envolver tropas em terra. 

A Venezuela é duas vezes maior que o Iraque e tem um terreno extremamente difícil para operações em terra, com selvas impenetráveis, pântanos (llanos), montanhas, etc. Enfim, um terreno ideal para uma guerra defensiva de posições táticas e de guerrilhas. Além disso, como já escrevi anteriormente, a Venezuela vem se preparando para este cenário desde 2006, com o Nuevo Pensamiento Militar. Mesmo no caso de uma derrota completa das forças regulares venezuelanas, a Milícia Bolivariana, que poderia reunir até 500 mil membros, oporia feroz resistência por todo o território da Venezuela. 

Não bastasse, os bolivarianos poderiam receber apoio logístico de China e Rússia, especialmente desta última, que desenvolveu cooperação militar estreita com a Venezuela. 

Além dessas questões militares operacionais, pesam também contra uma intervenção militar, notadamente contra uma invasão por terra, a falta de apoio político internacional. O Grupo de Lima , que congrega a direita sul-americana e os satélites dos EUA na região, rejeita a escalada militar, embora apoie entusiasticamente a guerra híbrida contra a Venezuela. Os europeus também preferem apostar apenas na guerra híbrida. 

Mas isso significa dizer que a transformação da guerra híbrida em guerra convencional está descartada? 

Não, não está. 

À medida que a “solução Guaidó” fracassa miseravelmente e não se investe numa solução negociada e pacífica, cresce a impaciência e o descontentamento dos neocons liderados por John Bolton. Há de se considerar que Bolton é um sujeito muito perigoso e influente, que tem um longo e inquietante histórico de manipulação de informações para fazer prevalecer suas teses. 

Parte de grupos a ele ligados [propala] a cretina “informação” de que os generais venezuelanos seriam controlados por “agentes cubanos”, repetida por oligofrênicos da nossa imprensa conservadora. O alvo de Bolton é o lobbyanticastrista, de enorme influência e Washington e decisivo no voto latino nos EUA. 

Trump, embora reticente em aprovar qualquer intervenção militar, confia muito em Bolton e encarregou-o de cuidar do tema. 

O presidente do America First e o resto que se dane não quer se envolver numa guerra que não poderia ganhar no curto prazo, mas também sabe que o atual cenário de fracasso e humilhação o está desgastando ante o eleitorado conservador. 

Na persistência crônica desse cenário de impasse humilhante, é possível que se opte por uma intervenção militar restrita a alguns bombardeios punitivos contra alvos militares e políticos selecionados. [2] 

Do ponto de vista logístico e militar, essa seria uma alternativa viável. A Venezuela está muito próxima dos EUA. Ademais, os EUA têm duas grandes bases militares bem próximas do território da Venezuela: Guantánamo (Cuba) e Soto Cano (Honduras). Os EUA também não teriam grandes dificuldades em usar instalações no Panamá, Colômbia ou, quem sabe, até no Brasil. O deslocamento de uma boa força naval até a costa da Venezuela também poderia se dar de forma muito rápida. 

A capacidade de a Venezuela resistir a tal ataque é limitada, mesmo com seus Sukhois SU-30 e seus mísseis S-300. O poder dos mísseis Cruise e dos aviões com tecnologia stealth é avassalador. Ademais, a Venezuela não tem expertise em guerra eletrônica. Uma vez destruído o sistema de comunicação militar, pouca coisa poderá se fazer. 

A decisão de se fazer ou não um ataque desse tipo dependerá da evolução das condições internas na Venezuela e dos efeitos esperados nos eleitores de Trump. Se o impasse político persistir, se abrirem fissuras nas forças venezuelanas e as condições econômicas continuarem a se deteriorar, e se os eleitores conservadores dos EUA começarem a ver com bons olhos uma ação mais firme, a hipótese de uma intervenção militar restrita, sem tropas em terra, pode não só se tornar factível, mas desejável. 

Bastaria preparar o terreno com uma operação de falsa bandeira, que resultasse em mortos e feridos atribuíveis ao “ditador” Maduro, para que tal ação possa ser “justificada”. Outra hipótese, como esclarece o patético títere, seria o parlamento venezuelano convidar os americanos a destruírem a Venezuela. 

Seria, de qualquer modo, uma aposta de alto risco. Porém, não se deve desprezar a crueldade e a truculência do Império e da direita venezuelana.

Para assegurar seus interesses, o governo dos EUA não se importa em destruir países e matar milhões de pessoas, desde que não sejam vidas norte-americanas. Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria foram destruídos, milhões de vidas foram perdidas, ceifadas, direta ou indiretamente, pela guerra. 

Alguns argumentam que, na América Latina, haveria maiores freios para ações como essas, dada à existência de uma grande população de origem latina nos EUA, mas, ante o total desprezo demonstrado por Trump ante o sofrimento de imigrantes latino-americanos, não é prudente supor que a atual administração dos EUA se guiará, no caso da Venezuela, por princípios humanistas e racionalidade. 

O risco de uma escalada militar, que possa conduzir a Venezuela a uma guerra civil prolongada é, portanto, real. 

Em outros tempos, o Brasil lideraria toda a América Latina contra essa loucura. Agora, no entanto, somos um paiseco submisso, que bate continência, até mesmo literalmente, para gente insana como Bolton. 

Bolsonaro abriu os portões para a barbárie não apenas no Brasil, mas em toda a nossa região. 

Oscar Wilde afirmou que os EUA eram o único país a passar da barbárie para a decadência sem passar pela fase histórica da civilização. 

Já o Brasil dos capitães e astrólogos reúne, numa só fase histórica, decadência e barbárie. 


[1] Refere-se a Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo que reside em Virgínia (EUA) e inspira o presidente Jair Bolsonaro. 
[2] A dita intervenção “restrita” poderia vir a ser realizada por mercenários.   Ver Plano de utilização de mercenários para derrubar governo da Venezuela . 


Fonte aqui

O fracasso do senhorito Guaidó 

(In Resistir, 30/04/2019)

Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és…

Após o fracasso da tentativa de golpe de 23 de Fevereiro, em 30 de Abril o senhorito Guaidó fez uma nova tentativa e teve um novo fracasso. Isto revela muito acerca da inépcia dos agentes designados pelo império. Ao referido indivíduo fora ministrado um curso do NED , na ex-Juguslávia, acerca de técnicas para fazer revoluções coloridas.

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Mas hoje, diante deste novo flop, pode-se verificar que o seu aproveitamento foi pequeno. A tradição do imperialismo de arrebanhar lumpens, marginais e mercenários para promover tumultos e golpes – tal como fez a CIA em 1953 contra o governo iraniano, de Mossadegh – é inútil quando se depara com a coesão das Forças Armadas e a consciência anti-imperialista do seu povo.

É o que acontece na Venezuela Bolivariana, apesar de todas as sabotagens e tentativas de desestabilização contra ela. 

Registe-se o papel ridículo dos vassalos americanos da UE (governo português inclusive) que servilmente, cumprindo ordens de Washington, reconheceram o governo do supracitado senhorito. Registe-se ainda a actuação repugnante e histérica da TV portuguesa na cobertura dos acontecimentos de hoje na Venezuela.


A Venezuela e o império americano

(José Pereira da Costa, in Público, 06/03/2019)

Tão amigos que eles são…

Actualmente, mais do que nunca, depois da implosão da União Soviética, a América não esconde a sua pretensão de domínio mundial, com todos os perigos que isso traz para a humanidade no seu conjunto.

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Está em curso na Venezuela a finalização de mais um golpe dos Estados Unidos contra um país da América Latina, a juntar às dezenas de outras intervenções desde que foi anunciada a doutrina Monroe, pelo Presidente americano do mesmo nome, numa mensagem ao Congresso em Dezembro de 1823. Ou seja, que no continente americano, norte e sul, mandam os Estados Unidos. Na altura, a mensagem dirigia-se às potências europeias, uma vez que algumas das colónias sul-americanas ainda não tinham acedido à independência ou acabavam de o fazer. O espírito anticolonial dos fundadores da nação americana haveria de manifestar-se mais tarde por várias vezes, a de não menos importância aquando da fundação das Nações Unidas, em 1945, ao encabeçarem, juntamente com a União Soviética, o movimento de descolonização na Ásia e em África, contra as potências coloniais europeias, que só terminaria com o desmembramento do império português a partir de 25 de Abril de 1974. Mas a grande nação anticolonial transformou-se ela própria num império, com o objectivo de dominação mundial. É o insuspeito e conservador Raymond Aron que o explica na sua Republique Impériale, de 1973. E pouco depois da sua fundação e do quase extermínio dos povos nativos, desencadeia em 1845 uma guerra contra o México, roubando-lhe metade do seu território. Seguindo-se, no final do século XIX, a conquista das últimas e mais importantes colónias espanholas, Cuba, Porto Rico, Guam e Filipinas.

Actualmente, mais do que nunca, depois da implosão da União Soviética, não esconde a sua pretensão de domínio mundial, com todos os perigos que isso traz para a humanidade no seu conjunto. A revelação, há poucos anos, de que controla as comunicações electrónicas de todo o tipo e em todo o mundo, assim o comprova. Juntamente com as perto de mil bases militares instaladas em todos os continentes. Que mais falta ainda para se considerar o governo deste país como a maior ameaça à paz mundial desde o tempo do nazismo? Como o fazem amiúde intelectuais americanos e de outros países, tais como Noam Chomsky, Immanuel Wallerstein, John Mearsheimer, Stephen Walt, Perry Anderson, Samir Amin, Giovanni Arrighi, e muitos mais. Na nossa língua, a obra do brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, Formação do Império Americano, de 2006, faz um inventário da maior parte das suas intervenções militares, ou conspirativas, desde a sua fundação.

Depois de, na primeira década deste século, ter procedido à segunda invasão do Iraque e após um curto período de contenção com a presidência Obama, aí está novamente o complexo militar-industrial americano, em todo o seu esplendor, a ameaçar os seus mais directos rivais Rússia e China com uma intervenção na Venezuela. Como o primeiro Presidente Bush, em finais de 1990, havia feito ao invadir o Iraque para marcar terreno perante uma União Soviética prestes a implodir. (A esse propósito, é útil consultar o excelente estudo de Seymour Hersh, saído recentemente no London Review of Books n.º 41, de 24 de Janeiro passado, sobre a actividade secreta de uma equipa de antigos colaboradores do vice-presidente George H.W. Bush, quando foi director da CIA, e que pôs ao seu serviço numa guerra de espiões contra a URSS, desconhecida do Presidente Reagan e dos seus mais próximos colaboradores que conduziam a política externa).

Sobre a intervenção em curso na Venezuela é confrangedor constatar o que tem sido escrito e dito nos media portugueses por comentadores e académicos sobre uma pretensa Venezuela rica e desenvolvida no passado, com um “forte modelo de crescimento económico e estabilidade política”, que o chavismo teria arruinado. Quando a realidade mostra que o subcontinente latino-americano é das regiões mais subdesenvolvidas do mundo, onde mais de metade da população vive na maior das misérias, e a outra metade, a burguesia, está completamente alheada dessa situação e sempre pronta a contra-atacar os governos que historicamente tentaram fazer algo para reduzir as desigualdades gritantes. Foi o que aconteceu mais uma vez com o chavismo, de que Maduro é um subproduto, mas não o interveniente principal. Isso está bem visível. Tentar fazer passar que o golpe começou agora é um embuste. Quase há 20 anos, em 2002, deu-se a primeira tentativa para derrubar Chávez, tendo sido proclamado Presidente durante 48 horas um tal Carmona, apoiado pelos mesmos que estão actualmente por detrás de Juan Guaidó, o auto proclamado Presidente, num acto risível e sem qualquer legitimidade. Que o agente da CIA, Mike Pompeo, presentemente no governo americano, reconheceu poucos minutos depois, logo secundado pelo Grupo de Lima, onde estão os países enfeudados aos Estados Unidos. Primeiro golpe esse, numa altura em que o programa socialista ainda não tinha sido posto em prática, mas o seu simples anúncio já era motivo para o império americano intervir.

Aparentemente, enquanto os Estados Unidos se afundavam no pântano do Médio Oriente durante a primeira década do novo século, singravam alguns governos latino-americanos tentando minorar as imensas desigualdades, só comparáveis às do subcontinente indiano, a chamada “maior democracia do mundo”, onde metade da população vive na miséria, sem ter sequer acesso a instalações sanitárias, como reconhece o Prémio Nobel indiano Amartya Sen. Mas o império não dorme e na sua determinação de não permitir exemplos que possam despertar os povos oprimidos pelas burguesias latino-americanas ao seu serviço, conseguiu deitar abaixo os principais leaders que tiraram da miséria muitos milhões de cidadãos, no Brasil, na Venezuela, no Equador, na Argentina. A insuspeita revista brasileira Visão, muito activa na campanha contra o PT de Lula e Dilma, publicava em 28 de Dezembro de 2011 um artigo onde estranhava que cinco leaders progressistas tivessem sido atingidos por cancro. São eles, além de Lula e Dilma Rousseff, o malogrado Hugo Chávez, o paraguaio Fernando Lugo e a Presidente argentina Cristina Kirchner, cujo marido Nestor tinha falecido algum tempo antes.

As medidas recentíssimas dos Estados Unidos de bloqueio dos fundos da empresa venezuelana de petróleos PDVSA, e da sua filial que opera no território americano, são mais uma das decisões que não têm qualquer fundamento nem legitimidade, só comparáveis ao comportamento de George W. Bush, aquando da invasão do Iraque, em 2003, condenada pela maior parte dos países. E ao arrepio das Nações Unidas, onde à época imperava John Bolton como seu representante, o mesmo que faz parte actualmente da administração, e pretendia acabar com essa fundamental instituição, apresentando, em 2005, mais de 700 emendas ao projecto de reorganização de Kofi Annan.

Ao contrário de Henry Kissinger, que publicou em 2011 o seu On China, onde destaca a importância histórica daquele país ao longo dos séculos, e um artigo no mesmo ano no Washington Post defendendo a necessidade absoluta de evitar uma nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China, John Bolton, quase ao mesmo tempo, em 18 de Janeiro de 2011, dava uma entrevista ao Financial Times em que afirmava que a América, com outro Presidente depois de Obama, deveria encetar uma política musculada em relação à China. Os resultados estão à vista: guerra comercial, com graves prejuízos para ambas as partes e para a economia mundial, acusações não fundamentadas de espionagem contra a empresa Huawei, com a detenção no Canadá da sua principal responsável, a Sra. Meng Wanzhou. Para quem anda a espiar, declaradamente, há décadas, toda a gente no planeta Terra, é no mínimo uma grande falta de senso!

Investigador em Relações Internacionais; antigo funcionário da Comissão Europeia