(Por José Gabriel, in Facebook, 17/11/2023)

É surpreendente a falta de senso que vai acompanhando as intervenções de alguns dos nossos líderes institucionais, dos quais esperaríamos um horizonte cultural mais amplo. O suficiente, pelo menos para, quando se querem ilustrar polindo os seus discursos com citações de autores – os poetas são as vítimas maiores – evitarem disparatar ofensivamente. Ou – e aqui lhes presto um serviço – não caírem no ridículo que, como se sabe, é veneno para quem quer manter uma pose de institucional solenidade.
Ora, o dr. Centeno, no contexto de um discurso em que, desajeitadamente – a oratória não é o seu forte – defendia o seu direito a pensar pela sua cabeça sem por isso ser incomodado ou atacado pela comunicação social, não encontrou melhor citação para ilustrar o seu caso que os quatro primeiras versos do poema “Abandono” de David Mourão-Ferreira (ver aqui).
O orador sabe do que está a falar? Sabe até que ponto é absurda a referência com que se está a identificar, o modelo que está a evocar? Acredito que não, que foi só ignorância, iliteracia. Isso não seria um mal – quem, de entre todos nós, sabe tudo, nunca erra? – não fora a prosápia com que enfatizou a citação.
Eu ajudo-o. Não sei se sabe, mas este poema foi cantado por Amália Rodrigues e popularizado com o nome de Fado de Peniche. Consegue perceber porquê? E consegue perceber porque, apesar do respeito que o regime salazarista tinha pela figura de Amália, já então artista de impacto internacional, a censura proibiu a divulgação deste fado? E o próprio Alain Oulman, seu compositor, veio, mais tarde, a ser expulso do país pala PIDE?
Porquê tudo isto? Basta ler com inteligência todo o poema, não apenas os dois ou três versos que, provavelmente, o seu assessor lhe segredou. Sabe onde é o “longe” onde foi encerrado o destinatário do poema? É Peniche, Forte de Peniche, prisão de antifascistas. Por isso, “…E apenas ouves o vento/ E apenas ouves o mar”. E, já agora, para que nada fique por dizer: apesar deste canto ser reconhecível e apropriável por todos os oprimidos e presos pela ditadura, sabe de que personagem fala o poeta, a que o inspirou? Foi, o próprio poeta o garantiria mais tarde, Álvaro Cunhal, que tinha sido encarcerado em Peniche, onde ficou preso 11 anos. É com ele que V.Exa, se está a identificar na sua trôpega incursão poética. Que desmedida ousadia! Ou, talvez, que imprudente tolice.
(Ou então, se disto tudo sabia, olhe que algum jornalista ainda se vai lembrar de gritar que “Mário Centeno é comunista”! Mas não é, nós sabemos que não é, fique descansado)
Como ilustração deste comentário, aqui deixo, a quem quer conhecer ou relembrar, o poema em causa.
ABANDONO
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te a meio da noite:
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite,
E nunca mais se fez dia.
Ai dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou no teu lugar.
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!
(David Mourão-Ferreira)