(Carlos Coutinho, 11/09/2021)

Chamava-se Tarquínio e tinha um dos nomes mais esdrúxulos ou proparoxítonos que eu conheço. Era etrúrio e, apesar de ter Soberbo como apelido, foi o último rei de Roma, mandando em tudo entre 535 e 509 a.C. Depois de tricas e traições de um filho e um sobrinho, com ainda hoje acontece, até dentro de famílias tão bem instaladas na vida como os Salgados, ainda se viu pontapeado para o Norte, onde ainda havia a sua Etrúria original.
Deixou os romanos na posse de uma república breve, mas não desistiu da monarquia que em vão tentou restaurar de ambos os lados de Tibre. Da última vez que voltou aos pinhais e soutos bravios da velha Etrúria foi, tanto quanto sei, para desaparecer da História, porque nunca mais houve notícia dele.
Também nos Açores, mas só 2 000 depois, apareceram alguns Tarquínios e entre eles, um génio que, além de suicida, ficou na História da Literatura e da Pintura portuguesas como um caso inatingível até hoje. Na Pintura vemo-lo no Museu Nacional de Arte Contemporânea, num retrato de Columbano que o madrileno Museu do Prado escolheu há poucos anos para, juntamente com o autorretrato de Aurélia de Sousa, que agora está na Gulbenkian, exemplificar numa exposição de âmbito internacional os casos mais extraordinários do retratismo.
Este terrífico Tarquínio parece ter 80 anos, apesar de haver morrido com apenas 49. Tinha Antero como nome e na sua testa desmesurada, no seus olhos virados para um longínquo chão de mundo intolerável, no seu grandioso bigode alourado pelo tabagismo e na ausência negra das suas mãos férteis o que imaginamos é alguém que atravessa o mar para voltar ao nada.
Foi ele que escreveu aquele soneto deplorável em que diz:
Na mão de Deus, na sua mão direita
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Não admira, pois, que se tenha sentado certo dia num banco de jardim em Ponta Delgada e perfurado a têmpora direita com a bala mais perversa do mais inconsciente dos revólveres. Mas também foi um dos fundadores do primeiro Partido Socialista Português – esse, sim, proudhoniano e bem de esquerda –, andou pelo ensaio filosófico e nas “Odes Modernas” escreveu poemas eternos de que só as odes de Fernando Pessoa se conseguiram aproximar um século mais tarde. Esgrimiu valentemente na Questão Coimbrã e, na ínclita Geração de 70, foi, com Eça, Junqueiro, Teófilo, Ramalho, Oliveira Martins e mais uns quantos, um fundibulário temível.
Também deixou escrito:
Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,
Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N’um turbilhão cruel e delirante…
Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»
P. S. – O suicídio de Antero de Quental ocorreu no dia 11 de Setembro de 1891. Como não podia deixar em claro esta infelicíssima data, falo hoje dela, porque não quero apagá-la com o lastro do vigésimo aniversário do mega atentado de Nova Iorque e com o falecimento de Jorge Sampaio que acaba de chegar ao meu conhecimento. Foi um cidadão incomum. Dói saber deste seu ocaso. Chegou cinco anos antes de mim e partiu também mais cedo. Conscientemente ou não, recusou-se a sofrer para nada. Não o merecia, de facto. Parabéns, Presidente Sampaio.