A gula e a indigestão

(Francisco Louçã, In Expresso, 16/06/2018) 

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Continua a bolha bolsista, apesar da subida dos juros, e os bancos ganham pelos dois lados, pelo crédito que concedem e pelas operações financeiras que intermedeiam.


Para a grande banca, as notícias são boas. Os seis maiores bancos norte-americanos, Citigroup, Morgan Stanley, Wells Fargo, JP Morgan Chase, Bank of America, Goldman Sachs, anunciam que pouparam dois mil milhões de dólares em impostos, graças às concessões de Trump, e esperam ganhar ainda mais nos próximos anos. Com as taxas de juro mais altas, aumenta a margem bancária e, entretanto, os bancos também beneficiam da confiança nas Bolsas, realizando este ano mais 38% de lucro com vendas de ações. Tudo parece conjugar-se para uma bonança perfeita: continua a bolha bolsista, apesar da subida dos juros, e os bancos ganham pelos dois lados, pelo crédito que concedem e pelas operações financeiras que intermedeiam. Só que muita gula devia sugerir cautela: Clément Juglar, o médico que descobriu a estatística dos ciclos económicos, avisava que a razão da crise é a prosperidade, depois da festa vem a ressaca.

Miragem americana 

A Reserva Federal acompanha este entusiasmo e autorizou estes seis bancos a gastarem 72 mil milhões de dólares em compras das suas próprias ações e em dividendos, financiando assim a ilusão sobre o valor da empresa e beneficiando de duas formas os capitais investidos em cada banco. Parece um milagre: a subida dos juros, que tendencialmente arrasta a queda das Bolsas, parece contrariar a lei da gravidade e as ações continuam em valores elevados (em parte pelo truque da aplicação de resultados na compra das próprias ações). É a situação em que todos enganam e todos são enganados, mas ninguém se pode queixar.

Há algum nervosismo, houve mesmo um susto em fevereiro deste ano, quando Alan Greenspan, que durante dezanove anos dirigiu a Fed e foi um dos promotores da desregulamentação e da globalização financeira, anunciou que existem duas bolhas, no mercado de ações e no mercado de obrigações, e os mercados tiveram um momento de pânico. Passou depressa, a Fed continua a subir juros e as Bolsas continuam confiantes.

Uma das razões para esta anormalidade é a certeza de que as autoridades compensarão o sistema financeiro se houver riscos e perdas. Ora, há duas formas de exercer esse apoio pelo soberano: baixar os impostos (à Trump, mas a UE não lhe fica atrás, com a maravilhosa invenção do crédito fiscal por impostos diferidos) e facilitar os esquemas. As duas estão a ser usadas.

Esquemas offshores

Um relatório recente da Oxfam sobre os bancos europeus, com dados de 2015, mostra como estes esquemas funcionam. O caminho é simples: registar os resultados em offshores. Assim, para os vinte maiores bancos europeus, um em cada quatro euros de lucro passou a ser resultado de operações declaradas em paraísos fiscais, com 12% de faturação registam-se 26% dos lucros (os bancos norte-americanos usam o mesmo processo, dois terços da sua redução de impostos é conseguida por aplicações em paraísos fiscais). O que leva a situações curiosas, como o facto de estes vinte maiores bancos terem obtido 4900 milhões de euros no Luxemburgo, mais do que no Reino Unido (o centro financeiro europeu), na Suécia e na Alemanha (a maior economia europeia). Desses lucros, 638 milhões vêm de paraísos fiscais onde estes bancos não têm sequer um porteiro. Ou, também revelador, registando o mesmo volume de negócios no Mónaco e na Indonésia, adivinhe onde conseguem dez vezes mais lucro.

A ovelha negra alemã

O problema é que, neste mundo deslumbrante, há ovelhas negras. A nossa é o Deutsche Bank, e é logo o maior banco europeu, e alemão, ainda por cima. Segundo “The Economist”, o Deutsche Bank gastou 40 mil milhões com pessoal numa década, o que lembra prémios generosos, mas só obteve um aumento de lucro de 2% no ano passado, tendo perdido substancialmente na sua operação de investimento, ou seja, na especulação financeira. É precisamente aí que está mais exposto, porque o DB gera uma carteira de 43 biliões em derivativos. É um valor nocional, aliás o seu valor real de mercado é desconhecido e as autoridades europeias de supervisão bancária evitam cuidadosamente meter-se no assunto, mas é uma montanha de dívida.

O DB é um perigo ambulante, cuja solidez depende unicamente da sustentação do Governo alemão (a garantia implícita tem um valor económico elevado e foi o que salvou o banco desde o crash financeiro da década passada). Os próprios acionistas avaliam o banco em 40% do seu valor contabilístico e está para ver se a possível fusão com o Commerzbank, que seria uma grande operação de Merkel, é suficiente para limpar e reorganizar um gigante de pés de barro.

Gula antes de tudo

“Não vejo isso a acontecer brevemente, mas um dia haverá uma nova crise e os países com dívidas públicas mais baixas têm menos hipóteses de serem atacados pelos mercados”, explicou em Lisboa Klaus Regling, o chefe do mecanismo europeu de estabilidade. É curiosa esta certeza conformista sobre a nova crise, mas é mais revelador que um político apresente os mercados financeiros como um lobo exterminista. Tudo certo, a bem dizer.

Pode então prolongar-se esta bonança que engorda os grandes bancos? Sim. Mas o preço é acumular fatores de risco. O BCE anunciou que, embora em montantes reduzidos, continuará até dezembro o seu programa de injeção de liquidez e que tentará manter os juros baixos até ao verão de 2019, mas não é certo que possa manter o segundo prazo. De facto, Draghi está a condicionar o seu sucessor e a sua escolha tem um único motivo: concluir o mandato sem que ocorra uma nova crise europeia. E para isso precisa que a banca alemã e a banca italiana não sofram abalos, ou seja, que Merkel faça pela fusão do Deutsche e do Commerzbank o que a Comissão Europeia não permitiria a nenhum outro governo, e que todos se esqueçam da Itália.


Kim e Justin

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A Justin Trudeau está reservado um círculo especial no inferno de Dante. Ele é “fraco” e “muito desonesto”, escreve Trump e reforça o seu ministro do Comércio, Wilbur Ross. Macron, tão abraçador, ficou aborrecido, e Merkel, tão contida, acha que a raiva não é boa conselheira. Do outro lado do mundo, Kim Jong-un, o rocket man, que era “baixo e gordo”, passou a ser “talentoso” e “bastante inteligente”, até porque tem umas praias magníficas, onde se podiam construir condomínios apetecíveis e atrair os turistas chineses e sul-coreanos, cheios de dinheiro. Trump está de olho no negócio. Assim, a cimeira do G7 falhou e a de Singapura resultou.

Uma e outra ficam-se por declarações de intenções, mas para os seus aliados tradicionais e muito fiéis Trump reservou a evocação de motivos de segurança para taxar as importações de aço e alumínio, enquanto para Kim reservou a promessa de visitas e entendimentos. Com uns começa a guerra, com outro suspende a guerra. Conclusão que tirarão os aliados: o mundo é imprevisível. Conclusão dos inimigos: Trump é previsível.


O eixo Roma-Viena-Berlim

Foi na quarta-feira, numa conferência de imprensa em Berlim, que o ministro do Interior, Horst Seehofer, da ala bávara do partido de Merkel, anunciou um eixo Roma-Viena-Berlim sobre a imigração. O anúncio é extravagante, surpreende que um ministro do Interior alemão dê uma conferência ao lado do primeiro-ministro da Áustria, Sebastian Kurz, mas sobretudo que anuncie uma viragem da política alemã sobre os refugiados.

Seehofer contou que tinha falado com Salvini, o líder da extrema-direita italiana, ministro do Interior, e que “é sua vontade que Roma, Viena e Berlim trabalhem juntos ao nível dos ministros do Interior nas áreas da segurança, combate ao terrorismo e na questão essencial da imigração”. O Aquarius já estava à procura de porto de abrigo, a questão política da imigração está em cima da mesa de reuniões de emergência entre Conte e Macron, e um ministro alemão toma a iniciativa de anunciar um eixo entre Berlim e dois governos com a extrema-direita.

No meio de tudo isto, Merkel e Macron encontram-se na próxima semana para tentar compor as propostas para a cimeira do fim do mês. Tudo se vai decidir, continuam a prometer, mas para Merkel tem de ser tudo em pequeno: poucos milhões para um orçamento de investimento europeu, uma força de intervenção rápida subordinada a Bruxelas e, para ter a certeza de ser recusado, um sistema europeu centralizado de acolhimento de imigrantes. O eixo Roma-Viena-Berlim encarregar-se-á de abater essa proposta. O problema é que parece que esse eixo começa a ter voz.

A Europa e o abismo

(Marco Capitão Ferreira, in Expresso Diário, 30/05/2018)

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(Esta é a discussão que, por cá, ninguém quer fazer, pelo menos os partidos maioritários, PS e PSD. Mas, como chega sempre o dia da nossa morte – não se sabe é quando -, assim também lá chegará o dia em que teremos que enfrentar a realidade. Por enquanto, como bem diz o povo, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. No caso de Portugal, em vez de “pau”, talvez seja melhor dizer turismo, juros baixos, etc.

Comentário da Estátua, 30/05/2018)


Itália é apenas o último episódio na degradação contínua de um aspeto central da construção Europeia e da moeda única: a sua compatibilidade com o funcionamento das Democracias.

Diz muito do monumental falhanço que é a arquitetura do Euro que, por estes dias, entre a proteção da ortodoxia financeira inerente às regras e a garantia do direito dos povos a decidirem o seu futuro, faz com que prevaleça em muitas cabeças a segunda.

Como se já não bastasse que, pela segunda vez desde 2011, em Itália se vá nomear um Governo “tecnocrático”, que é uma palavra simpática para dizer que se vai nomear alguém sem legitimidade democrática, Bruxelas decidiu piorar as coisas com o habitual tom paternalista e ameaçador e as subsequentes retratações mais ou menos tíbias.

O guião é já bem conhecido, os (ir)responsáveis europeus de um lado, e os mercados do outro, num ciclo mutuamente alimentado, com tal grau de sincronia que nos podemos interrogar se ainda sabemos onde começa o poder económico e acabam as instituições europeias, ou se a sua fusão é já completa, criam a própria realidade para a qual avisam: Instabilidade nos mercados. Juros mais altos. Bolsas em queda.

A solução política não agrada ao binómio Bruxelas/mercados e, mesmo sem um único ato real de governação, a mera possibilidade da sua existência, lança a instabilidade nos mercados, como se alguma coisa de substantivo tivesse mudado.

Os mercados são instrumento de Bruxelas, ou Bruxelas é o instrumento dos mercados. Nenhuma das duas é uma coisa boa. E, infelizmente, parecem cada vez mais verdadeiras.

Hoje é Itália, ontem foi a Grécia. Até nós tivemos direito a uma pressão elevadíssima aquando da formação do atual Governo. Eu ainda me lembro dos avisos de que teríamos um segundo resgate, sanções, orçamentos “chumbados” em Bruxelas. Porque a nossa solução de Governo não agradava. Também me lembro de o Presidente da República à data ter “ameaçado” com o fim do Mundo e/ou um Governo de gestão de Passos Coelho, mesmo se chumbado (como foi) por uma maioria no Parlamento, que duraria meses ou mesmo um ano. Há sempre colaboracionistas oportunos nestas coisas.

É assim que se têm plantado e regado as sementes dos populismos e dos autoritarismos que vão despontando por aí: o mais provável resultado desta última incursão pelo disparate europeu é que Itália venha a ser governada por uma maioria agora reforçada de uma mescla de extrema-direita e populistas. Quem desconhece a história pode não se lembrar, mas quando Hitler chegou ao poder já Mussolini governava desde 1922, e Itália já era uma ditadura desde 1925. Vai fazer um século. Já tínhamos tido tempo de o aprender.

Vamos cortar a conversa a direito: se a União Europeia e o Euro não são compatíveis com a Democracia, o projeto europeu matou-se a si próprio. Porque a Europa nasce das Democracias. Nasce da vontade de partilhar valores, de afirmar a liberdade, de garantir a paz. Se não serve para isso, não serve para nada.

O poder excessivo das agências de rating

(Paul de Grawe, in Expresso, 21/10/2016)

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                    Paul de Grawe

O BCE delega em quatro agências de rating o seu poder de decidir que dívida deve comprar. Dá um tremendo poder a indivíduos obscuros

Os mercados financeiros portugueses estão nas mãos de uma obscura agência de rating canadiana, a Dominion Bond Rating Service (DBRS). À data em que publicamos esta coluna, a DBRS já deve ter atualizado o rating da dívida soberana portuguesa. Um downgrade significaria que as taxas de juro da dívida subiriam ainda mais, prejudicando gravemente a economia lusa. Recentes declarações do economista-chefe da DBRS já levaram a aumentos significativos nas obrigações a 10 anos.

Como é que uma agência tão pequena tem tanta influência? Decerto que não é pela força da sua análise. Verifiquei alguns dos relatórios da DBRS relativos a outros países da zona euro. São exercícios de corta e cola de relatórios oficiais existentes, do FMI, da Comissão Europeia e da OCDE. Os meus alunos da Escola de Economia de Londres poderiam facilmente produzir relatórios semelhantes, com a mesma qualidade, ou falta dela, mesmo sem visitar Portugal.

A DBRS e outras agências de rating têm tanto poder porque esse mesmo poder lhes é dado pelo Banco Central Europeu. O BCE decidiu que no contexto do seu programa de quantitative easing só compraria dívida de países com um rating mínimo. Estes ratings, porém, são elaborados por agências privadas de notação financeira como a DBRS (e outras como a Standard & Poor’s, a Moody’s e a Fitch). Por outras palavras, o BCE delega nestas agências de rating o poder de decidir que dívida deve comprar. Ao fazê-lo, o BCE dá um tremendo poder a indivíduos obscuros nestas agências privadas.

A decisão de parar de comprar dívida soberana de um determinado país é de grande importância. Afeta a credibilidade do Governo e o custo das obrigações emitidas. Pode levar a uma crise autoalimentada, na qual a perda de confiança leva os investidores a vender a dívida que detêm aumentando os juros e precipitando uma crise de liquidez. É completamente inaceitável que o BCE coloque nas mãos de agências de rating esta decisão, abdicando, assim, da sua responsabilidade de manter a estabilidade financeira.

Será que as agências de notação financeira merecem este enorme poder que o BCE lhes entrega? A resposta é um rotundo não. As agências de rating falharam miseravelmente no passado; fizeram-no quando não viram aproximar-se a crise de 2007-08. São, ainda, objeto de grandes conflitos de interesses — ninguém as responsabiliza pelas suas ações —, se erram no rating, o que acontece demasiadas vezes, não sofrem as consequências. Outros as sofrem.

Será que as agências de notação financeira merecem este enorme poder que o BCE lhes entrega? A resposta é um rotundo não

Depois da crise financeira, houve consenso generalizado de que as agências de rating tinjam demasiado poder e que era, uma fonte de instabilidade nos mercados financeiros mundiais. Tornou-se consensual que o poder destas agências de notação devia ser reduzido. Ora, o BCE faz exatamente o contrário. Ao seguir cegamente as decisões de rating das agências, o BCE aumenta o seu poder.

A solução consiste em recuperar o poder para si mesmo. Isto pode ser feito facilmente. O BCE devia proceder à sua própria análise de risco das obrigações dos países-membros, pois, tem um grande número de economistas altamente qualificados com melhor conhecimento dos países da zona euro do que os economistas de corta e cola empregados pelas agências de rating.

Precisa, porém, de alguma coragem para o fazer. A razão pela qual o BCE entregou a terceiros a decisão crucial de decidir quais o países a quem pode comprar obrigações é meramente política. O BCE tem medo de que qualquer decisão, baseada nas suas próprias análises, de não adquirir dívida de um determinado país conduza a críticas abertas dos políticos da zona euro. Esta não é uma boa razão para deixar que indivíduos não escrutinados, empregados de agências de notação canadianas ou americanas, tomem uma decisão que pode desestabilizar países.


(Professor da Universidade Católica de Lovaina, Bélgica)