(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,22/09/2023)

Lampedusa é uma pequena ilha de Itália, entre África, a Sicília e o continente italiano. Tem 7 mil habitantes e em apenas três dias da semana passada recebeu 10 mil imigrantes vindos de África e com origem maioritária em portos da Tunísia. Aparentemente, o acordo que o Governo de coligação de extrema-direita, chefiado pela primeira-ministra Giorgia Meloni, estabeleceu com o Governo tunisino — dinheiro contra retenção de imigrantes — não está a funcionar como ela esperava. Nos dois anos em que o seu parceiro de coligação e de Governo e líder da Liga, Matteo Salvini, foi ministro do Interior num anterior Governo, ele chegou a mobilizar a Marinha de Guerra contra as frágeis embarcações dos imigrantes: milhares morreram afogados na travessia do Mediterrâneo e apenas 7 mil num ano e 8 mil noutro conseguiram atingir a costa italiana. Mas desta vez, e contra todas as expectativas, Meloni recusou voltar a dar a Salvini a pasta do Interior e adoptou uma política muito mais branda e humana para com os imigrantes. Resultado: só este ano e até agora entraram em Itália 127 mil desesperados do Norte de África e do Sahel, vítimas de guerras ou de ditaduras alguns, mas vítimas sobretudo da fome e das alterações climáticas a maioria, todos em busca de uma réstia de esperança numa vida decente. Lampedusa recebeu os seus resgatados com um insuperável humanismo e generosidade, como outras partes de Itália e da Sicília o fizeram, e também a Grécia, mas de forma bem menos pacífica e generosa. Tudo perante o silêncio e a indiferença da Europa. Mas há sempre um limite suportável, e a população de Lampedusa chegou agora ao seu, perante o anúncio de que as autoridades se preparam para estabelecer novo acampamento permanente na ilha para acolher mais imigrantes. Como escreveu Helena Matos no “Observador”, o que diria a população de Porto Santo se tivesse de acolher mais imigrantes do que os próprios residentes?

No domingo passado, Meloni levou Ursula von der Leyen a Lampedusa para que ela visse com os próprios olhos aquilo que a Europa não quer ver. E, enquanto elas se reuniam em Lampedusa, mais a norte, em Itália, Salvini recebia Marine Le Pen e, juntos, os dois expoentes máximos da extrema-direita xenófoba e anti-imigração europeia combinavam uma possível lista comum às europeias do ano que vem e uma estratégia comum do tipo “regresso às canhoneiras” em que Salvini se distinguiu no passado. Em Lampedusa, Von der Leyen apresentou um vago “projecto europeu” em 10 pontos, compreendendo patrulhas navais europeias, um corredor para imigração legal (qual?) e repatriamento da ilegal (para onde?), além da solene declaração de que será a Europa, e não os traficantes de seres humanos, a decidir a sua política de imigração. Uma bela frase que esbarra, contudo, na realidade dos factos. E a realidade é aquilo que, dias depois, Meloni disse na Assembleia-Geral da ONU: “A Itália não pode e não quer continuar a ser o depósito de imigrantes da Europa”, apenas porque é o país cujas costas ficam mais próximas das de África. Longe desta malfadada geografia, Portugal, pela voz da ministra Ana Catarina Mendes, aparecia nas páginas do “La Repubblica” de sábado passado como um exemplo a seguir. “Devido à nossa baixa natalidade”, explicava a ministra, “estamos abertos a receber imigrantes para preencher as nossas necessidades de trabalho.” Eles são úteis e bem-vindos, acrescentou, e temos leis para os acolher decentemente (veja-se Odemira e não só…). Todavia, quando perguntada o que faríamos quando as necessidades de imigrantes estivessem preenchidas, a ministra preferiu divagar e esquecer a pergunta. Outros — a Polónia, a Hungria, a Eslováquia — são frontais e sem subterfúgios: não querem receber imigrantes nenhuns e não têm nada a ver com o assunto. A Polónia, um país vagamente democrático e sem qualquer espírito europeu, lançou-se mesmo na construção de um muro de fronteira contra a imigração, como fez Trump na fronteira com o México. Bruxelas chegou a ameaçar a Polónia com o corte de dinheiros europeus — uma represália lógica e justa —, mas recuou entretanto, uma vez que a Polónia se tornou um dos maiores apoiantes da Ucrânia, e essa é a única solidariedade europeia que hoje conta.
Na recente cimeira do G20 falou-se muito da Ucrânia, e Zelensky lá teve direito ao seu tempo reservado para, como sempre, pedir mais armas para aquilo a que o secretário-geral da NATO, julgo que entusiasmado, avisou que irá ser ainda “uma guerra prolongada”.
No G20 falou-se muito da necessidade de continuar a guerra, mas não se falou nada da necessidade de estabelecer um diálogo para a paz. Falou-se muito do aumento das despesas militares e de continuar a armar a Ucrânia, mas não se falou nada de dinheiro para combater as secas e a fome no Terceiro Mundo. Falou-se da história mal contada da “chantagem alimentar russa”, mas ninguém disse, como Guterres, que “o mundo precisa dos cereais ucranianos e precisa dos alimentos e fertilizantes russos” — e que os fornecimentos de uns estão ligados aos outros.
Não se falou das alterações climáticas nem das tragédias ou dos fluxos migratórios provocados por elas. E ninguém lembrou, como Guterres, que à volta daquela mesa estavam reunidos países responsáveis por 80% dos gases com efeitos de estufa e que era de estranhar que nenhum dos líderes mundiais ali presentes “sentisse o calor”. No G20, como nos discursos dos grandes do mundo na ONU, o que agora verdadeiramente os preocupa é o poder crescente dos BRICS e o seu futuro alargamento a países do Médio Oriente: o petróleo, a eterna luta pelo petróleo, e a irritação de verem países tradicionalmente abertos à boa e velha “ordem liberal”, como o Brasil e a Índia, “a fazerem agora o jogo de Putin” — isto é, a defenderem que se comece a procurar a paz em lugar de continuar a guerra sem fim à vista. Definitivamente, o mundo já não é o que era, e ao Ocidente já não resta mais do que entrincheirar-se atrás de muros e bombardear os bárbaros do Leste e do Sul, que nos assaltam sem razão. Stoltenberg e a sua NATO defenderão o Leste, Salvini e Le Pen o Sul, a VII Esquadra americana o Extremo Oriente, e alguns intelectuais escreverão que, afinal, a história continua. Como se não o soubéssemos. Lampedusa é apenas uma minúscula ilha no mar da indiferença em que naufragamos.

2 Mesmo neste tempo da internet e das notícias constantes online, gosto de manter um velho hábito de, quando ausente da terrinha, deixar comprados, para depois ler, os jornais da minha ausência. Fiquei assim a saber que, se as novidades não foram muitas, foram, pelo menos, divertidas. Marcelo andou a comentar decotes no Canadá, enquanto alguns intelectuais da Mui Nobre, Leal e Sempre Invicta se escandalizaram ao retardador com a escultura de uma jovem nua abraçada a um velho Camilo. (Larga a peça, Eça!, ou ainda te cortam a cabeça em Lisboa.) Cavaco lançou a sua muito publicitada “Arte de Governar”, rodeado de “ajudantes”, numa coisa dantes chamada Grémio Literário e hoje mais conhecida por Clube Literário do PSD (já gastei os meus 17,75 euros para matar as saudades, não a curiosidade). E, segundo as melhores opiniões, as europeias do ano que vem serão absolutamente determinantes em Portugal para decidir: a) se Montenegro continua à frente do PSD; b) se Costa resiste ou avança Pedro Nuno; c) se Marcelo pode finalmente dissolver tudo à cacetada; d) se o Chega cresce ou o CDS renasce. O que tem isto a ver com a Europa — com a crise migratória, com as alterações climáticas, com a continuação da guerra, com o alargamento a Leste e com o fim dos nossos queridos dinheirinhos europeus? Pois, nada. Mas quem disse que as europeias servem para discutir a Europa?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia