Depois de Melilla e de vendermos sarauís e curdos, o que sentimos pelos ucranianos é hipocrisia

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/07/2022)

Daniel Oliveira

Marrocos vendeu a solidariedade com a Palestina em troca do reconhecimento pelos EUA da ocupação do Sara Ocidental; Espanha vendeu os seus deveres para com o Sara Ocidental em troca da barragem sem pruridos humanitários de migrantes; Suécia e Finlândia venderão os curdos à Turquia para entrarem na NATO. E há quem se indigne com o cinismo de Kissinger. Se existem “valores europeus”, são para consumo da casa.


Aproveitando o embalo do reconhecimento da sua soberania sobre o Sara Ocidental por Donald Trump – que a trocou pela normalização das relações de Marrocos com Israel –, Rabat aumentou a pressão sobre Madrid. O seu argumento negocial era não controlar a entrada de migrantes. E tudo se tornou ainda mais difícil para Pedro Sánchez com o internamento do líder da Frente Polisário e presidente da República Árabe Sarauí Democrática, Brahim Gali, por estar infetado com covid. Madrid tinha de saber que “há atos que têm consequências e têm de se assumir”, explicou a embaixadora de Marrocos em Espanha.

A pressão sobre Ceuta e Melilla foi a arma usada por Marrocos. PP e Vox usaram a entrada “descontrolada” de imigrantes contra o governo, não hesitando em promover o caos nos territórios, e os socialistas recordaram que a falta de determinação é o principal traço identitário desta família política em toda a Europa.

Madrid, antiga potência administradora do Sara Ocidental, deu o primeiro passo para um reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o território, com uma vaga promessa de autonomia vinda de uma ditadura. Numa carta ao rei Mohamed VI, Pedro Sánchez declarou que o plano marroquino de autonomia do Sara Ocidental era “a base mais séria, realista e credível para a resolução do diferendo” que, recorde-se, dependia de um referendo nunca realizado. Num ápice, aproveitando o ruido da guerra da Ucrânia, traiu a posição histórica do seu partido e da diplomacia espanhola. E até abriu uma nova frente de conflito com a Argélia, aliada da Frente Polisário e uma das principais fornecedoras de gás da Península Ibérica. A direita, que ajudou Marrocos a entalar o governo usando Ceuta e Melilla para o fragilizar, também protestou.

Em troca da cedência, Espanha conseguiu externalizar para Marrocos a defesa das suas fronteiras. O retrato de Dorian Gray foi-lhe revelado agora, com os efeitos monstruosos do seu cinismo. Face ao avanço de centenas de imigrantes que queriam entrar em Espanha, 1500 agentes marroquinos concentraram-se na zona na região de Nador. Dispararam uma infinidade de granadas de fumo contra a multidão. No meio do caos, do pânico, da violência e do desespero para entrar, 37 seres humanos agonizaram até à morte, aos olhos de todos os que não desviaram a cara, asfixiados ou esmagados junto à vala ou depois de caírem da cerca que a limita, na fronteira entre Marrocos e Melilla. Migrantes feridos não receberam auxílio das autoridades espanholas e foram agredidos por polícias marroquinos que, entrando em território espanhol, os fizeram regressar a Marrocos.

Como disse Helena Maleno, porta-voz da Caminando Fronteras, “as relações entre Marrocos e Espanha estão manchadas de sangue.” Já houve mais pessoas a tentaram cruzar a fronteira, nunca tantas morreram. Mas Sánchez não se esqueceu de agradecer a “extraordinária cooperação” do Reino de Marrocos e o comportamento da sua polícia. Deixo aqui o extraordinário resultado, que não abriu telejornais.

Para não se perderem no meio da troca pornográfica de favores, recapitulo: Marrocos vendeu a solidariedade com os palestinianos em troca do reconhecimento pelos EUA da sua ocupação do Sara Ocidental e Espanha vendeu os seus deveres para com o Sara Ocidental, enquanto antiga potência administrante (semelhante à siglação que tínhamos com Timor-Leste, nos anos 90), em troca da barragem sem pruridos humanitários de qualquer pessoa que tente entrar por ali na Europa.

Mas não acaba aqui. Parece que a Suécia e a Finlândia se preparam para vender os curdos à Turquia, mesmo que de forma aparentemente vaga (mas o princípio de cooperação na opressão dos curdos passou a estar em cima da mesa) para entrarem na NATO – o próprio ocidente os abandonou depois de os ter usado contra o Estado islâmico. Não deixa de ser irónico que a adesão à NATO, esse espaço de valores, implique a cedência destes países numa tradição de solidariedade que lhes valeu uma influência internacional superior ao seu peso económico ou militar.

Perante todo este comércio, ainda há quem se indigne com o excesso de cinismo da realpolitik de Henry Kissinger.

Passei os últimos três meses a defender os nossos deveres para com a resistência ucraniana à ocupação do seu território. Que há um ocupante e um ocupado e não pode haver hesitações morais perante este facto, disse-o vezes sem conta a alguma esquerda. Acho que depois destes parágrafos quem se atreva a dizer que é isso que move a Europa deve esconder-se num buraco com vergonha. A Europa está-se nas tintas para o direito à autodeterminação dos povos. Venderia qualquer povo por um polícia na sua fronteira ou uns litros de combustível. Não existe essa coisa de “valores europeus”. E se existe, é só para consumo da casa. É uma fantasia com que alimentamos os nossos ancestrais complexos de superioridade.

Passei os últimos três meses a dizer que esperava, sinceramente esperava, que a forma como abrimos os braços aos ucranianos fosse uma aprendizagem. Um passo para olharmos de outra forma para o sofrimento dos outros, dos que fogem da guerra, da miséria e da opressão. Que comoção sentiram, por essa Europa fora, com a pilha de corpos mortos na fronteira sul da Europa? Quantas instituições públicas se disponibilizaram para fazer alguma coisa? Quantas vigílias? Quantas associações, a não ser aquelas que há anos, sem se moverem ao sabor das modas, são consequentemente solidárias, se ofereceram para ajudar estas pessoas? Que deveres os europeus sentem ter perante estas mortes?

Não venham dizer que é porque a Ucrânia está mais próxima de nós. Lviv fica a 3600 quilómetros de Lisboa, Melilla a 940. A proximidade é outra: os ucranianos são brancos, loiros, nutridos, cristãos e parecem ser como nós (ou como nós gostaríamos de ser). Em princípio, devem sentir dor como nós, ao contrário dos sub-humanos subsarianos. Podem transformar esta diferença perante o sofrimento de uns e de outros em empatia ou proximidade. Tem o mesmo nome de sempre: racismo.


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Licença para matar

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 07/03/2020)

Coisas estranhas estão a acontecer.

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A primeira vítima do pânico coletivo é a racionalidade. A Austrália tem, no momento em que escrevo, 41 casos de Covid-19 diagnosticados. A Austrália tem 24,6 milhões de pessoas. A Austrália, um país avançado e civilizado, desatou a açambarcar papel higiénico. Nos supermercados, o papel higiénico foi racionado e quando chegava dos fornecedores era logo arrebanhado. Quando uma cadeia de notícias tentou perguntar às pessoas uma razão específica para a escolha do papel higiénico, alguém respondeu: se calhar, uma pessoa começou a comprar muitos rolos de papel higiénico e as outras foram atrás. Também compraram latas de conserva e pasta de dentes, mas por uma razão decerto metafísica, ontológica, o papel higiénico tornou-se um bem precioso.

Este o comportamento que esperamos de povos ditos primitivos. Em crises de pânico, são os povos avançados que se portam mal. Nas vidas confortáveis, o medo torna-se uma incógnita maligna e uma autorização para o disparate, incluindo a xenofobia, a desconfiança, o proselitismo, a mentira, a acusação, o linchamento, o açambarcamento. Uma estudante de Hong Kong foi tratada como uma leprosa em Itália. As pessoas afastaram-se dela, disseram-lhe para se colocar imediatamente em quarentena, deixar de aparecer em público, usar máscara e, de um modo geral, ir morrer longe. Por causa de uns olhos asiáticos. Veio a coisa descrita no “NY Times”. A estudante ficou desapontada com a Itália.

Uma das formas primitivas de atacar esta crise é apontar o dedo aos media. Os jornais sérios, dizem alguns. Nos últimos dias, com olhar reprovador, disseram que a culpa era nossa. Os media criaram esta histeria, os media são responsáveis, os media não têm padrões de comportamento, os media massacram as pessoas, os media propagam o vírus. Só falta dizer que os media foram os responsáveis pela criação do vírus em laboratório. Algures na China.

Compare-se esta crítica com a oposta. Na China, os media não reportaram a verdade, o regime comunista censurou as notícias, controlou a narrativa, não podemos acreditar em nada do que dizem os chineses. Ou o Irão, onde está em vigor uma censura oficial de todas as notícias respeitantes ao vírus. Se os media reportam em liberdade, são histéricos. Se omitem, são censurados ou mentirosos. Numa crise de pânico, os media são o mensageiro e o mensageiro é fácil de culpar. Há uma licença coletiva para matar o mensageiro.

Os media, ou como se diz, com a boca franzida e o sobrolho erguido, os “jornais sérios”, nem têm sido muito alarmistas e certamente não têm sido os autores das fake newsmemes, vídeos e conspirações virais que contaminam a informação, circulam nas redes sociais e são disseminados pelas mesmas pessoas que estendem o dedinho. Saem do rumor do Facebook e do Twitter para o discurso moralista sobre a histeria mediática e os jornalistas. O inferno são sempre os outros. Nunca compreendi a raiva contra o jornalismo sério, tão ameaçado, enquanto o falso, o especulativo, o sensacionalista, é celebrado como forma extrema da liberdade de expressão.

Enquanto a atenção mundial está mobilizada para o vírus, ou as primárias americanas, o resto do mundo passa despercebido. O raio de atenção da geração tik tok são 15 segundos, podemos avaliar a dificuldade de fazer passar uma ideia. Ou conceber uma ideia. Não admira que ninguém se interesse por notícias que seriam grandes noutra ocasião em que o papel higiénico não se tornasse essencial.

O Presidente Trump disse uma coisa extraordinária, mais uma. “Tive uma boa conversa com o mullah.” E cumprimentou os talibãs pela sua dureza e resistência. Trump acaba de assinar o que os Estados Unidos querem fazer passar por um acordo de paz para a retirada das tropas e mais não é do que uma derrota militar e uma capitulação. Em Doha, no Qatar, um país até há pouco tempo na lista negra da diplomacia americana por via dos sauditas e do príncipe louco, as negociações para a retirada das tropas americanas chegaram mais ou menos a termo. Quase 20 anos passados sobre o 11 de Setembro, e triliões de dólares mais tarde, a América descobriu que perdeu a guerra. Milhares de soldados “aliados” morreram no Afeganistão para entregar Cabul de novo aos talibãs. O país mudou nestas duas décadas, pelo menos na capital, mas os talibãs não mudaram. O mullah de Trump é o mesmo fundamentalista que era o mullah Omar, e ninguém duvida de que uma sociedade islâmica repressora, violenta e medieval será a consequência política deste “acordo”, e que a retirada das tropas apenas dará aos novos chefes fundamentalistas licença para matar todos os “inimigos” e retirar às mulheres os direitos adquiridos.

O Afeganistão continua tão tribal, belicoso, dividido, corrupto e primitivo como era, e o verniz de Doha estalará. Uma guerra civil entre senhores da guerra não é de excluir. A grande diferença é que ninguém quer saber. E os terroristas? O Paquistão tratará disso, à sua maneira. Com a Rússia do outro lado. Decerto em mais conversas positivas com os mullahs. Eis como a América passou de ameaçar bombardear o Paquistão até à Idade da Pedra, frase que os generais gostam de dizer desde o Vietname e com os bons resultados que sabemos, para a constatação de que o mullah afegão é um duro, um tough cookie na linguagem Trump, e um parceiro a convidar talvez para um fim de semana em Mar-a-Lago. Melhor do que Camp David. Umas torres em Cabul, logo se verá.

E quem quer saber de mais uma crise humanitária nas fronteiras e mares da Grécia e da Turquia? Os sírios, ainda? Mais os afegãos, refugiados da paz que há de vir? A Síria, tal como a Líbia, não estavam arrumadas?, cogitam as massas. O Putin tinha tratado disso. Putin e Erdogan zangaram-se e a Turquia entrou em guerra com a Síria.

E não se concebe maior miséria moral do que bombardear com gás pimenta gente que foge da guerra e do extermínio, que tenta salvar os filhos e que é usada como arma dos turcos contra os europeus. Gente que não sabe nadar e afunda o próprio barco para ser resgatada. E tudo isto às portas da Europa, ocupada a desinfetar as mãos.


Estas noites de mar de morte

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 05/07/2019)

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É melhor ser alegre que ser triste, proclama Vinícius de Moraes no “Samba da Bênção”. É um truísmo muito la palissiano. Nem por isso deixa de ser o início de uma grande canção feita de verdades plenas. A verdade inteira às vezes derrama dores tão impossíveis como infinitas. A verdade não mata. Mas a verdade choca. Como quando se sabe que uma embarcação com 86 migrantes a bordo naufragou no Mediterrâneo e a notícia já quase passa despercebida. Se à mesma hora caísse no Mediterrâneo um avião e daí resultassem dezenas de mortos, por exemplo 86, teríamos por certo abertura de telejornais, longos e continuadas relatos da tragédia. A raridade é em si mesma fomentadora de notícia.


Quando a verdade se banaliza, até já os mortos são indiferentes. Não sei se é o triunfo da desumanização. Será, por certo, a vitória da indiferença perante uma tragédia que os poderes europeus têm preferido empurrar para as brumas do esquecimento.


Na verdade, é melhor ser alegre que ser triste. A dificuldade da alegria está no peso daqueles mortos, daqueles olhares perdidos no infinito, daquela dor silenciada nas profundezas do Oceano.


Umas horas depois de ser conhecido aquele naufrágio, a ONG italiana Mediterranea resgatava 54 migrantes nas águas internacionais ao largo da Líbia. Como Itália mantém a política de portos fechados a estas embarcações, com a acusação de que fomentam a imigração ilegal, a ONG procurava um porto seguro para desembarcar os resgatados. Já houve uma dezena de navios de resgate no Mediterrâneo. Esta quinta-feira restava um.


As mudanças nas políticas destinadas ao tratamento destes casos (fim da operação Mare Nostrum), adotadas pela União Europeia a partir de 2014, com o objetivo de travar a entrada na Europa de refugiadas (das guerras, das alterações climáticas, da miséria) levou um grupo de advogados internacionais com base em Paris a apresentarem um processo no Tribunal penal Internacional, em Haia contra a UE, acusada da prática de crimes contra a humanidade.


Na equação tem de ser colocada de forma séria a questão do combate ao tráfico de seres humanos e aos negócios milionários que lhe estão associados.

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Porém, e esta é uma componente fulcral do problema, o documento, divulgado pela Deutshe Welle, assegura que, em vez de resgatar e proporcionar segurança à população civil em perigo no mar, “a UE facilitou a morte de milhares por afogamento, antes de introduzir um sistema compreensivo de deportação para campos que se assemelham aos de concentração”. Embora, acrescenta, tenham caído as chegadas de pessoas através do Mediterrâneo, “mais de 40 mil pessoas foram interceptadasno mar e levadas a campos de detenção e a câmaras de tortura sob a legislação europeia”.


A UE financia os campos criados na Líbia (vídeo nos campos de refugiados aqui), bem como as operações da Guarda Costeira líbia destinadas a barrar a entrada na Europa de todo o tipo de refugiados.


A Comissão Europeia defendeu-se para assegurar que a “prioridade sempre foi e continuará a ser proteger vidas e garantir tratamento humano e digno em todas as rotas migratórias”.


Nem uma palavra, porém, para uma circunstância decisiva e fatal em todo o processo: após a ação conjugada, em 2011, de forças da NATO e grupos islamitas para derrubar Khaddafi, a Líbia transformou-se num território sem lei, nem regras, onde se praticam as maiores barbaridades, facilitadas pela abundância de armas e pela proliferação de grupos terroristas.


Ora, é aqui, neste território caótico, governados por milícias envolvidas em atrocidades, corrupção, tráfico de seres humanos, que a UE despeja dinheiro, concentra os campos de “acolhimento” de refugiados, e tenta lavar a consciência.


É melhor ser alegre que ser triste. Pena a tristeza tantas vezes roubar o espaço que preferia dar à alegria.