A margem de certa maneira

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 23/11/2019)

Clara Ferreira Alves

(Belíssimo texto da Dona Clara. Quem viveu esses tempos logo depois do 25 de Abril sentirá como, em meia dúzia de parágrafos, se revive pujante o “espírito da época”. É por isso que lhe perdoamos os dias em que a tendência para o dislate preconceituoso se sobrepõe ao capricho da pena… 🙂

Estátua de Sal, 23/11/2019)


Era junho e a piscina estava vazia. Nas cadeiras, meia dúzia de corpos olhavam o sol. Olhar o sol tinha-se tornado um hábito a seguir à revolução que em abril fizera um ano, e o verão anunciava-se quente. Era em 1975.

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Naquele dia de junho sem nuvens, na piscina municipal de Coimbra, meia dúzia de estudantes espraiados ouviam música nos altifalantes. Música revolucionária. Paz, pão, habitação. Baladas. O poema do António Gedeão, eles não sabem que o sonho comanda a vida, e a ‘Grândola’ do Zeca Afonso, o Adriano, o Fausto, o Sérgio Godinho. E a voz do Zé Mário Branco. As pessoas diziam Zé Mário como se o conhecessem, como se fosse um amigo que tivesse desembarcado em Santa Apolónia depois do exílio parisiense. A voz dele foi sempre diferente, um travo intelectual e uma secura poética que não diminuíam a toada revolucionária trespassada por versos difíceis de poetas difíceis. O O’Neill era um deles, e Camões, o mais complexo, o menos dúctil, o mais verboso. No altifalante, José Mário Branco dizia, como tinha profetizado, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Tinham mudado, se tinham. Logo a seguir, o Sérgio arrancou com este é o primeiro dia do resto da tua vida, completando as estrofes camonianas.

De repente, embalada pela melodia e as palavras, pensei seriamente na revolução. Desde o dia 25 de abril que não tinha pensado seriamente no assunto, o país cavalgara a galope, sem rédea e sem frio, embriagado de velocidade e risco. Embriagado de liberdade. Os tempos tinham mudado de uma madrugada para a manhã do dia claro e limpo. Ninguém tivera muito tempo para pensar no assunto, o que queremos mudar, quanto, qual a vontade de mudar quando acalmasse o vento revolucionário. Entre enfiar cravos nas espingardas e caminhar para o socialismo, o país baloiçava entre poderes militares e civilistas, partidos que nasciam, golpes de cinco minutos, barricadas e protestos, alegria e ressentimento. Lembro-me de assistir, na Feira Popular de Lisboa, a uma caça a um pide, entrevisto por estudantes que deambulavam. Foi um divertimento para uns, uma missão para outros. Tudo era uma confusão, um sobressalto, uma vocação juvenil. Tudo cheirava a uma ordem estabelecida que tinha sido morta e vencida. O país cinzento estava ao rubro e de todas as cores. As armas andavam de mão em mão e a cantiga continuava a ser uma arma.

Dei por mim, ao ouvir a sonoridade geométrica do José Mário Branco, nunca toldada pelo sentimentalismo ou o bafio, a pensar, a felicidade é isto. A revolução é isto. A certa possibilidade de tudo. Antes de 25 de abril, quando os exilados conspiravam nos cafés de Paris, as palavras eram clandestinas. Eram hostis ao regime e o regime não as apreciava. Era como se a voz dele, e a música, e os poemas, que tinham servido de bandeira da resistência a uma vida cinzenta, ganhassem um significado. E certifiquei-me, cantarolando, que uma das coisas boas da revolução era a liberdade que dava às mulheres. Mudados os tempos e as vontades, as mulheres iriam ter uma palavra a dizer sobre o seu futuro.

Não mais a margem. A propriedade do pai para ser entregue ao marido no dia do casamento. Não mais as humilhações e as vergonhas, as censuras e as proibições, a imposição de esconder o corpo e os sentimentos, de ser sujeito passivo da ira e da opressão. Os poemas não diziam tal coisa, mas ao pensar seriamente na revolução, aquela ficou a ser a banda sonora dos tempos novos. Não mais a graçola com insinuação sexual. Nas aulas do vetusto e sádico professor de Direito, Paulo Cunha, da Faculdade de Direito de Lisboa (transitei para Coimbra quando o MRPP e o PCP fizeram da faculdade um ringue de pugilismo e passagens administrativas e o Copcon resolveu entrar por ali adentro e destruir a biblioteca), que era tomado como um crânio de jurisconsulto, ouvira muitas coisas.

A aula era patrulhada por gorilas que atuavam ao menor traço de insurreição. Paulo Cunha preponderava. Uma vez mandou uma aluna mais velha, casada, a única aluna casada, para casa. Vá coser as meias e tratar do marido. Minha senhora, começava ele as frases. Outras vezes, insinuava que o débito conjugal, nome jurídico da violação conjugal, era sem dúvida uma prerrogativa interessante dos códigos antigos, e tinha prazer em dialogar com uma aluna, escolhida a dedo pela cara, sobre as vantagens do dito débito, presente no Código de Seabra, que ele citava e parecia julgar superior ao Código de 66.

Outro professor, hoje democrata e justo, entregou provas com a frase, há aqui um 15. Pausa dramática. Um 15 era uma nota tão superior, tão acima dos padrões normais onde imperava o 12. Um valor superior estava reservado para os rebentos machos de uma dinastia académica ou política, porque a vocação classista e machista do regime era insuperável desde que os rebentos não fossem muito imbecis. Dar um 15, em 1973, era considerado um ato subversivo. Um professor que desse um 15 tinha perdido a cabeça.

E o dito professor, acentuou. Há aqui um 15 e, pausa dramática, pertence a uma senhora! Uma mulher tinha conseguido um 15. O 15 era meu e soube-me à fúria que a introdução me causou no meu 1º ano. Uma senhora. Nunca esqueci.

Na piscina de Coimbra, a ouvir o José Mário Branco, pensei, aquilo acabou. Acabou de vez. Estava enganada. No fim do curso, um vetusto professor de Coimbra, de esquerda, disse-me claramente que nunca tinha havido doutoramento em Direito Penal naquela universidade, e nunca iria haver. Para uma senhora. Olhou-me nos olhos e acentuou, solene, para uma senhora. Estava enganada. Há sempre um pequeno espaço entre movimento e laço, como na canção. Mas naquele instante de embriaguez livre e libertária, ao ouvir o rigor da voz, acreditei durante minutos que a vida mudara para sempre e que tudo seria possível. Devo-lhe isso. Essa felicidade breve e quente. E essa definição exemplar, margem de certa maneira.

José Mário Branco

(Francisco Louçã, in Expresso, 19/11/2019)

Tudo o que se vai lembrar e dizer será certo. Que, no exílio em Paris, foi um animador de festas populares em que semeava a luta contra a ditadura, que os seus discos contrabandeados chegavam como uma alegria e uma inspiração.

Que tocou com o José Afonso e que o acompanhou com a fidelidade da grandeza.

Que voltou cheio de energia, que o GAC era uma força da natureza e que inspirou a alma daquela revolução.

Que houve tristeza nos anos oitenta, pesados, e que o “FMI” foi logo a enunciação dessa exasperação, quando a “consolidação” e a dívida externa e a ordem novembrista eram o mantra do regime.

Que procurou novos caminhos, que andou pelo “Combate” e se juntou às campanhas que o PSR reinventou, depois ajudou a fazer o Bloco, sempre a exigir mais e a dizer o que pensava, nunca lhe bastou a modorra dos tempos e as trincheiras em que se espera e raramente alcança.

Que cantou à capela no Coliseu ou com um coro que transbordava no palco.

Que foi um músico enorme, que foi um poeta notável, que procurou também as palavras de outros que podiam levantar a emoção mais verdadeira, que não teve medo de barreiras, que nunca abandonou as suas causas, que procurou os amigos, que cumpriu a vontade de fazer um extraordinário espetáculo e disco com Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, dois músicos que estimava como dos maiores, que foi cúmplice de Camané na sua busca do fado, que com a Manuela de Freitas fez teatro e cinema e canções e tantos anos, que foi inquieto e que houve tristeza quando não tinha palavras novas para a sua indignação, que sentia tudo o que se mexia na sociedade e procurava os sinais da inquietude e revolta. Tudo o que se disser será certo.

Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?

Faltará sempre o que não se consegue dizer. Que detestou a podridão e que amou a vida. Que não tolerava cinismo e má fé. Que apontava a dedo o charlatão. Que tinha mais dúvidas do que reconhecia, quem não tem?, e que gostava de “épater le bourgeois”. Que tinha a arte de querer tudo e não ficar com nada. Que foi genial.

Tudo se dirá, menos que a morte é tramada. Sobram os discos, a música, as letras, as entrevistas, mas não ficam as conversas, nem a intransigência, só a memória ainda resta para olhar para trás e respeitar o que desaparece com o fim. E é tão pouco, só a lembrança, falta a vida vivida, não é, Zé Mário?

Onde estará amanhã a lágrima daquelas almas censuradas, a voz que se levanta, o olhar intenso, as palavras que ferem? Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?



O México entre a renovação, o crime e o FMI

(Francisco Louçã, in Expresso, 30/062018) 

LOUCA3

Andrés Obrador poderá ganhar no domingo as eleições no México contra as humilhações lançadas por Trump e o sistema de corrupção e violência do narcotráfico 


Elegendo de uma só vez Presidente, deputados e governadores, amanhã o México vai votar. A eleição presidencial, que define o poder político, pode ser ganha por Andrés Manuel Lopez Obrador, Amlo para a população e imprensa. Amlo é um candidato veterano e que, por isso, sabe dos riscos do sistema, pois esteve sempre à frente nas sondagens e foi derrotado em 2006 (acabaria por ter 35%) e 2012 (32%). Só que, desta vez, a sua vantagem é muito substancial: nas sondagens publicadas há uma semana, e confirmadas por estes dias, tem 49,6% contra 27% de Anaya Cortés (candidato de uma coligação entre um partido de direita, o PAN, e um de centro-esquerda, o PRD) e 20% de Meade (candidato do partido que durante oitenta anos governou o México, o PRI).

Trump e guerras internas 

As eleições ocorrem num contexto marcado por duas grandes pressões. Uma é a de Trump, que prometeu fazer o México pagar o muro a ser construído na fronteira e que tem radicalizado a sua posição contra as famílias migrantes. Outro é a crise social e a corrupção do sistema (por exemplo, o governador de Vera Cruz está acusado do desvio de três mil milhões de dólares para o seu bolso), conjugadas com a violência dos gangues do narcotráfico (200 mil assassínios desde 2007). Amlo é apoiado por um movimento maioritário porque surge como a alternativa de orgulho nacional contra Trump e de resistência à corrupção e insegurança.

O crescimento desse movimento cria a possibilidade de uma maioria parlamentar do Morena, o partido de Amlo, e da sua aliança com um grupo de esquerda, o Partido do Trabalho, e um partido de direita, o evangélico Encuentro Social. Se esta coligação obtiver mais de 250 deputados, Amlo terá poder efetivo.

Um apagão pode mudar as eleições 

Pode não ser assim, o México tem uma história de surpresas. Em 1988, a candidatura de um dissidente do PRI, Cardenas, filho do Presidente do México que tinha nacionalizado o petróleo nos anos 1930, estava à frente na contagem dos votos quando houve um apagão. Quando a eletricidade foi restabelecida umas horas mais tarde, Salinas de Gortiari, o candidato oficial do PRI, tinha ganho. Estudei o caso de Salinas no livro que publiquei recentemente com Michael Ash, “Sombras”, porque se trata de um exemplo notável da influência dos programas de educação de dirigentes latino-americanos em universidades dos EUA e de viragem neoliberal imposta por personagens treinados pelas instituições da globalização: Salinas, com doutoramento em Harvard, tinha sido vice-diretor do FMI (1956-8), o seu ministro das finanças vinha do MIT, os ministros do comércio e do orçamento de Yale e o negociador do tratado Nafta (um acordo com os EUA e o Canadá para comércio livre) vinha de Chicago.

Ganhando as eleições com fraude, Salinas não se coibiu de impor um programa de privatizações incluindo a companhia aérea, as indústrias de aço e química, as seguradoras e os bancos, a televisão, a rádio, as companhias de telefone e comunicações (assim nasceu a fortuna do homem mais rico do mundo, Carlos Slim).

O risco do subdesenvolvimento

Se as eleições não forem falseadas, poderá Amlo fazer uma viragem, defendendo o seu país, combatendo a corrupção, favorecendo os direitos das populações indígenas? Os opositores temem-no e acusam-no de ser um novo Hugo Chávez, embora o candidato se apresente mais próximo do que foi a presidência de Lula, moderado, aliado a um sector da direita e muito temeroso dos poderes económicos.

O caderno de encargos é gigantesco. O México é um dos países mais desiguais da OCDE (os 10% mais ricos recebem 36% do rendimento nacional, os 10% mais pobres ficam com 1,8%). A agricultura familiar foi destroçada, mais de cinco milhões de camponeses foram arruinados pelas importações de cereais subsidiados dos Estados Unidos. E a subida de juros no vizinho do Norte leva a uma fuga de capitais, o que enfraquece a relação cambial e a capacidade produtiva do México. Finalmente, o FMI pressiona para uma “consolidação orçamental”, que já sabemos o que significa: num país com tanta pobreza, reduzir as despesas orçamentais com os escassos serviços sociais pode parecer bem nas estatísticas em Washington, mas condena muitas pessoas à miséria.

Essa é a herança que Amlo pode receber amanhã. É o que lhe pode dar a vitória, pela esperança da mudança, e o que lhe impõe os riscos, pela pressão dos poderes que têm pilhado o México.


JOSÉ_MARIO

Inéditos 1967-1999, de José Mário Branco

Ao fim de mais de uma dúzia de anos sem gravar novo disco, José Mário Branco recolheu e publicou músicas de três décadas que nunca tinham sido incluídas num CD do autor. Algumas estavam dispersas em filmes (“Agosto”, de Jorge Silva Melo, “A Raiz do Coração”, de Paulo Rocha, “Gente do Norte”, de Leonel Brito, “O Ladrão do Pão”, de Noémia Delgado), ou foram feitas para peças de teatro (“Fim de Festa”), ou para um musical (“Le Cafard”), ou para discos coletivos (para a CGTP, ‘Remendos e Côdeas’; para a campanha pela libertação de Otelo, ‘Quantos é que Nós Somos’). Os dois CD incluem ainda algumas cantigas de amigo, três exercícios (“fantasias”) apresentados num único espetáculo no Instituto Franco-Português, e a muito anterior ‘Ronda do Soldadinho’, um panfleto contra a guerra colonial, de que pelo menos três mil exemplares foram introduzidos clandestinamente em Portugal.

Este “Inéditos 1967-1999” são assim uma viagem a três décadas de trabalhos essenciais e uma oportunidade para registar estilos diferentes, canções em diversos tons e línguas, documentando uma história do pensamento, das intervenções e da música de José Mário Branco. Para quem sente a falta da sua música, aqui está um encontro imprescindível; para quem tem sentido o seu trabalho de diretor musical com Camané, encontrará uma confirmação das suas capacidades tão raras de orquestração; para quem se lembra, ouvirá letras de combate.


A estratégia do imbróglio

Quando este jornal for publicado já terá terminado o Conselho Europeu e os leitores saberão mais do que eu quando escrevo esta nota. Mas constato que a preparação da cimeira seguiu meticulosamente a estratégia do imbróglio.

O imbróglio primeiro é o dos refugiados. Com a Itália a exigir dinheiro e fronteiras e a coligação alemã em risco se não forem tomadas medidas repressivas, Juncker ressuscitou as “plataformas de desembarque”, que quer colocar no Norte de África ou nos países que querem aderir à UE nos Balcãs.

Ou seja, um novo negócio como com Erdogan, para aprisionar os migrantes em campos de retenção. A escolha desta sinistra iniciativa seria o melhor prémio à extrema-direita. E a “coligação de voluntários” que Merkel pede para expulsar os imigrantes para o país onde desembarcaram é uma guerra contra a Itália, Espanha e Grécia.

O segundo imbróglio é o da reforma do euro, prometida com fanfarra para esta cimeira. Afinal, o que é proposto “não se trata de um Big Bang”, escreve Centeno na “Eco”. Mais ainda, o ministro português desvaloriza a proposta de cooperação orçamental europeia com um subterfúgio: “Para alguns, um instrumento orçamental ou um orçamento da zona euro é uma prioridade-chave. Esta ideia tem levantado preocupações relativamente ao risco moral e a transferências permanentes, que não podem ser ignoradas e devem ser tidas em conta”. O compromisso, para Centeno, está em mexer o mínimo possível.

Havia pouco em cima da mesa, só as ambíguas propostas de Macron e Merkel para 2021, que Vítor Constâncio arrasou num tweet como “inadequadas”. Entre nós, o PSD entusiasmou-se e propôs um Fundo Monetário Europeu, o que é uma cópia do que está a ser discutido desde há um ano, mas a verdade é que não se sabe como é que o Mecanismo Europeu de Estabilidade se transforma nesse Fundo, visto ser preciso um novo tratado para o efeito. E unanimidade é uma mercadoria cara na União. Já há doze governos a recusarem as propostas Macron-Merkel e não vejo como se podem fazer omeletes sem ovos. Ou seja, a cimeira foi intensamente preparada pela vontade de agravar o imbróglio.