O dia em que a União Europeia acabou — 22 de Setembro de 2022

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 17/03/2023)

A História é em boa parte pontuada pelos acontecimentos que marcam o fim de uma dada ordem política. O império Romano findou em 476 quando o bárbaro Odoacro foi nomeado rei de Roma e enviou as insígnias imperiais ao imperador Zenão do império do romano do Oriente. O antigo regime feudal europeu terminou com a tomada da Bastilha, a emergência da Inglaterra como potencia mundial, a passagem de uma potência continental para uma marítima começou com a derrota de Napoleão em Waterloo, o fim do império britânico aconteceu com a independência da Índia, o início do império americano ocorreu com o lançamento das bombas nucleares no Japão e com o dobrar do cerviz do imperador a reconhecer a derrota perante a devastação.

A União Europeia, uma entidade que vinha desde o final da II Guerra a fazer o seu caminho mais ou menos autónomo, reconhecendo que a Europa deixara de ser o centro do mundo em boa parte pelas suas guerras civis — duas guerras mundiais só no século XX — e que seria sensato aceitar um equilíbrio de poderes entre os europeus, defrontou sempre um inimigo concreto: os Estados Unidos. Vários dirigentes americanos perguntaram ao longo dos anos o que era isso da Europa, se tinha telefone. Os Estados Unidos nunca aceitaram uma entidade política soberana europeia! E é esta recusa de aceitar a soberania da União Europeia e de cada um dos seus estados que determina e explica a política americana desde as primeiras tentativas de criar mecanismos de integração política, social e económica, a CECA, o Mercado Comum, a CEE. Quanto a deixar que a soberania europeia dispusesse de um aparelho militar que sustentasse as suas políticas, nem pensar! A relação dos EUA com a Europa foi sempre de tipo colonial! Como o foi no Médio Oriente e na América Latina. Os Estados Unidos assumiram o estatuto de soberanos mundiais. Agitaram perigos, inventaram inimigos, ocuparam territórios.

Que os Estados Unidos tenham lançado um poderoso bombardeamento de manipulação a bramar que a Rússia invadira um país soberano (no caso liderado por uma oligarquia que eles lá haviam colocado) faz parte do modo de exercer o poder totalitário: o que é permitido ao senhor não o é ao servo! Também faz parte do principio da invasão do Oeste americano, tem a tem a força estabelece a lei. Os EUA penduraram no seu peito a estrela do xerife! Não são acusações, nem julgamentos morais, são factos!

A aceitação do facto teve e tem como consequência que os europeus se habituaram à servidão. Nenhum político europeu chega a um lugar relevante se não jurar fidelidade ao Padrinho. A Mafia também é um bom modelo para caraterizar as relações com a América. Esta “rendição” europeia teve a qualidade de fazer os europeus considerarem os serviços domésticos uma atividade nobre e o abanar das orelhas um gesto de afirmação. Os Estados Unidos mandam os europeus olhar para a ponta do dedo e os europeus olham para a ponta do dedo. As leis que impõem aos outros não se lhes aplicam. Nem os conceitos. A soberania é um dos conceitos com que eles humilham os europeus, como o dono de um cão faz atirando um pau para ele ir servilmente buscar e trazer-lhe à mão. Para os Estados Unidos, Cuba, Granada, o Chile, o Brasil, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia não têm direito a soberania. São invadidos ou sabotados. Já a Ucrânia foi elevada à qualidade de soberania absoluta e inviolável.

Mas, ainda assim, os europeus foram encolhendo os ombros e disfarçando, considerando que estávamos a assistir a perversidades de uma potencia colonial sobre colónias, vizinhos turbulentos. Os europeus recorriam ao seu material genético colonial e atribuíam essas atitudes a um dever de civilização a povos do Terceiro Mundo.

A 22 de Fevereiro de 2022, os europeus, os que ainda não têm o cachaço completamente calejado pela canga, viram o império arrombar-lhes a porta da soberania sem um com licença! (A velha reflexão de Brecht: vieram buscar os judeus e eu não era judeu, depois os comunistas, depois os democratas… e agora entraram-me em casa!)

Os EUA impuseram à Europa o envolvimento num conflito com a Rússia a pretexto da gravíssima ofensa da soberania da Ucrânia, um Estado cujo regime eles criaram. Para impor essa intervenção entenderam conveniente dar uma lição de domínio ao mais importante estado europeu: a Alemanha. Atacaram a soberania da Alemanha (um aliado), destruindo-lhe uma infraestrutura essencial, que o estado alemão havia decidido construir e, mais ainda, porque estava no caminho, atacar a soberania de outro estado europeu, a Suécia, realizando uma sabotagem nas suas águas territoriais e, mais ainda violando a soberania europeia e o seu modo de vida, causaram deliberadamente um desastre ambiental de dimensões desconhecidas e que ninguém, nem os serviçais locais, os ribeirinhos do Mar Báltico, se atrevem a reclamar, nem num murmúrio.

Todas as pessoas e todas as entidades recebem o tratamento que deixam que lhes façam. Os dirigentes europeus, no caso o chanceler alemão e a presidente da Comissão Europeia, se tivessem uma gota de caráter teriam respondido a Joe Biden quando ele proibiu a entrada em funcionamento do gasoduto Northern 2, a 7 de Fevereiro de 2022, na Casa Branca, na cara de um servo chamado Sholz e este pobre diabo alemão ficou mudo – como o genro que vive à conta da mulher e apanha um raspanete do sogro -, e a soberania europeia ficou como o gasoduto: em estilhaços. Perante esta abdicação (humilhante) nenhum dos grandes atores da cena internacional terá, doravante, qualquer consideração pela UE.

A irrelevância europeia, que se traduz também em negócios, em criação de riqueza, em participação nos grandes projetos do futuro foi a enterrar com o senhor Sholz a fazer de gato pingado e a dona Ursula a fazer de beata que lê os responsos fúnebres.

O que se esperava que alguém que fosse mais que uma lesma dissesse a Biden seria: É um assunto que me diz respeito. Eu também não me pronuncio sobre a exploração que o seu governo faz de petróleo no Alasca, nem das consequências da produção através das rochas oleosas. A Alemanha respeita a soberania dos EUA e exige que os EUA respeitem a nossa soberania. Elementar.

Há poucos dias, numa visita a Washington, a senhora que faz em Bruxelas o papel de moço de recados que Zelenski representa em Kiev agradecia a Biden ele ter mandado para a Europa o gaz e o petróleo resultante do caríssimo processo de fracking que substituiu o barato russo, esquecendo-se de dizer que ao dobro do preço e a que custos ambientais!

A União Europeia, entidade soberana, com alguma autonomia no mundo terminou quando uma unidade da US Navy’s Diving and Salvage Center colocou os explosivos C4 junto ao pipeline, em águas territoriais suecas. Sabe-se hoje através da recente publicação da investigação do jornalista Seymour Hersh que o planeamento da operação começara nove meses antes: «A decisão de Biden sabotar os pipelines foi tomada depois de nove meses de reuniões secretas no Conselho Nacional de Segurança em Washington para definir a melhor maneira de atingir o objetivo. Desde sempre a questão não foi SE a missão deveria realizar-se, mas como a realizar sem evidências flagrantes dos autores.»

Interrogado sobre as consequências de uma crise de energia na Europa, o ministro Americano dos negócios estrangeiros, Blinken, respondeu: “Foi uma tremenda oportunidade para de uma vez por todas afastarmos a dependência dos europeus da Rússia!” Mais recentemente, Victoria Nuland, uma oficial da CIA que coordenou o golpe em Kiev que levaria Zelenski ao poder, a que declarou perante as dúvidas do embaixador americano a propósito da posição europeia: «Quero que a U E se foda!» e é hoje subsecretária de estado, expressou a sua satisfação pelas notícias da sabotagem do pipeline. “ A Administração está muito feliz por saber que o Nord Stream 2 é agora um bocado de ferro velho no fundo do mar!”

É com estes sérios defensores da soberania dos outros estados que estamos a defender a soberania do Zelenski na Ucrânia.

A União Europeia está no mesmo fundo do mar e nas mesmas condições do ferro velho do Nord Stream 2.


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Polónia — a raposa no galinheiro

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 14/03/2023)

A Polónia está a caminho de se tornar a maior e mais sofisticada potência militar não nuclear da Europa. A militarização da Polónia não se baseia apenas, nem no essencial, na preparação para quaisquer ameaças que venham do Kremlin, mas reflete uma estratégia de ocupar o centro do poder na Europa Central e servir de ponta de lança do plano de longo prazo enunciado por Zbigniew Brzezinski, Conselheiro de Defesa dos Estados Unidos, há vinte e cinco anos, após o fim da URSS, na Conclusão do seu livro: «The Grand Chessboard»: Está na hora de os Estados-Unidos formularem e porem em prática uma geoestratégia de longo prazo na Eurásia. Esta necessidade resulta de duas realidades: A América é doravante a única superpotência mundial e a Eurásia é o palco principal do planeta (… ) A estabilidade da supremacia dos EUA sobre o mundo dependerão do modo como os EUA souberem manipular ou souberem satisfazer os principais atores geoestratégicos no tabuleiro. (…) O centro da Eurásia — espaço compreendido entre a Europa e a China só continuará a ser um “buraco negro” enquanto a Rússia não tiver resolvido os seus conflitos e decidido qual a sua atitude na cena internacional… Este livro tem como subtítulo «American Primacy and Its Geostrategic Imperatives» (1997) — A supremacia americana e os seus imperativos estratégicos.

A militarização e a americanização da Polónia é, tal como a guerra provocada na Ucrânia, uma jogada no xadrez pelo domínio da Ásia Central por parte dos Estados Unidos no seu conflito com a Rússia, impedindo-a de estabelecer alianças com a Europa Ocidental através de relações privilegiadas com a Alemanha. A Rússia tinha como estratégia uma aliança com a Europa através da Alemanha (que para a Rússia era a Europa), os Estados Unidos têm como estratégia utilizar a Polónia para impedir essa aliança, pressionar e desgastar a Rússia, de modo a impedir a constituição de um poder — de uma superpotência que pudesse constituir o terceiro vértice de um triângulo de que os outros dois seriam os EUA e a China.

O governo de Angela Merkel estava ciente destas estratégias e destes conflitos de interesses. No Verão de 2022, na sequência de um longo processo, a Alemanha aprovou a maior despesa para o aparelho militar nos últimos 83 anos, isto é, desde o nazismo, da ordem dos 100 mil milhões de Euros, o que representa 2% do seu orçamento. Aumentará as suas despesas militares dos 50 mil milhões anuais de euros para 70 mil milhões e com este plano a Alemanha pretendia ser a maior potencia militar europeia. Esta era a intenção dos dirigentes alemães que, para não ofenderem os Estados Unidos, lhes iriam comprar o material, incluindo o que a Alemanha fabrica ou isoladamente ou através de consórcios. A Alemanha aceitava enfraquecer a indústria militar europeia — que constrói aviões de combate e de transporte (Eurofighter e A-400, helicópteros — Eurocopter), navios e submarinos, por exemplo, a troco de os americanos os deixarem ser o pivô da Europa.

Mas para o papel de guarda avançada na Europa Central, os Estados Unidos tinham outra peça de serventia mais fiável e submissa: a Polónia.

No início de 2023 a Polónia anunciou o seu programa de militarização e americanização com a maior aquisição de armas convencionais americanas da história. Este mês de Março, Varsóvia assinou um contrato de US$ 4,75 mil milhões em mísseis Patriot, lançou as bases para sua maior compra de tanques de todos os tempos, encomendando 250 tanques M1 Abrahms dos EUA. Comprou 180 Carros de Combate K2 à Coreia do Sul, e outros 400 até 2030. Além disso, a Polônia comprou 48 aeronaves de ataque FA50, 1.400 Blindados de combate de Infantaria, aumentará os seus efetivos para 400.000 e atribuirá entre 3% e 4% do seu orçamento em despesas militares No curto prazo, a Polónia adquiriu 500 HIMARS dos EUA.

Para além destas aquisições de armamento convencional americano — com os consequentes benefícios para o complexo militar industrial dos EUA e para a sua balança comercial, a Polónia ratificou a presença permanente do 5º Corpo do Exército dos EUA, aceitou a instalação de bases para armamento nuclear e estreitou os laços crescentes com os militares britânicos, os tradicionais agentes dos EUA na Europa.

A opção da Polónia pelos Estados Unidos merece ser analisada e ajuda a perceber o mundo no curto e médio prazo. A primeira conclusão a tirar desta opção da Polónia pela estratégia dos EUA é que a União Europeia com estes membros não necessita de inimigos para se tornar irrelevante e até sem qualquer préstimo, para ser um pequeno casino de burgueses decadentes.

A Polónia é um estado-nação muito recente, surge em 1918, na sequência de reorganização europeia após a IGG, enquanto entidade politica com os atributos de um estado-nação do tipo europeu ocidental. Antes os territórios e os povos haviam estado envolvidos nas turbulências das relações entre a Rússia e a Prússia, e também das guerras napoleónicas.

A integração da Polónia como estado vassalo de primeira linha dos EUA, a par da Inglaterra, merece reflexão aos outros estados da união Europeia e aos dirigentes desta, se tivessem engenho para tal. Devemos interrogarmo-nos, os europeus ocidentais, os europeus mediterrânicos, que União é esta em que alguns dos seus membros preferem estar debaixo do domínio dos EUA do que participar no esforço coletivo europeu de desenvolver um espaço político e social de defesa de direitos e de solidariedade, fora das imposições estratégicas da maior e mais agressiva potência imperial? Outra questão que a americanização e militarização da Polónia coloca é da posição da Alemanha, o “motor da Europa”. A militarização da Polónia significa que os Estados Unidos criaram um contraponto aos alemães, um estado-polícia que limitará a autonomia política e estratégica dos alemães (que já era pouca). Condicionada pelo poderio militar da Polónia, a Alemanha perderá acesso aos grandes mercados e aos grandes negócios na Europa e no mundo, com as consequências previsíveis no seu desempenho económico. A melhor estratégia para reduzir a Europa a um subúrbio americano é manietar a Alemanha, debilitá-la economicamente. É um dos papéis que os EUA atribuíram à Polónia. O outro é, obviamente, servir de guarda avançada na Eurásia. Para os EUA a eleição da Polónia como o seu xerife local tem ainda a vantagem de esta não pertencer à zona euro e ser, portanto, muito mais permeável às estratégias do dólar para se manter como moeda de troca mundial!

A Polónia tem todo o direito de defender o que considera serem os seus interesses, mas os europeus de outros estados e a União Europeia (o que resta dela) também, e não é aceitável (porventura a UE já aceita tudo) que estes tenham no seu seio quem apenas utiliza a União em seu proveito (uma vaca leiteira), sujeitando-se ao domínio de uma entidade estranha e não em se integrar num esforço comum europeu.

O alargamento da U E a todo o vapor promovido pela Inglaterra (por Blair, o serviçal sorridente) foi efetuado para dar estes resultados. Esta U E, com a Polónia a fazer o papel de grupo Wagner dos EUA, é um corpo em decomposição. É altura de pensar numa outra entidade que agrupe os estados ocidentais — uma entidade mais pequena, mais coesa, mais autónoma. A realidade é a existência de várias Europas. A Polónia e a Alemanha demonstram-no e estes programas de militarização de acordo com a estratégias dos EUA de satelizarem os estados europeus conduzem a um confronto que os favorece dentro do principio de dividir para reinar.

Para já, no Leste europeu, temos dois grandes estados historicamente inimigos poderosamente armados e a servirem interesses divergentes. Uma bela mecha para incendiar uma fogueira. A Leste, nada de novo…

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Os impérios e a hierarquia do poder

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 05/03/2023)

Os dirigentes europeus riem de quê quando vão a Kiev ou a Washington?

Washington, 3 de Março de 2023, o presidente Joe Biden recebe Olaf Sholz na sala imperial (oval) da Casa Branca. O presidente Biden, com visíveis dificuldades de expressão, lê umas fichas que tenta esconder no colo e profere as frases que lá devem estar escritas: Agradece a Olaf Sholz o apoio da Alemanha à Ucrânia.

A cena é reveladora e antiga: O velho imperador recebe o submisso e quase envergonhado governador de uma velha colónia e agradece-lhe o apoio que este está a dar a uma nova colónia, atacada por um império inimigo. A Ucrânia é um território nos confins do império, como em tempos foram a Germania, a terra dos tedescos, aqueles que não falavam latim, a Gália, a Pérsia e até a Escócia.

Os impérios sempre tiveram problemas nas suas fronteiras. Em 2023 o governador da província da Germânia, aquele que tem o poder subdelegado do imperador para a Europa, foi a Washington reafirmar fidelidade e prometer continuar a servir o imperador para este juntar a Ucrânia ao império.

Estamos a reviver uma situação clássica. A guerra na Ucrânia é uma guerra imperial e a primeira questão que os europeus deviam reconhecer (se tivessem estudado história) é que não são aliados do império: são súbditos. Do que se trata na Ucrânia é de um exercício de poder imperial. Todas as referências a Direito Internacional, a soberania, a guerras justas são fogo-de-artifício. O filósofo inglês Bertrand Russell definiu o poder como “a produção de efeitos pretendidos”, o poder reside, não na produção real de efeitos, mas sim, na capacidade de produzi-los. Trata-se neste caso e mais uma vez na capacidade dos impérios em produzir efeitos. O efeito, neste caso, é o do império apresentar uma ação de conquista de território e de disputa com outro império como a defesa de um direito de um pobre povo à sua liberdade, como um ato de desinteressada bondade em nome de sagrados princípios! Estamos na velhíssima história do Império do Bem contra os bárbaros para lhes levarem as delícias da sua civilização, mas neste caso sem enviar os seus legionários, mas enviando armas aos indígenas.

A guerra na Ucrânia só tem a ver com a balança de poderes e não com o direito internacional declarado igual para todos os países. É uma guerra entre superpotências, um conceito assumido nas relações internacionais, e, segundo Adriano Moreira, num artigo que mantem a atualidade da revista Nação e Defesa, de 1984 “um estatuto político que se ganha e que se perde à margem de quaisquer variações do direito internacional, que se relativiza conforme a definição real do teatro político em causa.

Adriano Moreira, que políticos e fazedores de opinião merecidamente referiram como um dos mais importantes pensadores portugueses do século XX na ocasião da sua morte, deveria ser lido e as suas análises (o que é muito diferente de opinião) serem tidas em conta para perceber o essencial do tempo presente e agir de modo a não cometer os erros do passado. Infelizmente os políticos, incluindo os dos topo do Estado, até nos elogios fúnebres são hipócritas. Escreveu Adriano Moreira sobre o sistema de poderes mundiais do pós-Segunda Guerra:

“A construção aristocrática da vida internacional implica, tal como na vassalagem do regime anterior, que a pirâmide hierárquica se torne mais complexa à medida que o teatro político se alarga. Assim, no Ato Geral da Conferência de Berlim de 26 de Fevereiro de 1885, é muito vasto o número de países que se assumem como diretório do mundo ao determinar as regras que presidirão à ocupação das terras ainda não “senhoriadas”, especialmente a África, e o conceito diferenciador é o de nações civilizadas. Todos os restantes países do mundo, a maior parte dos quais se chamará “terceiro-mundo” nos nossos dias, são considerados pequenas potências em relação aos signatários, e mantêm-se obrigados a aceitar a nova ordem.”

“No pacto da Sociedade das Nações (SDN), depois de feita a prova habitual e periódica da guerra (IGG), clama-se pela liberdade das nações, mas o Conselho consagra o princípio aristocrático ao designar os vencedores para seus membros permanentes, onde os EUA não entram por razões de política interna, mas onde estão presentes com o expresso reconhecimento, feito pelo Pacto, da doutrina de Monroe. O objetivo da experiência (política) nazi era o de hierarquizar os Estados europeus sob a supremacia de um Estado diretor, que seria a Alemanha, mas, ganha a guerra pela Grande Aliança dos países democráticos, o princípio aristocrático voltou a ser consagrado na Carta da ONU, ao definir a composição e competência do Conselho de Segurança. Apenas os membros permanentes: EUA, URSS, Inglaterra, França e China, possuem o chamado direito de veto e, definido o Conselho como mandatário de todos os Estados, a sua responsabilidade pela paz e segurança internacionais vem acompanhada da obrigatoriedade das decisões que tomar nesse domínio, podendo implementá-las pela força.”

“Todavia os factos evolucionaram de maneira que o permanente critério do poder efetivo faria desatualizar rapidamente os textos da ONU, para refinar o princípio aristocrático no sentido de produzir o conceito de superpotência, majestade dependente da posse do ”fogo nuclear.” O Acordo Russo-Americano de 22 de Junho de 1973 sobre a prevenção da guerra nuclear traduz a redução do estatuto de superpotências à URSS e aos EUA. São potências de primeira categoria, isto é, que podem reciprocamente atingir os respetivos territórios ou levar a guerra apenas aos territórios dos outros, e são de segunda ordem os membros do clube atómico que não podem ter mais ambição do que responder a uma agressão que os atinja na sua área territorial. A querela sobre os euromísseis, no ponto em que se apreciou se as armas inglesas e francesas devem ser tomadas em conta na avaliação geral, assenta no reconhecimento de que é de um segundo plano de potências que se está a discutir. (A Inglaterra e a França ) Pequenas potências, segundo o critério dos donos do poder estratégico do “fogo nuclear”, (EUA e URSS) que desenvolvem uma técnica de condomínio procurando assumir a direção dentro da sua área respetiva, de acordo com as suas tradições, experiências, e circunstâncias privativas. Naquilo que diz respeito ao campo soviético, as coisas foram sempre claras, quer na definição ideológica, quer na definição estratégica, quer na organização política do seu espaço. Os conceitos de pátria dos trabalhadores de todo o mundo, de fidelidade socialista, de internacionalismo proletário, são tudo expressões de uma qualificação de hegemonia, na qual a doutrina da soberania limitada é apenas outra forma de dizer o mesmo.” (O PCP deveria ler este último parágrafo.)

“Dentro da NATO foi oportunamente esclarecido que os EUA não têm que consultar os seus aliados quando se trata dos seus interesses mundiais, e por isso nós próprios (Portugal) tivemos a experiência de ver utilizar as facilidades das Lages sem consulta prévia, na emergência do Médio Oriente da guerra dos seis dias, não havendo dúvidas de que a segurança geral poderia ser afetada. A nova categoria de questões chamadas — fora da zona — que a NATO identifica como afetando a segurança do todo embora o conflito surja além dos limites geográficos da Aliança, parece claramente assente na interdependência mundial no sentido de tornar mais fluida a distinção entre questões mundiais dos EUA e questões regionais da NATO. Temos assim que o princípio da hierarquia das potências, de tradição aristocrática, é uma constante da cena internacional, mesmo nos períodos em que a organização se proclama essencialmente democrática desde 1945. Esta organização aristocrática (A NATO — Uma democracia de conveniência), naquilo que respeita ao direito internacional, ainda segue o princípio liberal de proclamar que a lei é igual para todos, aceitando porém que nem todos são iguais perante a mesma lei. Esta desigualdade é manifesta segundo várias perspetivas: a militar, a técnico-científica, a económica, a cultural, a funcional, embora a matriz principal da hierarquia continue a ser a primeira. Por isso, um dos mais notáveis professores do nosso tempo, Raymond Aron, conclui que o fenómeno da guerra ainda é o mais característico e autonomizador das relações internacionais, como disciplina científica, como objeto de estudo, e como variável determinante da hierarquia, das potências . […] O estatuto de grande potência das democracias coloniais europeias foi consumido na última grande guerra (II GM) como preço da vitória, para se encontrarem ”hoje” como o antigo inimigo alemão, na situação de dependência em relação aos dois antigos aliados que obtiveram a qualificação de superpotências. Que a guerra, e a maneira de a fazer, determinam a hierarquia, parece infelizmente de aceitar.”

Seguindo o pensamento de Raymond Aron, citado por Adriano Moreira, a hierarquia atual é a seguinte: superpotências, donas do “fogo nuclear” no plano estratégico, categoria que apenas parecem poder reivindicar a URSS, os EUA e a China; grandes potências, participantes na posse do “fogo nuclear”, formalmente identificadas como membros permanentes do Conselho de Segurança, mas colocadas no patamar dos teatros regionais, categoria em que entram as antigas grandes democracias coloniais que são a Inglaterra e a França, e o novo poder de potências médias, que eventualmente participam na posse do “fogo nuclear” onde podem ser incluídas potências como Israel, a União Indiana, o Paquistão, pequenas potências, as que têm à sua disposição apenas os meios clássicos de fazer a guerra ao menos defensiva, e nelas ainda podemos fazer distinção segundo o critério que se traduz em saber se possuem capacidade para reproduzir e sustentar autonomamente o seu aparelho militar, ou não.

Perante este cenário traçado por duas personalidades que pensam — Adriano Moreira e Raymond Aron — a conclusão é a de que a União Europeia dispõe apenas do “fogo nuclear” da França para suportar uma política autónoma no teatro mundial. O poder do Reino Unido está subcontratado pelos EUA e a Alemanha é um fabricante de armas convencionais para teatros regionais.

A União Europeia podia ter desenvolvido uma política de “interface” entre as três superpotências, uma estratégia de dependências múltiplas, que tem riscos conhecidos, mas também potencialidades viáveis de aproveitar a dissuasão nuclear que impede o confronto direto entre as superpotências para garantir um elevado grau de autonomia, bastando para tal um poder militar inibidor de ataques.

Os medíocres menos que dirigem a Europa, entre a cobardia e a falta de visão, preferiram a dependência e a alienação da sua liberdade (da nossa), no que é um caminho sem retorno e causará alterações radicais no modo de vida dos europeus, a quem será imposto o modelo americano de liberalismo, de desconstrução do estado social, isto porque quem dá o pão dá a educação. Pelo caminho alienaram os dois fatores que asseguravam os meios para sustentar o seu modo de vida: energia barata (o gás russo) e um mercado absorvedor dos seus produtos manufaturados de média e alta tecnologia, a Eurásia.

HIERARQUIA DAS POTÊNCIAS: DEPENDÊNCIA E ALIENAÇÃO — Nação e Defesa N 30 (1984)– Adriano Moreira


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