Fados de rara beleza

(António Costa, in Diário de Notícias, 02/01/2021)

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Tive a felicidade de a nossa última conversa ter sido uma conversa feliz. Na véspera de Natal, ele estava animado e confortou-me na solidão do meu confinamento profilático. Depois de meses de problemas de saúde senti-o aliviado. Só teria à mesa da consoada o Gil, mas no dia seguinte viriam à vez a Cila, o Becas, as netas e os netos. Em janeiro tinha novo disco na calha e finalmente podíamos voltar ao Poleiro para jantar com a Fernanda e a Maria Judite, pôr a conversa em dia, muito atrasada por sucessivos adiamentos que achaques diversos ou imprevistos de agenda foram impondo. Que bom, finalmente iríamos matar a saudade partilhada da conversa adiada. A morte foi outra e a saudade viverá para sempre. Mas gosto de nos termos despedido felizes.

Nos últimos 12 anos tive a felicidade de conhecer, trabalhar e privar com o Carlos do Carmo. Honrou-me, aceitando ser meu mandatário às candidaturas à CML em 2009 e 2013. E foi um mandatário sempre presente e exigente. Guardava os folhetos de campanha e regularmente vinha pedir contas, tomando nota do que estava cumprido, do estado de execução do que estava em marcha, assinalando o que faltava cumprir. Quando deixei a câmara pude sempre continuar a contar com o seu apoio, talvez nem sempre político, mas sempre pessoal e com muita ternura. Liberto das responsabilidades de mandatário, não se sentia obrigado à exigência, mas livre para expressar a amizade incondicional.

Conhecêramo-nos na preparação da candidatura do fado a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, eu presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ele coembaixador da candidatura com a Mariza. Para o Carlos do Carmo a candidatura era muito mais do que o reconhecimento internacional da canção de Lisboa. Era um elemento central de uma estratégia para assegurar a perenidade do fado, tema que o obcecava. O Museu do Fado, a nova história da autoria do Rui Vieira Nery, as lições que deixava ao seu público – “Alto! O fado não se acompanha com palminhas” – encadeavam-se na ideia muita clara de que o fado precisava de ter bases muito sólidas para poder suportar a indispensável inovação e o rejuvenescimento de intérpretes e públicos sem deixar de ser o que é, fado.

Como costumava recordar, teve a oportunidade de conhecer e aprender com todos os que fizeram a história do fado no século XX e sentia-se investido na responsabilidade de assegurar a transmissão desse saber, bem sabendo que a atualidade do fado foi sempre encontrada nesse delicado equilíbrio entre a intemporalidade do clássico e o arrojo da inovação, que nunca hesitou em ousar. À viola e à guitarra, juntou o contrabaixo, a orquestra sinfónica ou o piano, com o grande António Vitorino de Almeida, e mais recentemente com o Bernardo Sassetti ou a Maria João Pires. E sobretudo o ânimo com que acarinhou as novas gerações de fadistas a quem rendeu homenagem, como que passando o testemunho, no notável disco de duetos que editou em 2013. E os novos poetas e poetisas que incessantemente procurava e queria trazer para o fado, enriquecendo o reportório fadista. Este era um tema que o apoquentava, triste em ouvir alguém da nova geração perpetuar um velho fado marialva, desgostoso quando os via a resvalar para a canção ligeira. Fado é fado e só tem futuro se for fado novo que renove públicos a cada geração.

Foi assim comigo. Devo ao Carlos do Carmo o meu encontro com o fado e muito antes de o ter conhecido pessoalmente. Como por certo aconteceu com muitos jovens da minha geração, o fado era um lamúrio triste que só se ouvia no rádio em casa dos avós. Lá por casa, o fado era mesmo música execrada, proibida, símbolo do regime. A música chegou primeiro, no extraordinário instrumental Fado Bailado no sopro do Rão Kyao, que me despertou a curiosidade. Mas foi com o álbum Um Homem na Cidade, ou fados como Lisboa Menina e Moça ou Estrela da Tarde, que me encontrei com o fado-canção e fui redescobrindo as Canoas do TejoBairro AltoPor Morrer Uma AndorinhaDuas Gotas de Orvalho

Devemos a Carlos do Carmo, Ary dos Santos, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, entre outros, a libertação do fado da simbologia do Estado Novo, abrindo as portas para a sua renovação no Portugal democrático e europeu que Abril abriu. Carlos do Carmo foi o rosto e a voz do fado novo, que nos trouxe até aqui… E mais além.

Claro, foi também um notável intérprete, como o demonstrou sempre que saiu do fado para cantar Jacques Brel ou Frank Sinatra, os seus grandes ídolos. Intérpretes há e haverá muitos. Mas quem tenha resgatado o fado à ditadura, o tenha renovado na democracia, trabalhado militantemente para a sua consagração internacional, a consolidação de um corpus histórico, ousado incessantemente inovar, acarinhado denodadamente novas gerações, semeado futuro para o fado… Aí ninguém iguala o Carlos do Carmo.

A tudo se dedicou com coração. Agora o coração parou. E só do coração ele podia morrer, porque viveu sempre do coração. Deixa-nos tristeza e saudade, mas sobretudo o que perdurará muito para além do sentimento de hoje e de quem hoje o sente…”fados de rara beleza”.

Primeiro-ministro de Portugal

José Mário Branco

(Francisco Louçã, in Expresso, 19/11/2019)

Tudo o que se vai lembrar e dizer será certo. Que, no exílio em Paris, foi um animador de festas populares em que semeava a luta contra a ditadura, que os seus discos contrabandeados chegavam como uma alegria e uma inspiração.

Que tocou com o José Afonso e que o acompanhou com a fidelidade da grandeza.

Que voltou cheio de energia, que o GAC era uma força da natureza e que inspirou a alma daquela revolução.

Que houve tristeza nos anos oitenta, pesados, e que o “FMI” foi logo a enunciação dessa exasperação, quando a “consolidação” e a dívida externa e a ordem novembrista eram o mantra do regime.

Que procurou novos caminhos, que andou pelo “Combate” e se juntou às campanhas que o PSR reinventou, depois ajudou a fazer o Bloco, sempre a exigir mais e a dizer o que pensava, nunca lhe bastou a modorra dos tempos e as trincheiras em que se espera e raramente alcança.

Que cantou à capela no Coliseu ou com um coro que transbordava no palco.

Que foi um músico enorme, que foi um poeta notável, que procurou também as palavras de outros que podiam levantar a emoção mais verdadeira, que não teve medo de barreiras, que nunca abandonou as suas causas, que procurou os amigos, que cumpriu a vontade de fazer um extraordinário espetáculo e disco com Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, dois músicos que estimava como dos maiores, que foi cúmplice de Camané na sua busca do fado, que com a Manuela de Freitas fez teatro e cinema e canções e tantos anos, que foi inquieto e que houve tristeza quando não tinha palavras novas para a sua indignação, que sentia tudo o que se mexia na sociedade e procurava os sinais da inquietude e revolta. Tudo o que se disser será certo.

Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?

Faltará sempre o que não se consegue dizer. Que detestou a podridão e que amou a vida. Que não tolerava cinismo e má fé. Que apontava a dedo o charlatão. Que tinha mais dúvidas do que reconhecia, quem não tem?, e que gostava de “épater le bourgeois”. Que tinha a arte de querer tudo e não ficar com nada. Que foi genial.

Tudo se dirá, menos que a morte é tramada. Sobram os discos, a música, as letras, as entrevistas, mas não ficam as conversas, nem a intransigência, só a memória ainda resta para olhar para trás e respeitar o que desaparece com o fim. E é tão pouco, só a lembrança, falta a vida vivida, não é, Zé Mário?

Onde estará amanhã a lágrima daquelas almas censuradas, a voz que se levanta, o olhar intenso, as palavras que ferem? Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?



Parem o Dr. Conan!

(Por Jovem Conservador de Direita, in Facebook, 17/02/2019)

conan

(A Estátua agradece ao Jovem Conservador de Direita o ter revelado as pouco óbvias relações entre a austeridade do Dr. Passos, a flexibilidade política da Geringonça, a cupidez libidinosa do clero e os Festivais da Canção. Muito bem visto… 🙂 🙂

Comentário da Estátua, 17/02/2019)


A actuação do Dr. Conan Osiris no festival da canção está a dar que falar pelos piores motivos. É o momento mais baixo da História de Portugal depois de o quase ex-Mestre de filosofia política Sócrates ter levado o país à bancarrota. O festival da Eurovisão é a única forma de nós mostrarmos aos nossos parceiros europeus que somos um país digno. Não podemos arriscar enviar um artista como o Dr. Conan Osiris.

O Dr. Conan Osiris destrói a imagem de seriedade que o meu governo, com a ajuda do Dr. Passos Coelho, se esforçou por passar lá para fora. O Dr. Conan é a manifestação da geringonça sob a forma musical. Um cantor mal vestido a chorar sobre partir um telemóvel, que provavelmente estava a pagar por mensalidades, ou sobre gostar de bolos, que provavelmente come todos os pequenos-almoços com dinheiro do RSI. Enquanto isso tem um rapaz a dançar ao lado dele em tronco nu. Um pouco como o papel do PCP e do BE na geringonça. Querem mostrar que fazem parte e aparecer na fotografia, quando na verdade só estão a fazer figura de parvos e a permitir que o líder Dr. Centeno faça o que lhe apetecer sem eles o chatearem.

O Dr. Salvador Sobral, por exemplo, era um cantor da austeridade. Ele cantava sobre amar por duas pessoas, ou seja era o pague um leve dois do amor. Foi a mensagem que o Dr. Passos Coelho nos passou. É possível fazer mais com menos. Se uma pessoa ama por dois, a outra pessoa pode perfeitamente privatizar a parte dela de amor. Isso é gestão de amor. A vitória do Dr. Salvador foi, na verdade, uma vitória do Dr. Passos Coelho.

O Dr. Conan canta sobre partir telemóveis que usa para falar para o céu. Provavelmente usa o telemóvel para falar para o céu porque gastou o saldo e não consegue telefonar para os seus contactos. Por isso tem de o usar para falar para o Céu. É uma mensagem terrível.

As pessoas, se querem falar para o Céu, têm de ir à missa. Se elas ouvem que podem falar para o Céu através do telemóvel deixam de ir à igreja e os padres ficam no desemprego. Pode ser positivo, porque deixam de precisar de abusar sexualmente de tanta gente. Mas é perigoso passar a mensagem de que as pessoas não precisam de um padre para falar para o Céu.

Os padres são os telemóveis que usamos para comunicar perante Deus. Partindo do princípio que a música do Dr. Conan não é sobre agredir padres (embora não me admirasse), o que ele está a fazer é uma heresia, alegando que a Igreja não é precisa para nada.