José Mário Branco

(Francisco Louçã, in Expresso, 19/11/2019)

Tudo o que se vai lembrar e dizer será certo. Que, no exílio em Paris, foi um animador de festas populares em que semeava a luta contra a ditadura, que os seus discos contrabandeados chegavam como uma alegria e uma inspiração.

Que tocou com o José Afonso e que o acompanhou com a fidelidade da grandeza.

Que voltou cheio de energia, que o GAC era uma força da natureza e que inspirou a alma daquela revolução.

Que houve tristeza nos anos oitenta, pesados, e que o “FMI” foi logo a enunciação dessa exasperação, quando a “consolidação” e a dívida externa e a ordem novembrista eram o mantra do regime.

Que procurou novos caminhos, que andou pelo “Combate” e se juntou às campanhas que o PSR reinventou, depois ajudou a fazer o Bloco, sempre a exigir mais e a dizer o que pensava, nunca lhe bastou a modorra dos tempos e as trincheiras em que se espera e raramente alcança.

Que cantou à capela no Coliseu ou com um coro que transbordava no palco.

Que foi um músico enorme, que foi um poeta notável, que procurou também as palavras de outros que podiam levantar a emoção mais verdadeira, que não teve medo de barreiras, que nunca abandonou as suas causas, que procurou os amigos, que cumpriu a vontade de fazer um extraordinário espetáculo e disco com Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, dois músicos que estimava como dos maiores, que foi cúmplice de Camané na sua busca do fado, que com a Manuela de Freitas fez teatro e cinema e canções e tantos anos, que foi inquieto e que houve tristeza quando não tinha palavras novas para a sua indignação, que sentia tudo o que se mexia na sociedade e procurava os sinais da inquietude e revolta. Tudo o que se disser será certo.

Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?

Faltará sempre o que não se consegue dizer. Que detestou a podridão e que amou a vida. Que não tolerava cinismo e má fé. Que apontava a dedo o charlatão. Que tinha mais dúvidas do que reconhecia, quem não tem?, e que gostava de “épater le bourgeois”. Que tinha a arte de querer tudo e não ficar com nada. Que foi genial.

Tudo se dirá, menos que a morte é tramada. Sobram os discos, a música, as letras, as entrevistas, mas não ficam as conversas, nem a intransigência, só a memória ainda resta para olhar para trás e respeitar o que desaparece com o fim. E é tão pouco, só a lembrança, falta a vida vivida, não é, Zé Mário?

Onde estará amanhã a lágrima daquelas almas censuradas, a voz que se levanta, o olhar intenso, as palavras que ferem? Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?



PARA SEMPRE ZECA! (revisto)

(Joaquim Vassalo Abreu, 23/02/2017)

Hoje é dia do ZECA! Faz hoje trinta anos que ele fisicamente nos deixou, o dia em que me lembro de ter posto gravata preta. Perguntavam-me, por inopinado gesto, quem te morreu? Eu respondia : parte da minha Alma, o ZECA!

Mas não conheço ninguém que, passados tantos anos, esteja tão presente em nós. Quem não o conheceu até pode achar estranho mas são seres destes, por tão excepcionais, que nos fazem sempre recordar que vale a pena lutar, ser justo, ser solidário, ser amigo, ser tolerante, ter cultura, ter humildade, ser simples e apreciar o belo. Ninguém como ele o fez e conseguiu transmitir.

Ele que tanto cantou, ele que tudo antecipou, ele que tanto lutou, contra medos e contra fantasmas, ele que por isso tanto pagou, ele nunca deixou de nos guiar, sempre à frente de tudo e nem a morte isso afastou!

Cantou Primaveras, as trombetas do futuro soavam sempre em seus e nossos ouvidos, cantou o Maio Maduro e as Águas das Fontes que mandou calar e chorar quando não mais cantasse. Cantou o coro dos caídos e os dos tribunais. Os vampirescos vendidos e os seus eunucos que a si mesmo se devoravam. As odes campestres, os verdes campos e o sol Alentejano. E a Catarina. “ Quem viu morrer Catarina, não esquece a quem matou”. Os pastores de Bensafrim e os Amigos! Os Amigos sempre convocados, estivessem ou não. “ E se alguém houver que não queira, trá-lo contigo também…”! Os amores, as lutas, as Madrugadas…tudo ele cantou. As Utopias, os alvores, os cantores….

Tudo, mas tudo o ZECA cantou, tudo o ZECA previu e tudo o ZECA ensinou. Ensinou-nos a cantar o Menino de Oiro, o do Bairro Negro, as faluas que lá vinham e a Canção de Embalar! Quem nunca adormeceu os seus filhos ao som desse “ embalar”? Quem nunca, depois de adormecidos não lhes assoprava o seu “ Redondo Vocábulo”? Quem? “ Canta meu menino a estrela de alva, já a procurei e não a vi. Se ela não vier de madrugada, outra que eu souber será pra ti…”. Haverá porventura alguma criança que se recuse a adormecer perante coisa tão bela?

Ele cantou os Filhos da Madrugada…que pela praia do mar se vão, á procura da manhã clara…!Que lá do alto da montanha acendiam uma fogueira, para não se apagar a chama…

E “ Vejam bem que não há só gaivotas em terra quando um homem se põe a cantar! Quem lá vem dorme a noite ao relento na areia… não há quem lhe possa valer…”

Uma enormidade Humana foi e é este Homem. Um Farol imponente no promontório da nossa Vida. Sempre emitindo uma luz que nos ensina o caminho, mesmo no mais profundo bréu. Nós os que tivemos a felicidade de o conhecer e de por ele e pelas suas músicas e intervenções sempre ansiar, sempre vimos nele aquele ser simples e tímido, mas desbravado, corajoso, sempre focado e firme. Livre e independente. FIRME, como ele sempre dizia qualquer homem dever estar.~

“ CANTIGAS DO MAIO”, editado em 1971, que numa breve brecha da Censura eu consegui ouvir em primeira mão e na íntegra na Emissora Nacional da altura é, talvez, a sua melhor e mais completa obra. Com o dedo profissional de José Mário Branco. Um tratado de música e um marco pioneiro de quem andou sempre, em tudo, à frente do tempo. Uma obra prima que fez com que a música em Portuga jamais fosse a mesma, do mesmo modo como muitos anos antes tinha rompido com o “ nacional cançonetismo” e que levou o grande escritor e dramaturgo Bernardo Santareno, comentando num célebre texto os seus “ Filhos da Madrugada” , a proferir a intemporal frase : “ …Nem tudo está podre no Reino da Dinamarca”.

Venham Mais Cinco, ele cantava. E venham, novos e velhos, venham todos cantar o ZECA. E a Liberdade, o Futuro e a Amizade. Todos os que vierem por bem…Venham…mas não venham sós…


 

Resistir é sempre combater

(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 20/05/2016)

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  Baptista Bastos

O cerco a Portugal possui idênticas características às que se organizaram em torno da Grécia. E Portugal é aqui tratado como um menino que se portou mal na classe e, por isso, tem de sofrer um castigo exemplar.

(À memória do grande português Vasco de Magalhães Vilhena, cujo centenário agora ocorre)


Partido Popular europeu não gosta do Governo português. Preferia, de longe, Passos Coelho e os seus. O Partido Popular é um almofariz de interesses e de ideologias e conglomera gente de direita, de extrema-direita, alguns neonazis e comporta uma base revanchista várias vezes revelada por alguma imprensa internacional.

Essa imprensa, e alguma de marca portuguesa, é fértil em publicar boatos, asserções cuja origem não indica. Nas últimas semanas, insiste em que Portugal vai ser punido por não cumprir as regras. É isto, é aquilo, é aqueloutro: uma ciranda de indícios, cujos objectivos notórios pretendem criar um clima de tensão e angústia entre os portugueses.

Ante esta atmosfera, surgem, caridosos e “mui” patriotas, os inesquecíveis Maria Luís Albuquerque e Pedro Passos Coelho que vão pedir à “União” Europeia que não castigue os relapsos. A situação seria caricata não se dera o caso de possuir os contornos do indecoro. O cerco a Portugal possui idênticas características às que se organizaram em torno da Grécia. E Portugal é aqui tratado como um menino que se portou mal na classe e, por isso, tem de sofrer um castigo exemplar. Albuquerque e Coelho, vertendo lágrimas de crocodilo, surgem para aliviar a desgraça, embora António Costa e membros do seu Governo asseverem, constantemente, não haver motivos de alarme, ainda que não ocultem que a tenaz de quem manda na Europa seja cada vez mais opressiva.

Como já temos dito, e estamos muito bem acompanhados, porque as ideias de um homem não lhe pertencem em sistema de exclusividade, a União Europeia é uma estrutura mais económica do que solidariamente política, foi traída nos seus princípios generosamente humanistas para se transformar num condomínio de negócios de que a Alemanha é a grande beneficiária. Basta assistir, pelas televisões, ao enxovalho de se ver dirigentes de nações europeias, de médio ou grande quilate, como serventuários de Angela Merkel, que não é outra coisa do que factótum de grandes e ocultos interesses.

As coisas não podem continuar como estão. E se o alvo desses interesses cavilosos é, neste momento e depois da humilhação por que passa a Grécia, o Governo português, temos de nos acautelar como povo e como nação. Sei muito bem os perigos que correm cronistas que se não intimidam. Mas nem todos os jornais pertencem ao “dinheiro sujo” de Angola (como disse João Soares), nem obedecem às instruções de um advogado esconso, feio e velhaco que por aí se move, em sórdidas malfeitorias.

“Entre os portugueses, traidores houve às vezes”, ensinou o Poeta. Mas entre os portugueses sempre houve, há e haverá gente honrada, que sabe muito bem que resistir é combater. Conheço alguns, de uma nobre estirpe, que pertencem ao património moral da nação.